"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



sábado, 31 de julho de 2021

 


Pessoas vão embora de todas as formas: vão embora da nossa vida, do nosso coração, do nosso abraço, da nossa amizade, da nossa admiração, do nosso país. E, muitas a quem dedicamos um profundo amor, morrem. E continuam imortais dentro da gente.


A vida segue: doendo, rasgando, enchendo de saudade…


Depois nos dá aceitação, ameniza a falta trazendo apenas a lembrança que não machuca mais: uma frase engraçada, uma filosofia de vida, um jeito tão característico, aquela peculiaridade da pessoa. Mas pessoas vão embora. As coisas acabam. Relações se esvaem, paixonites escorrem pelo ralo, adeuses começam a fazer sentido.


E se a gente sente com estas idas e também vindas, é porque estamos vivos. Cuidemos deste agora. Muitos já se foram para nos ensinar que a vida é só um bocado de momento que pode durar cem anos ou cinco minutos.


E não importa quanto tempo você teve para amar alguém, mas o amor que você investiu durante aquele tempo. Segundos podem ser eternidades… ou não. Depende da ocasião.


difícil tarefa

 


Quando crianças, o tempo para nós é sempreagora: brincar, mamãe, com sorte mais carinho do que violência, coisas desse tipo. Somos imediatistas. Depois, ainda pequenos, contamos o tempo pelas vezes em que teremos de dormir:Quantas vezes tenho de dormir até o Natal? Até o aniversário?”.


Saindo do limbo da infância, começamos a ter projetos. Precisamos ter projetos. Nos dizem que temos de ter projetos, mais do que desejos ou sonhos, porque estamos ficandograndes e precisamos ser responsáveis. Alguns sonhos e desejos podem se transformar em projetos cada vez mais complexos e a mais longo prazo, à medida que nos tornamos adultos. Com eles chegam as frustrações: eu queria ser rico, acabei remediado, queria ser famoso, sou um anônimo. Eu queria ser médico, acabei taxista. Eu queria ser modelo, virei uma acomodada dona de casa; eu quis viajar o mundo, e só agora, quase na velhice, vou conhecer o Rio.


A frustração tem a medida do desejo que não se realizou, ou da nossa incapacidade de nos adaptarmos ao real - sem perder a capacidade de voar. Não é preciso pisar na Lua para ser bem-sucedido, nem ter um Everest de dólares para se sentir bem na própria pele, isso que eu chamo deser feliz. Gostar do que conseguimos: fazer caber nossas alegrias, isso que fazemos, desde que não nos humilhe nem degrade. Por que não posso ser bem-sucedida tendo uma casa simples mas acolhedora e uma família em que, apesar das brigas naturais, nos apoiamos uns aos outros em lugar de criticar? Por que conduzindo pessoas num táxi não posso fazer bem a elas e sustentar minha gente? Por que, não sendo modelo, mesmo assim não posso me achar bonita, simpática, rica de emoções e coisas boas?


O problema maior é descobrir quem somos, o que desejamos e o que podemos. Ignorar, superar, os preconceitos, as regras, as receitas de ser bem-sucedido e feliz. Empoderamento, palavra clichê do momento (até rimou), me aborrece um pouco. Por que teríamos de ser todos poderosos? Importa, mais do que isso, sermos decentes, dignos, úteis, amorosos, compassivos, criativos, e capazes de ver - mesmo na correria desta vida moderna - a beleza das nuvens disparando no céu, a dança das copas das árvores ou das ondas do mar quando venta forte. De telefonar para o amigo em dificuldade, dedicar um tempo aos filhos, ou aos pais, escutar o parceiro com carinho, enfim, sermos humanos sem maior complicação.


Para entender quem somos, quem queremos ser, quem podemos ser - não o que os outros, a turma, a sociedade, querem que sejamos -, é preciso parar pra pensar.Parar pra pensar? Nem pensar! Se eu paro pra pensar, desmorono, é a frase mais comum. Então esse deveria ser nosso heroísmo fundamental: interromper a agitação, um momento que seja, clarear a paisagem interior dominando a impaciência e o pessimismo. Enfrentando como podemos a realidade de um país confuso num mundo conturbado, na floresta de enganos em que se desperdiçam bons amores e desejos. Assim talvez sejam menos dolorosas as inevitáveis frustrações que por toda parte espreitam - porque viver, e conviver, sem perder a bondade nem a coragem, é difícil tarefa.


Texto originalmente publicado em 29 de outubro de 2016


# dia do orgasmo


 

no elevador do Filho de Deus



A gente tem que morrer tantas vezes durante a vida
Que eu já tô ficando craque em ressurreição.
Bobeou eu tô morrendo
Na minha extrema pulsão
Na minha extrema-unção
Na minha extrema menção
de acordar viva todo dia
Há dores que sinceramente eu não resolvo
sinceramente sucumbo
Há nós que não dissolvo
e me torno moribundo de doer daquele corte
do haver sangramento e forte
que vem no mesmo malote das coisas queridas
Vem dentro dos amores
dentro das perdas de coisas antes possuídas
dentro das alegrias havidas

Há porradas que não tem saída
há um monte de não era isso que eu queria
Outro dia, acabei de morrer
depois de uma crise sobre o existencialismo
3º mundo, ideologia e inflação...
E quando penso que não
me vejo ressurgida no banheiro
feito punheteiro de chuveiro
Sem cor, sem fala
nem informática nem cabala
eu era uma espécie de Lázara
poeta ressucitada
passaporte sem mala
com destino de nada!

A gente tem que morrer tantas vezes durante a vida
ensaiar mil vezes a séria despedida
a morte real do gastamento do corpo
a coisa mal resolvida
daquela morte florida
cheia de pêsames nos ombros dos parentes chorosos
cheio do sorriso culpado dos inimigos invejosos
que já tô ficando especialista em renascimento

Hoje, praticamente, eu morro quando quero:
às vezes só porque não foi um bom desfecho
ou porque eu não concordo
Ou uma bela puxada no tapete
ou porque eu mesma me enrolo
Não dá outra: tiro o chinelo...
E dou uma morrida!
Não atendo telefone, campainha...
Fico aí camisolenta em estado de éter
nem zangada, nem histérica, nem puta da vida!
Tô nocauteada, tô morrida!

Morte cotidiana é boa porque além de ser uma pausa
não tem aquela ansiedade para entrar em cena
É uma espécie de venda
uma espécie de encomenda que a gente faz
pra ter depois ter um produto com maior resistência
onde a gente se recolhe (e quem não assume nega)
e fica feito a justiça: cega
Depois acorda bela
corta os cabelos
muda a maquiagem
reinventa modelos
reencontra os amigos que fazem a velha e merecida
pergunta ao teu eu: Onde cê tava? Tava sumida, morreu?
E a gente com aquela cara de fantasma moderno,
de expersona falida:
- Não, tava só deprimida.

 


O homem bondoso faz bem a si mesmo, mas o cruel a si mesmo se fere.

 

 Provérbios 11:17


segunda-feira, 26 de julho de 2021

 


Um avô me parou esses dias no final de uma palestra.Se você acha que amor de pai é grande, espere até se tornar vô, disse. Duvidei. Amor de pai é tão grande, ter filhos dá tanto trabalho, exige tanta dedicação, que amamos nossas obras como se fosse o projeto de nossas vidas.Mas depois de ser vô você percebe que não deveria ter se preocupado tanto. Amor de vô é amor puro, compreensivo e afetuoso. A gente olha pro nosso filho, pensa em tudo o que errou e tenta acertar com o neto, contou o senhor.A gente aprende que ser duro demais ou preocupado demais ou estressado demais com dinheiro é bobagem, disse. Amor de vô é puro amor, sem preocupações bobas”.


Realmente, tenho tantas preocupações bobas. Obrigo as meninas a comerem todo o almoço. Exijo que ponham os pratos na pia. A mais velha lava louça, a mais nova, às vezes, seca (apenas os itens de plástico, já quebrou copos demais). Peço que digampor favor”, “com licença”, “obrigado. Regulo tempo vendo televisão. Cobro desempenho escolar. Não permito doce antes das refeições. Insisto para que lavem as mãos e escovem os dentes. Sou chato! Terrível! O pior pai do mundo!


Já ouvi mais de uma vez, de diversas pessoas: todo amor que meu pai não me deu agora dá para meus filhos. Os netos parecem ser a redenção para pais que amaram de menos, trabalharam demais, foram duros e insensíveis. Agora se derretem com os bebês dos filhos. Devia ter sido mais relaxado, parecem dizer.


Tenho medo que minhas filhas sejam fúteis, comprometidas apenas com o próprio bem estar sem olhar ao redor. Tenho medo que valorizem o material, que não façam bons amigos. Quero que sejam bem sucedidas na profissão que escolherem, é claro, e não sofram desilusões amorosas. Sou estressado demais, sem dúvidas. Preocupado demais.


Devo ser menos pai e mais vô? Ou cada um tem a sua função? Devo estressar minhas filhas para que sejam boas e cumprir minha função de avô mimando meus netos? Terei netos? Ou ficarei esperando em vão o momento de amar crianças sem preocupações, como aquele avô me disse ser possível?


Amor de pai e mãe é cheio de culpa. Não sabemos nunca se estamos certos. Não sabemos se estamos mimando demais ou abraçando de menos. Se estamos formando anjos ou monstrinhos. Se seremos pais orgulhosos ou envergonhados. A insegurança nos acompanhará por anos. Até que nossos filhos cresçam e nos mostrem onde erramos e onde acertamos. Nossos netos serão nossa redenção.



 

#dia dos avós




Na construção de dias melhores, o perdão é essencial. 
Perdoar não é esquecer, é seguir sob outro ponto de vista. 
Não é a vingança que faz de você uma pessoa mais forte; o perdão que faz.

Villy Fomin

 


Vocês não sabem que dentre todos os que correm no estádio, apenas um ganha o prêmio? Corram de tal modo que alcancem o prêmio”.

 

(1 Coríntios 9:24)

domingo, 25 de julho de 2021

me abraça?

 


Há alguns dias uma pessoa muito querida perdeu o marido repentinamente. Há poucos meses uma amiga dos tempos de colégio perdeu a mãe. Nas duas situações acima e em muitas outras parecidas que vivenciei desde que entramos na pandemia, eu experimentei uma tristeza indescritível por não poder abraçar essas pessoas que sofriam pela perda dos seus entes queridos. Imagino que você também tem vivido situações parecidas.


Tenho sentido falta de caminhar livremente na rua como qualquer outra pessoa. Tenho sentido falta de muitas coisas, mas tenho sentido muita falta do abraço.


Gostaria de poder abraçar os meus amigos que sofrem neste momento, seja pela perda de alguém, seja pela perda de um emprego ou talvez porque paralisaram seus projetos. Também gostaria de ser abraçada pelas perdas que tive e, claro, gostaria de abraçar os amigos que venceram batalhas ou tiveram alguma conquista.


É que abraços falam! E a fala do abraço diz tudo! Abraço é amor em gesto. Abraço é a forma mais singela de dizer ao outro eu estou aqui”.


Viver impossibilitado do abraço é não poder expressar ao outro que estamos aqui, que temos ombros, colo e braços à disposição.


Viver impossibilitado do abraço é podar nossos braços de dizerem o que há de mais puro dentro de nós.


Tenho sentido falta daquele abraço demorado e silencioso que fala por si!


Por não poder fazê-lo, eu me recolho em mim e daqui do meu canto abraço, em pensamento, as pessoas que eu gostaria de abraçar neste momento.


E como tudo na vida tem um aprendizado, descubro que não poder abraçar me permitiu exercer um sentimento nobre, a compaixão.


Segundo o dicionário, compaixão é a nossa participação espiritual na felicidade ou na infelicidade alheia que suscita num impulso altruísta de ternura para com a outra pessoa.


Assim sendo, sigo compadecida daqui... e com ternura envio abraços demorados para quem eu não pude abraçar de verdade.


E enquanto a minha compaixão silenciosamente te abraça, posso te garantir, seu abraço continua guardado para você.


Me abrace você também e seguiremos aquecidos de alguma forma!


escritor mesmo

 


Sempre me considerei uma mulher adaptável.  Me convide para um baile na corte ou um churrasco na laje, e me sentirei em casa pelo simples fato de estar bem assentada em mim.  O que vier eu destrincho, desdobro.


Isso até outro dia, quando voltei a frequentar a única espécie de roda que me faz tremer na base: a dos festivais literários.  No início correu tudo bem, conversei com colegas que conhecia de vista ou de nome, rimos muito, viramos uma turma, mas houve um momento em que os astros deram uma pirueta nos céus e desconfiguraram a cena: sem entender como, fui parar numa mesa de restaurante com três figurões da literatura com quem nunca havia interagido antes.  Calma, qual o espanto?  É só participar do papo, você já fez isso mil vezes.


Aí é que está.  O papo foi sobre as variadas vertentes do judaísmo.  A filosofia alemã do século 18.  Os mais influentes documentários políticos da história.  As consequências da xenofobia francesa para a economia.  Quando escutei um deles declarar furiosoNem arrastado eu moraria em Paris, pedi licença, me levantei e fui ao encontro de uma blogueira divertida que amaria estudar em Paris, casar em Paris, ser infeliz em Paris.


Há gente que vive de escrever e há os escritores mesmo.  Aqueles da mesa eram escritores mesmo.  Alto padrão intelectual.  Colecionadores de prêmios.  Catedráticos viajados, virtuoses da língua, candidatos fortíssimos à Academia Brasileira de Letras.  Eu?  Uma penetra.  Mesmo.


Esse episódio me fez lembrar uma conversa que tive com um amigo da adolescência que convive comigo desde sempre, sabe a gaiata que sou, e que me disse que muita gente que não me conhece pensa que, se me levar a um restaurante, vai ter que enfrentar essa mesma discussão filosófico-cultural.  Dei risada.  Ele me olhou bem sério e disse que não era brincadeira: escritores assustam, ele garantiu.  Quase chorando, perguntei: isso significa que estou ferrada?  Ele me abraçou e disse: está, amiga.  Se quiser sair e namorar, entre no Facebook e procure a turma da praia, do colégio, do clube, do bairro, aqueles que conviveram com você antes de você ter dado certo.


Fiquei tão desolada que ele me pagou outra cerveja.


Era machista sua avaliação, mas, quando me vi cercada pelo grupo erudito, entendi.  Se aquela era a imagem que se fazia dos escritores, coitados de nós.  Estávamos em maus lençóis.  Quem se aproximasse acreditaria estar condenado a debates e palestras até durante o bem-bom.


Há os escritores mesmo, cuja sabedoria sobressai desde o aperitivo até a sobremesa (e têm todo o meu respeito), e há aqueles que apenas tiveram o privilégio de publicar seus textos e que dão pitacos sobre cultura pop, cinema, viagens, televisão, futebol, encrencas, roubadas, amores, alegrias, assumindo o mundanismo que os constitui.  Não sou uma escritora mesmo.  Não sou nada que mereça omesmocomo reforço.  Meio baile na corte, meio churrasco na laje.  Mesmo, mesmo, bem intencionada – e só.


#dia do escritor



 

 


Mas alguém perguntará: Como é que os mortos são ressuscitados? Que tipo de corpo eles vão ter?Seu tolo! Quando você semeia uma semente na terra, ela só brota se morrer.

(...)

Pois será assim quando os mortos ressuscitarem. Quando o corpo é sepultado, é um corpo mortal; mas, quando for ressuscitado, será imortal. Quando ele é sepultado, é feio e fraco; mas, quando for ressuscitado, será bonito e forte.


1 Coríntios 15:35-36; 42-43

sábado, 24 de julho de 2021

esquecimento

 


A morte mesmo é o esquecimento: enquanto eu abrir as portas do sonho para ele entrar, meu amigo continuará existindo”. Bela e verdadeira essa expressão de Martha Medeiros.

 

As pessoas só morrem quando nós as esquecemos; quando elas não aparecerem mais nem nos nossos sonhos. Enquanto existir na nossa lembrança, ou nos nossos sonhos, um fio da presença daquela pessoa, ele não morreu para nós. Por essa razão, não é a morte que nós tememos, mas o esquecimento. Lembrar-se dos amigos, dos parentes e dos familiares, mesmo que seja apenas vez por outra, nos dá a certeza da sua existência. O dia em que esquecermos definitivamente de alguém, ou formos esquecidos, aquele alguém morreu para nós e nós morremos para aqueles que nos esqueceram.

 

É compreensível porque muitas pessoas vão ao cemitério no dia de finados e levam flores. Elas estão dizendo com esse gesto que não esqueceram os seus entes queridos. Ou então, por que guardamos fotos, cartas, objetos de pessoas que passaram pela nossa vida? É que de alguma forma elas continuam existindo, mesmo que não estejam por perto, ou que não estejam mais fisicamente nesse mundo. Cada vez que vemos algo de uma pessoa que passou pela nossa vida, ou alguma coisa relacionada a ela, ela revive na nossa lembrança e por isso continua a existir de alguma forma.

 

Às vezes essa lembrança é motivada por uma música, um perfume, uma comida, ou mesmo um lugar. Tudo isso são fatores que despertam a lembrança e trazem de volta aquela pessoa. Se o esquecimento é a morte, a lembrança é a vida. Quando alguém nos dá um presente, por mais simples, esse alguém nos está dando uma lembrança. E é bem essa a expressão:é só uma lembrança”, diz a pessoa ao dar um presente. Só uma lembrança? Dizemos, ou ouvimos isso como se fosse pouco. Lembrar-se de alguém não é pouco. É tudo, é a vida. Quando alguém nos dá uma lembrança, esse alguém está pedindo para não ser esquecido, está pedindo para viver. É um clamor para que não a matemos em nós, pois se a esquecermos, ela deixa de existir.

 

Procuro lembrar sempre dos amigos e de pessoas que de certa forma cruzaram um dia o meu caminho, a minha vida, mesmo que eu não tenha mais nenhum tipo de contato com ela, a não ser na lembrança; mesmo que não troquemos cartas, e-mails, telefonemas, mensagens ou sinal de vida. De alguma forma estou em sintonia com ela pela lembrança, mesmo que essa lembrança surja esporadicamente, ou só da minha parte. Uns mais, outros menos, mas sempre, de alguma forma, muitas pessoas são revividas na nossa lembrança. Quando nós nos lembramos de alguém, essa pessoa passa a ocupar um espaço reservado somente para ela e ela se torna única, exclusiva e eterna enquanto durar a lembrança.

 

Nada é pior que o esquecimento, pois todo esquecimento é uma forma de morte. Paradoxalmente falando, as pessoas que sofrem do mal de Alzheimer vivem uma espécie de morte. Elas não se lembram de pessoas íntimas, de familiares e de amigos próximos. Às vezes não se lembram de filhos, de irmãos, de esposo ou esposa, e isso é muito doloroso. É doloroso para quem não se lembra, porque vive uma espécie de exílio dentro da própria casa, com estranhos, e é doloroso para quem convive com a pessoa portadora dessa doença, porque a reconhece, mas não é reconhecido por ela. A pessoa sem lembrança quer ir para casa, mesmo estando dentro dela; quer ver os filhos, mesmo estando com eles a sua volta. Os que estão a sua volta sofrem a dor do esquecimento.

 

Enfim, ninguém quer ser esquecido. Tudo o que somos e fazemos consiste numa luta incansável para ser visto, reconhecido, lembrado. A eternidade é a lembrança. Enquanto existir lembrança, a pessoa existe. Quando se apagam as lembranças, aqueles, cujas lembranças foram apagadas, morreram para os que deles não se lembram. Sendo o esquecimento algo doloroso, é mais doloroso ainda quando somos esquecidos pelas pessoas que amamos, por aquelas que na nossa vida têm algum valor.

 

Chico Buarque diz quea saudade é o pior tormento, é pior do que o esquecimento”. Não concordo! A saudade pode ser um tormento, mas ela não é pior do que o esquecimento. A saudade é a dor dos que estão vivos, dos que existem, dos que são lembrados. O esquecimento é a dor dos mortos, dos que não existem mais, dos que se apagaram de alguma forma e essa é a pior dor.

 

Padre José Carlos Pereira



 

 


Se a nossa esperança em Cristo só vale para esta vida, nós somos as pessoas mais infelizes deste mundo.


1 Coríntios 15:19

terça-feira, 20 de julho de 2021


 

#dia do amigo


sábado, 17 de julho de 2021

viver o luto para não viver de luto

 


Acordar. Respirar. Pensar. Existir. Não há um verbo que não doa durante o luto. Talvez dormir alivie, que é quando a dor adormece. Momento em que o medo desperta: será preciso enfrentar o dia seguinte.

 

Perder quem amamos é morrer um pouco, mesmo que o coração insista em bater. O luto nos torna um lugar ruim. Queremos fugir de nós mesmos, emprestar outra vida, perder a memória, trocar de papel. Qualquer coisa que nos tire a dor com a mão, que nos salve do horror de sentir que alguém foi amputado de nós. Não há alívio imediato.

 

A morte é uma verdade disfarçada de absurdo. Não se arrepende, não volta atrás, é desfecho. O verdadeiropara sempre. É telefone que não toca, silêncio que ensurdece, pesadelo que não acaba, falta que jamais deixará de ser.

 

Enlutar-se é se mudar para uma espécie de cela blindada, da qual saímos somente para intermináveis e dolorosos banhos de sol. Uma solitária para a qual queremos voltar logo – embora triste e sombria, ela ainda é o lugar onde nos sentimos menos desconfortáveis.

 

Eu me lembro de vagar pela cidade como numa cena sem áudio. Olhava ao redor e me perguntava com que direito as pessoas sorriam, se dentro de mim as luzes estavam apagadas. É assim até que a gente se acostume. A morte se repete muitas vezes. Ao acordar, está lá a morte de novo. A cada lembrança, outra morte. Até que em nós ela morra de fato — e isso demora.


O que mais doía no luto era não conseguir que as pessoas sentissem a minha dor. Falei compulsivamente. Escrevi de forma obsessiva. Até que as pessoas também chorassem. E elas choraram – mais as suas dores que as minhas, é verdade, mas isso também é empatia. E quando cada momento latente de falta se transformava em um texto delicado, quando as palavras conseguiam fazer o outro vestir a minha dor, a tristeza virava alegria: que alívio me sentir compreendida. Numa espécie de alquimia incidental, transmutei dor em sorriso.

 

Veja você como a vida é chegada numa ironia: o luto é praticamente um parto. É preciso reaprender a viver sem a pessoa que se foi, como quem nasce de novo – e quem permanecerá o mesmo? Viver o luto é renascer – e nascer é exercício solitário. É preciso olhar o mundo novamente e re-conhecer-se diante dele.

 

Mas, como criança que cresce, o luto demanda tempo. Enquanto isso, não sai por aí despertando sorrisos. Num mundo programado para a felicidade, o luto constrange. Abre um hiato de mal estar. A morte é certeza demasiado espinhosa para que se toque nela com naturalidade.

 

O momento menos solitário talvez seja a primeira semana, o primeiro mês, enquanto duram os rituais de despedida. Passam-se alguns dias e todos retomam suas vidas. Ninguém mais quer falar sobre isso. A não ser o próprio enlutado, que não quer falar de outra coisa. Agora é que a dor vai começar. E parece que não vai parar nunca. Talvez fique para sempre mesmo: a perda vai se alojando no corpo, como uma bala encapsulada, até não incomodar mais. Com paciência, o tempo muda os afetos de lugar. Passa a morar em mim quem se foi.

 

E então a dor me leva a outros lugares. Abre meus olhos, me ensina a mudar de assunto. E assim, distraidamente, vai me mostrando a vida de novo – agora outra, porque sempre é tempo para mudar.

 

A perda pede recolhimento como um pós-operatório, ou reincide. A ferida se abre de novo. É preciso respeitar o luto (e entregar-se a ele, sem medo) até que chegue sua hora de ir embora. Cada um descobre sua forma de colocar a dor para trabalhar em outra direção. A falta pode ser, então, bastante reveladora.

 

Quando pequenos, aprendemos com os livros infantis. Depois de adultos, as pessoas que se vão passam a nos fazer pensar sobre nossas vidas. Lembram-nos a urgência de amar quem está vivo e perto. E ensinam que fazer escolhas não precisa ser tão sofrido, nem carece do peso da certeza de ser para sempre. Nenhum de nós é para sempre.



 


Chora ao teu Deus se não podes compreender

Rasga este véu do calvário que te envolveu

Tão sublime segredo se esconde

Nesta dor que escurece o horizonte

Que por hora impede os teus olhos de contemplarem

O eterno presente do tempo

 

Mesmo quando o que amamos foi embora

A saudade eterniza a presença de quem se foi

Com o tempo esta dor se aquieta

Se transforma em silêncio que espera

Pelos braços da vida um dia reencontrar

 

 


Seja o teu amor o meu consolo,

conforme a tua promessa ao teu servo.

 

Salmos 119:76

quinta-feira, 15 de julho de 2021


#dia internacional do homem

quarta-feira, 14 de julho de 2021



Imagine que você está à beira-mar e vê um navio partindo.

Você fica olhando, enquanto ele vai se afastando, cada vez mais longe, 

até que finalmente aparece apenas um ponto no horizonte.

Lá o mar e o céu se encontram.

E você diz: Pronto, ele se foi”.

Foi aonde? Foi a um lugar que a sua visão não alcança. Só isso.

Ele continua tão grande, tão bonito 

e tão imponente como era quando estava perto de você.

A dimensão diminuída está em você, não nele.

E naquele momento em que você está dizendo:Ele se foi”, 

há outros olhos vendo-o aproximar-se 

e outras vozes exclamando com alegria:Ele está chegando”.


Henry Sobel



Nasceu só.
Viveu só.
Morreu só.
E só.


 

 


Registra, tu mesmo, o meu lamento;

recolhe as minhas lágrimas em teu odre;

acaso não estão anotadas em teu livro?

 

Salmos 56:8

terça-feira, 13 de julho de 2021

13/07



 #dia mundial do rock

vida e morte


Eu sempre acho que, às vezes, a gente vive tão mal. Às vezes, a gente precisa perder as pessoas para descobrir o valor que elas têm. Às vezes, as pessoas precisam morrer para gente saber a importância que elas tinham e, isso me aconteceu.

Estava eu, na minha casa de manhã, quando recebi um telefonema que minha irmã estava morta. Minha irmã mais nova, cheia de vida, de repente não existe mais.

Fico pensando que, na vida, o ensinamento mais doído seja esse... quando nós já não temos mais a oportunidade de fazer alguma coisa. E o inferno talvez seja isso, a impossibilidade de mudar alguma situação.

Quando as pessoas morrem, já não há mais o que dizer, porque mortos não podem perdoar, mortos não podem sorrir, mortos não podem amar, nem tão pouco ouvir de nós que os amamos.

Eu me lembro que uma semana antes de minha irmã morrer, ela havia me ligado. Foi a última vez que eu falei com ela e me recordo que naquele dia, eu estava apressado, muita coisa para fazer e fiz questão de desligar o telefone rápido. 
Sabe quando você fala, mas fala na correria porque você tem muita coisa pra fazer?

E foi assim... se eu soubesse que aquela era a última oportunidade de ver minha irmã, de olhar nos olhos dela, de falar com ela, eu certamente teria esquecido toda a pressa, porque, quando a vida é assim e você sabe que é a última oportunidade, você não tem pressa pra mais nada, já não há mais o que fazer, e essa é a beleza da última ceia de Jesus.

Não há pressa, o momento é feito para celebrar, a mística da última ceia está ali, Jesus reúne aqueles que pra ele tinha um valor especial, inclusive o traidor estava lá.

E eu descobri com isso, com a morte da minha irmã, que eu não tenho o direito de esperar amanhã pra dizer que amo, pra perdoar, para abraçar, dizer que é importante que é especial.

Não! O amanhã eu não sei se existe, mas o agora eu sei que existe e, às vezes, na vida nos perdemos… 
Eu me lembro quantas vezes na minha vida de irmão com ela, nós passávamos uma semana sem nos falarmos, por que houve uma briga, uma confusão, a gente se dava ao luxo de passar uma semana sem se falar, e hoje eu não tenho mais nem 5 minutos pra conversar com alguém que foi importante, que foi parte de mim.

Não espere as pessoas morrerem, irem embora, não espere o definitivo bater na sua porta. Nós não conhecemos a vida e não sabemos o que virá amanhã. Viva como se fosse o último dia da sua história. 
Se hoje você tivesse que realizar a sua última ceia, porque é conhecedor que hoje é o último dia de sua vida, certamente você não teria tempo pra pressa.


Você celebraria até o fim e gostaria de ficar ao lado de quem você ama. 
Viver o cristianismo, é fazer a dinâmica da última ceia todos os dias.
Viva como se fosse o último dia da sua vida, viva como se fosse a última oportunidade de amar quem você ama, de olhar nos olhos de quem pra você é especial.

E, depois que minha irmã morreu, um tempo bem passado, eu descobri porque eu gostava tanto dessa música que vou cantar agora, ela não fala de um amor que foi embora, o compositor fez para a filha que morreu em um acidente, então, fica muito mais especial cantá-la e descobrir o cristianismo que está no meio das palavras, por que é assim, quando o outro vai embora é que a gente descobre o tamanho do espaço que ele ocupava.

Não sei por que você se foi
Quantas saudades eu senti
E de tristezas vou viver
E aquele adeus não pude dar…
Você marcou na minha vida
Viveu, morreu
Na minha história
Chego a ter medo do futuro
E da solidão
Que em minha porta bate…
E eu!
Gostava tanto de você
Gostava tanto de você…
Eu corro, fujo desta sombra
Em sonho vejo este passado
E na parede do meu quarto
Ainda está o seu retrato
Não quero ver pra não lembrar
Pensei até em me mudar
Lugar qualquer que não exista
O pensamento em você…
E eu!
Gostava tanto de você
Gostava tanto de você…
Eu gostava tanto de você!


Agora, o triste da música, é que a gente precisa conjugar o verbo no passado, a pessoa já morreu, já não há mais o que fazer, mas não tem nenhum sofrimento nessa vida que passe por nós sem deixar nenhum ensinamento… tem que nos ensinar, não dá pra sofrer em vão, alguma coisa a gente tem que extrair… extraia o sofrimento e descubra o ensinamento.

Se ele algum dia me tocou e me deixou algum ensinamento eu faço questão de partilhá-lo com você agora. 
Depois da morte da minha irmã eu faço questão de viver a vida como se fosse o último dia.

Já que o passado é coisa do inferno e a gente não tá no passado, muito menos no inferno, resta a possibilidade de mudar o verbo de trazê-lo para o presente e de cantá-lo olhando para as pessoas que são especiais, quem sabe cantando pra ela nesse momento… se ela tá do seu lado, se você tem algum amigo que mereça ouvir isso de você, alguém que faz diferença na sua história… ao invés de você dizer que gostava, você diz que gosta!

Vamos mudar o verbo! Vamos amar a vida! Vamos amar as pessoas antes que elas vão embora!

E eu… Eu gosto tanto de você! Eu gosto tanto de você!