A gente tem que morrer
tantas vezes durante a vida
Que eu já tô ficando
craque em ressurreição.
Bobeou eu tô morrendo
Na minha extrema pulsão
Na minha extrema-unção
Na minha extrema menção
de acordar viva todo dia
Há dores que sinceramente
eu não resolvo
sinceramente sucumbo
Há nós que não dissolvo
e me torno moribundo de
doer daquele corte
do haver sangramento e
forte
que vem no mesmo malote
das coisas queridas
Vem dentro dos amores
dentro das perdas de
coisas antes possuídas
dentro das alegrias
havidas
Há porradas que não tem
saída
há um monte de “não
era isso que eu queria”
Outro dia, acabei de
morrer
depois de uma crise sobre
o existencialismo
3º mundo, ideologia e
inflação...
E quando penso que não
me vejo ressurgida no
banheiro
feito punheteiro de
chuveiro
Sem cor, sem fala
nem informática nem
cabala
eu era uma espécie de
Lázara
poeta ressucitada
passaporte sem mala
com destino de nada!
A gente tem que morrer
tantas vezes durante a vida
ensaiar mil vezes a séria
despedida
a morte real do
gastamento do corpo
a coisa mal resolvida
daquela morte florida
cheia de pêsames nos
ombros dos parentes chorosos
cheio do sorriso culpado
dos inimigos invejosos
que já tô ficando
especialista em renascimento
Hoje, praticamente, eu
morro quando quero:
às vezes só porque não
foi um bom desfecho
ou porque eu não concordo
Ou uma bela puxada no
tapete
ou porque eu mesma me
enrolo
Não dá outra: tiro o
chinelo...
E dou uma morrida!
Não atendo telefone,
campainha...
Fico aí camisolenta em
estado de éter
nem zangada, nem
histérica, nem puta da vida!
Tô nocauteada, tô
morrida!
Morte cotidiana é boa
porque além de ser uma pausa
não tem aquela ansiedade
para entrar em cena
É uma espécie de venda
uma espécie de encomenda
que a gente faz
pra ter depois ter um
produto com maior resistência
onde a gente se recolhe
(e quem não assume nega)
e fica feito a justiça:
cega
Depois acorda bela
corta os cabelos
muda a maquiagem
reinventa modelos
reencontra os amigos que
fazem a velha e merecida
pergunta ao teu eu: “Onde cê tava? Tava sumida, morreu?”
E a gente com aquela cara
de fantasma moderno,
de expersona falida:
- Não, tava só deprimida.