"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



domingo, 30 de agosto de 2020




 “Que na esquina de todas as dores, o amor seja o aconchego, o colo de que necessitamos. 
  Que na travessia da solidão, haja o preenchimento de nós mesmos como a melhor companhia e que não nos falte amparo quando o abraço esperado estiver longe.”

os sem-máscara



Eles surgem em número cada vez maior, principalmente nos finais de semana. Não que não deem o ar da sua graça também nos dias úteis. Basta apenas que o sol se mostre, despudorado, assim que nasce a manhã.

Nos parques, nas praças, nas ruas, eles sentam ao sol, cuia em uma mão, celular na outra. A conversa está tão boa que, distraídos, às vezes sorvem o celular e sorriem para a cuia, apontada para uma selfie. Carentes de contato humano, sentam próximos uns dos outros, bem próximos mesmo, ombro tocando ombro. Nada como aproveitar as alegrias do convívio.

Eles caminham pelas ruas, destemidos. Fazia tempo, foi um longo e úmido inverno. Agora, indiferentes a recomendações e conselhos, aproveitam o prazer do vento nos seus rostos nus. Tem maior atentado à moral e aos bons costumes que esse, nos dias de hoje?

Eles, os sem-máscara, sem distanciamento e - porque vem junto no pacote - sem consideração pelos outros, acham que o mundo ainda é aquele velho lugar que conheceram. Que o vírus é invenção da China, coisa de comunista. E que basta usar vermífugo e remédio para lúpus que tudo, tudo passa. Bem, nem todos pensam assim. Mas quem desistiu da máscara merece ser colocado no mesmo saco.

Qual o problema em usar?

Ah, é que dói a minha orelha. Meu filho, minha filha, tem modelos de todos os jeitos. Impossível que um com a tira mais larguinha, ou mais elástica, ou que amarre atrás da cabeça, impossível que não exista alternativa para a tua orelha. Deixa de frescura, bota logo essa máscara porque, não demora, nós vamos chegar a 150 mil mortos.

Ah, é que me dá agonia, não consigo respirar direito. Meu querido, minha querida, e por isso tu vais te arriscar a contaminar geral, perdigotando na cara alheia? Conheço muita gente, muita mesmo, que teve contato com a doença sem sintomas. Meu filho só soube por que o exame sorológico acusou anticorpos. Para sorte dos outros, ele não pisa fora da porta sem máscara. Deixa de ser egoísta, bota logo essa máscara porque, não demora, nós vamos chegar a 150 mil mortos.

Ah, eu gosto de mostrar o meu rostinho lindo para os outros. Meu cidadão, minha cidadã, manda selfies, manda nudes, manda brasa no Instagram, mas bota logo essa máscara porque, não demora, nós vamos chegar a 150 mil mortos.

Ah, eu sei que, no tocante a isso daí, essa questão é só para criar pânico, para falir o comércio, para acabar com a nossa indústria, coisa de alarmista, não passa de uma gripezinha, um resfriadinho, quem tem histórico de atleta não sente nada e quem pegar é bundão. Meu correligionário, minha correligionária, vírus não tem a ver com política. Cada um acredita no que quiser - é o ônus da democracia, na boa definição do Ciro Gomes -, mas a saúde pública não tem dois lados. Estamos todos na mesma. Custa botar logo essa máscara porque, não demora, nós vamos chegar a 150 mil mortos?

O pior é que alguns países que já davam a conta por liquidada, viram, aparentemente do nada, o surgimento de novos casos. Nova Zelândia e Espanha, por exemplo. De Hong Kong - que tem pela China a mesma ojeriza que o inesquecível Weintraub - veio a notícia de um possível caso confirmado e acompanhado de reinfecção. A coisa não é brincadeira, é feia e vem se debruçando. Bota logo essa máscara porque, não demora, nós vamos chegar a 150 mil mortos.

Meu consagrado, minha consagrada: custa pensar um pouquinho nos outros?

Claudia Tajes



“A morte não existe, a gente só morre quando nos esquecem; se puder recordar-me, estarei sempre contigo”.

(Isabel Allende)

Salmos 145:17-18
#diariocomdeus_

sábado, 29 de agosto de 2020

Bolsonaro nos ama



Um dos maiores problemas de Bolsonaro é que ele se importa demais com o que a imprensa diz a seu respeito. Ele queria ser amado pelos jornalistas, queria que todos o elogiassem e o aplaudissem, mas não é assim que acontece, então ele se revolta, perde o controle e fala besteira.

Nesta segunda-feira, Bolsonaro estava se autoelogiando, lembrando do seu “histórico de atleta”, ao que atribui o fato de ter se curado da covid-19, e então não se aguentou: teve que assacar contra os jornalistas. Mandou: "Quando (a covid) pega num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor".

Ou seja: morre de covid-19 quem é bundão.

Diogo Mainardi, ao saber da declaração de Bolsonaro, gravou um vídeo compassivo diante das águas da Lagoa de Veneza. Lembrou que seu pai, Ênio Mainardi, morreu de covid-19, e perguntou se tinha o direito de sentir vontade de socar a boca do presidente da República, como o presidente da República disse ter vontade de fazer com um jornalista naquele mesmo dia.

É evidente que Diogo Mainardi, vivendo a dor de um filho que perdeu o pai, tem o direito de sentir vontade de socar a boca de Bolsonaro. Familiares e amigos de outros 115 mil brasileiros que morreram de covid devem estar sentindo o mesmo. Portanto, neste exato momento, centenas de milhares, talvez milhões de brasileiros estejam odiando Bolsonaro por uma única declaração absurda que ele fez.

Ainda assim, Bolsonaro seguirá emitindo tolices, porque ele simplesmente não consegue entender que falar em público é diferente de falar em particular, sobretudo quando quem fala é presidente da República. Bolsonaro acredita que está sendo autêntico quando ofende pessoas ou diz palavrões, e na verdade está sendo apenas grosseiro. Essa grosseria faz com que ele seja criticado pela imprensa, o que o machuca e provoca nova reação destemperada e nova crítica.

Está certo que todos os presidentes se queixaram da imprensa. Todos. Lula chegou a sonhar com o que chamava de “regulação”, um eufemismo para censura. Mas nenhum, nem os “impichados” Collor e Dilma, nem o impopular Temer, nenhum se abalou tanto com a opinião dos jornalistas quanto Bolsonaro.

É algo curioso, porque Bolsonaro está cercado de bajuladores. Eles o chamam de “mito”, veja só. Eles, exatamente como os lulistas, não conseguem ver nele nenhuma falha, como se Bolsonaro fosse uma espécie de super-herói. Mas não é suficiente. Bolsonaro anseia por um elogio mais do que todos os outros: o elogio dos jornalistas.

Ora, você não pleiteia o afeto de quem despreza. Só lhe causa aflição a malquerença de quem você deseja. Com o que, concluo que essa insistência de Bolsonaro em atacar jornalistas não é ódio; é amor. Mas o amor dos espíritos primitivos, como o homem que, não admitindo a rejeição da mulher, tenta matá-la: “Se você não vai ser minha, não será de mais ninguém!” Para esse homem paleolítico, a mulher tem obrigação de amá-lo tão somente porque ele quer - ele acha que tem méritos e que é dever dela reconhecê-los. Se ela não reconhece, ela é que está errada.

Bolsonaro é assim. Bolsonaro é um homem sem requintes. Em sua compreensão de mundo, ele acredita que tem direito a todos os louvores. Ele olha para a imprensa cheio de angústia esperançosa, ele quer aprovação, quer carinho, e só encontra censura. Então, sofre. Sofre por amor. Bolsonaro ama a imprensa de uma forma como a imprensa jamais foi amada. Compreendo a dor de Bolsonaro. É a dor que desatina sem doer, é um descontentamento contente, é uma ferida que dói e que se sente, é o fogo que arde sem se ver.

__David Coimbra



Salmos 121:4-6
#diariocomdeus_

quinta-feira, 27 de agosto de 2020


#dia do psicólogo

seu terapeuta é feliz?



Outro dia acompanhei uma conversa instigante.

Em meio a um grupo, uma mulher comentou o quanto havia ficado desconcertada ao saber que sua analista não era feliz. Havia se tratado com ela por três anos, nada sabia da vida íntima da profissional com quem tanto havia desabafado e agora, depois de muito tempo, havia descoberto que a analista tinha problemas pessoais e que inclusive havia tentado o suicídio uma vez.

A tentativa de suicídio me pareceu um acréscimo sensacionalista à história, mas, desconsiderando esse detalhe, me concentrei na fantasia que alimentamos a respeito desses profissionais.

Eles ajudam a amenizar nosso sofrimento emocional, a tomar decisões necessárias para que a vida destrave, a compreender e perdoar nosso passado, a vencer medos e traumas, enfim, fazem uma assistência técnica básica. Para que o processo dê resultado, contam com nossa sinceridade e confiança, e é por isso que despejamos, sem reservas, tudo aquilo que ocultamos até de nós mesmos. Declaramos abertamente nossas fraquezas, recalques, frustrações, taras, dificuldades. O que esperamos em troca ? Que eles já tenham resolvido todas essas questões em suas próprias vidas para que possam se concentrar na nossa.

É um delírio, mas ficamos mais descansados assim. Até que um dia descobrimos, sabe-se lá como, que aquela criatura que parecia acima do bem e do mal, é uma pessoa que bebe muito, que não consegue manter relações afetivas por mais de seis meses, que já atropelou um cachorro e fugiu, que sofre até hoje por um grande amor perdido, que tem medo de andar de elevador, que coleciona multas de trânsito, que não fala com um irmão há sete anos.

Isso significa que ele não é feliz ? Apenas significa que é mais parecido com um ser humano do que com Deus.

Eis a encrenca: ele não pode ser parecido com um ser humano, ou seja, conosco. Se não resolveu suas próprias tranqueiras, que habilidade terá para lidar com as tranqueiras dos outros ? Não admitimos que ele enlouqueça de ciúmes, que tenha vaidades, que guarde segredos, que morra de sono no meio da tarde, que sinta tédio, raiva, claustrofobia. Não pode estar atolado em dívidas, não pode ter um botão faltando na camisa, não pode fumar, não pode atrasar, não pode chorar.

Ele não pode ter uma vida, apenas uma carreira. Têm que fixar residência no consultório e estar sempre a nossa espera de banho tomado e alma lavada. Encontrá-lo com um carrinho lotado de cerveja na caixa do supermercado exigirá de nós muito autocontrole.
Desejamos que nossos terapeutas sejam perfeitos, e é por isso que eles costumam acertar no nosso diagnóstico: no fundo, somos todos uns narcisistas.



“A pessoa que desabafa com você precisa da sua ajuda e não do seu sermão.”


Salmos 103:8-10
#diariocomdeus_

terça-feira, 25 de agosto de 2020


#dia do soldado


“Não deixes que se morra o sol sem que tenham morrido teus rancores.”

Gandhi

ai de nós, quem mandou?


Mulheres ganham salários menores do que os dos homens, e líderes feministas seguem lutando para reverter essa injustiça. Mas já não sei se é boa ideia continuar batalhando por igualdade. Depois de ler o resultado de uma recente pesquisa feita pela Universidade de Harvard, fiquei inclinada a pensar que talvez seja melhor manter as coisas como estão. A pesquisa chama-se Schooling Can't Buy Me Love (Escolaridade não pode me comprar amor) e confirma que mulheres que estudam mais acabam progredindo e, quanto mais bem-sucedidas, menores as chances de se casar. Os homens ainda não estão preparados para abrir mão da superioridade que o papel de provedor lhes confere. E mesmo os mais antenados, que apoiam que suas mulheres sejam independentes, ficam inseguros se elas tiverem cargos de chefia e muita visibilidade. Ganhar dinheiro, tudo bem, mas aparecer mais do que eles já é desaforo.

Beleza. O que vamos dizer para nossas filhas? Estudem, mas fazer doutorado e mestrado é exagero, antes um bom curso de culinária. Tenham opiniões próprias quando conversarem com as amigas, mas em casa digam só “ahã”, para não se incomodar. Usem seu dinheiro para comprar roupas, pulseiras e esmaltes, esqueçam o investimento em viagens, teatro e livros. E, na hora de se declararem, troquem o “eu te amo” por “eu preciso de você”, “eu não sou ninguém sem você”, “eu não valho meio quilo de alcatra sem você”. Homens querem se sentir necessários. Só amados não serve.

Que encrenca que as feministas nos arranjaram. Estimularam o pensamento livre, a autoestima, a produtividade e a alegria de trilhar um caminho condizente com nosso potencial. De apêndices dos nossos pais e maridos, passamos a ter um nome próprio e uma vida própria, e acreditamos que isso seria excelente para todos os envolvidos, afinal, os sentimentos ficaram mais honestos, e com eles os relacionamentos. O amor deixou de ser o álibi para um lucrativo arranjo social. Passou a ser mais espontâneo, e as carências de homens e mulheres foram unificadas, já que todos precisam uns dos outros para dividir angústias, trocar carinho, pedir apoio, confessar fraquezas, unir forças no momento das dificuldades. Todos se precisam da mesma forma, não de formas distintas. Mas há quem defenda que homem só precisa de paparico e mulher de quem tome conta dela, punto e basta.

Nunca imaginei que em 2010 ainda estaria escrevendo sobre isso. Achei que os homens já tivessem percebido o quanto ganham em ter uma mulher inteira a seu lado, e não um bibelô. Acreditei que a competitividade tivesse dado lugar a um companheirismo mais saudável e excitante, onde todos pudessem se orgulhar dos seus avanços e se apoiar nas quedas, mas que iludida: isso é coisa pra meia dúzia de emancipada, filha. Essas mulheres aí que não cozinham, não passam, não lavam, só evoluem, essas não são exemplo pra ninguém, são umas coitadas de umas infelizes que pagam as contas e ainda se acham divertidas, se fazem de inteligentes, querem bater perna em Nova York, pois vão arder no fogo do inferno, vão amargar na solidão, vão se arrepender de ter lido aquela Simone de Beauvoir, vão morrer abraçadas aos seus laptops, aqui se faz, aqui se paga, escreve aí.

Tamo ferrada.

Jornal Zero Hora (25/08/2010)



NÃO SE PREOCUPE demais por causa dos perversos! Não fique com inveja dos maus e pecadores.
Logo eles murcharão e secarão como a erva.
Em vez disso, confie no Senhor e procure fazer o bem; viva tranquilamente em seu lugar e ponha a verdade em prática.
Faça do Senhor a sua grande alegria e Ele dará a você os desejos do seu coração.

Salmos 37:1,4 - Bíblia Viva

segunda-feira, 24 de agosto de 2020



Lembre-se de que não devemos humilhar ninguém.
Os erros que os outros cometem hoje, nós podemos cometê-los amanhã.
Não se julgue inatingível nem infalível.
Todos podem falhar.
Trate os outros com tolerância, para que possa reerguê-los, se errarem.
A perfeição não é desta terra.
Não exija dos outros aquilo que você também ainda não pode dar.

Livro Minuto de Sabedoria



Uma amiga nossa faleceu essa semana depois de alguns anos lutando contra o câncer. O que vamos nos lembrar da Pri é como ela estava sempre sorrindo. Ela tinha um daqueles sorrisos abertos. A gente via todos os dentes, a gente via os olhos sorrindo junto. A gente sentia o sorriso da Pri quando ela nos olhava e sentia uma vontade incontrolável de sorrir junto. A Pri era uma dessas pessoas que deixava o mundo mais feliz. Quando a conheci, já lutava contra um câncer agressivo, alternava dias muito ruins com dias um pouco melhores. Mas sorria o tempo todo. Um sorriso que iluminava o recinto. Nos disseram que ela sorriu até o fim.

“Amor fati”, como diziam os filósofos. Amor ao que me acontece. Amor ao meu destino. Receber tudo o que me acontece com amor. Não somente tolerar aquilo que me acontece. Não apenas suportar aquilo que me acontece. Amar o que me acontece. Seja bom ou seja ruim. Amar aquilo que me acontece. Um beijo. Um acidente. Um romance. Uma doença. Um filho. Uma perda. “Eu amo isso”, eles diziam. “Eu amo o que me acontece”. “Isso vai me deixar melhor”. “Eu amo tudo o que acontece comigo”. Na vida, não controlo as coisas, mas controlo como respondo à elas. Posso responder com raiva, ou com um sorriso. Um sorriso verdadeiro, que ilumina o recinto.

Por quanto tempo ainda vou reclamar daquilo que não controlo? Da chuva, do trânsito, dos outros? Que diferença faz? Não controlamos as coisas da vida, controlamos apenas como respondemos quando as coisas acontecem. O que faremos quando algo bom acontecer? O que faremos quando algo ruim ocorrer? Quando alguém faz algo que não gostamos? Quando o imprevisível acontece? O que faremos quando descobrirmos uma doença? Não controlamos o que nos acontece. Controlamos apenas a resposta que damos para o que nos acontece.

Acho a morte um desaforo. Um atrevimento. Dói quando alguém que faz bem ao mundo se vai. Gostaríamos que não tivessem existido, portanto? Claro que não. Os bons, quando morrem, nos lembram do que podemos ser. Se você ama alguém, um dia irá se despedir. Seria melhor não amar, portanto? Claro que não. O amor é o sentido da vida. Cada pessoa que amamos é um presente emprestado, mais cedo ou mais tarde se vai. Um dia seremos nós. Que se lembrem de nós como lembramos da Pri. O mundo era um lugar melhor com ela. Os que ficaram terão que ser um pouquinho melhores daqui por diante.



Provérbios 3:5,6
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domingo, 23 de agosto de 2020


otimismo ou pessimismo



Café da manhã, marido e mulher juntos, com o péssimo hábito de ver notícias. De vez em quando, um de nós se propõe a não ligar mais, tentar se alienar, muito mais saudável. Infelizmente não dá: somos habitantes deste planeta, as dores de todos são de todos de alguma maneira, a não ser que a gente seja da turma dos fúteis e desligados. E isso não se escolhe: a gente é, por nascimento e formação.

A mim me dói a menina estuprada, engravidada, posta sob a luz de holofotes irresponsáveis e tendo de fugir da sua cidade, amigas, família, para preservar alguma identidade.

A mim me machuca a dor de cada morador da Beirute que nunca visitei; a tristeza de cada neozelandês que vê desfeito o sonho de corona nunca mais.

A mim me aflige a ansiedade de cada aluno e pai de escolas e faculdades americanas que já reabriram suas salas e agora têm centenas de alunos, professores e funcionários contaminados ou em quarentena.

A mim me entristece e preocupa o Brasil, onde quase celebramos que um dia em vez de 1,2 mil mortos temos apenas 980. Talvez eu tenha dificuldade com a realidade: faz parte um pouco do folclore sobre escritores, poetas, artistas em geral.

ENGANO: sofrer com as realidades do mundo dos outros, das pessoas próximas, não é fantasia de artista: é a realidade que morde nosso calcanhar e sangra nosso coração.

Sim, parece que mortes pelo corona estão diminuindo um pouco por aqui. Aconteceu em países da Europa, na Nova Zelândia, na Austrália e em outros... apenas para tudo piorar quando se liberaram de novo as aulas, os bares, as praias, as lojas.

Não me considero sombria nem pessimista, mas me pergunto insistentemente: o que devemos fazer? Como proceder? Como escapar dos gurus, dos profetas, dos céticos ou dos irresponsáveis alegrinhos?

Não sei. Receio que ninguém saiba. Temo que a Peste do século 21 vai se desgastar por si, cansada de devorar humanos de todas as idades, de afastar grupos e famílias, de interromper carreiras e projetos, enfim fatigada com nossa incompetência, leviandade, fraqueza, falta de comando e seriedade... e, mesmo onde isso existiu, entediada com sua própria terrível força, imprevisibilidade e manobras sinistras.

Sim, hoje não estou nem poética, nem agradável, mas cansada, furiosa com tanto palavrório falso e danoso, quando milhares de pessoas ainda adoecem, muitas morrem, centenas de brilhantes cientistas do mundo inteiro se esforçam de maneira quase sobre-humana, médicos e enfermeiras se sacrificam e adoecem, enquanto uma parte de nós, pobre humanidade, pensa em festa, praia, passeio, reunião com a turma e viagens.

Desculpem, hoje não estou achando graça de muita coisa, exceto talvez da neve e da geada que recobrem e embelezam os gramados do meu Bosque em Gramado, onde escolhi não estar neste frio extremo: o vírus tem alguma autoridade sobre esta eterna rebelde: eu escolho a vida, se puder. Minha circunstância me pede isso.


Salmos 40:3
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quinta-feira, 20 de agosto de 2020



Não viajo para me encontrar, mas para me perder.
Descobrir que tudo que eu achava sobre os outros países estava errado.
Entender a pluralidade do ser humano e apreciá-la.
Viajo pelo deslumbramento em descobrir como há tantas pessoas vivendo vidas completamente diferentes da minha. E como a minha poderia ser diferente também.
Viajo para perceber que sou insignificante perto da imensidão do mundo e que ele continuará girando igualzinho, comigo ou sem.
A consciência do nosso tamanho no universo toma outra proporção e nossa pequenez nos fazer querer engrandecer a alma.
Viajo porque o ser humano é incrível demais (apesar de toda sua crueldade) e viajar me dá fé na humanidade.
Viajo porque quando sou do mundo sou mais eu. Porque quando parto de algum lugar, deixo um pouco de mim e assim construo um universo particular.
Viajo para compartilhar o pouco que tenho e levar comigo toda boa energia do caminho. Voltarei, um dia, cheia de luz.

a separação como ato de amor



É sabida a dor que advém de qualquer separação, ainda mais da separação de duas pessoas que se amaram muito e que acreditaram um dia na eternidade deste sentimento. A dor-de-cotovelo corrói milhares de corações de segunda a domingo — principalmente aos domingos, quando quase nada nos distrai de nós mesmos — e a maioria das lágrimas que escorrem é de saudade e de vontade de rebobinar os dias, viver de novo as alegrias perdidas.

Acostumada com esta visão dramática da ruptura, foi com surpresa e encantamento que li uma descrição de separação que veio ao encontro do que penso sobre o assunto, e que é uma avaliação mais confortante, ao menos para aqueles que não se contentam em reprisar comportamentos padrões. Está no livro “Nas tuas mãos”, da portuguesa Inês Pedrosa.

“Provavelmente só se separam os que levam a infecção do outro até aos limites da autenticidade, os que têm coragem de se olhar nos olhos e descobrir que o amor de ontem merece mais do que o conforto dos hábitos e o conformismo da complementaridade.”

Ela continua:
“A separação pode ser o ato de absoluta e radical união, a ligação para a eternidade de dois seres que um dia se amaram demasiado para poderem amar-se de outra maneira, pequena e mansa, quase vegetal.”

Calou fundo em mim esta declaração, porque sempre considerei que a separação de duas pessoas precisa acontecer antes do esfacelamento do amor, antes de se iniciarem as brigas, antes da falta de respeito assumir o comando. É tão difícil a decisão de separar que vamos protelando, protelando, e nesta passagem de tempo se perdem as recordações mais belas e intensas. A mágoa vai ganhando espaço, uma mágoa que nem é pelo outro, mas por si mesmo, a mágoa de se reconhecer covarde. E então as discussões se intensificam e quando a separação vem, não há mais onde se segurar, o casal não tem mais vontade de se ver, de conversar, quer distância absoluta, e aí se configura o desastre: a sensação de que nada valeu. Esquece-se o que houve de bom entre os dois.
Se o que foi bom ainda está fresquinho na memória afetiva, é mais fácil transformar o casamento numa outra relação de amor, numa relação de afastamento parcial, não total.

Se os dois percebem que estão caminhando para o fim, mas ainda não chegaram no momento crítico — o de se tornarem insuportavelmente amargos — talvez seja uma boa alternativa terminar antes de um confronto agressivo. Ganha-se tempo para reestruturar a vida e ainda se preserva a amizade e o carinho daquele que foi tão importante. Foi, não. Ainda é.

“Só nós dois sabemos que não se trata de sucesso ou fracasso. Só nós dois sabemos que o que se sente não se trata — e é em nome deste intratável que um dia nos fez estremecer que agora nos separamos. Para lá da dilaceração dos dias, dos livros, discos e filmes que nos coloriram a vida, encontramo-nos agora juntos na violência do sofrimento, na ausência um do outro como já não nos lembrávamos de ter estado em presença. É uma forma de amor inviável, que, por isso mesmo, não tem fim.”

É um livro lindo que fala sobre o amor eterno em suas mais variadas formas. Um alento para aqueles — poucos — que respeitam muito mais os sentimentos do que as convenções.



Salmos 46:4,5
#diariocomdeus_

terça-feira, 18 de agosto de 2020


quando não realizamos os nossos sonhos


Eu acordei pensando algo sério. Foi um pressentimento, uma autocrítica, uma descoberta que só encontramos na humildade mais funda.

O que mais desejamos na vida pode nunca acontecer. E não devemos nos desesperar.
Talvez viver não seja alcançar os objetivos. Nosso maior objetivo é estar sempre correndo atrás deles.

Talvez não tenhamos tempo de cumpri-los (quem é que sabe o tempo que nos resta?). Ainda assim passaremos adiante a nossa força de vontade.

Nem todos ficam para ver as suas alegrias realizadas. Ainda assim deixarão testemunhas de seu esforço.

Não há lembrança inacabada que não seja completada depois por um filho, por um amigo, por um amor. Nossas últimas páginas serão escritas pelos outros, que acompanharam as nossas batalhas silenciosas para manter inteira a personalidade. Não estaremos mais aqui, estaremos dentro deles. A saudade é uma inesperada sobrevida.

Mesmo não chegando ao lugar pretendido, persistirá o legado de sua teimosia, de sua curiosidade, de sua avidez em tentar de todos os jeitos e seguir adiante.

Exercitou a honestidade da busca, que é o melhor destino a ser alcançado.
Não é nenhum fracasso não concretizar aquilo que se pretendia, mas desistir por falta de confiança.

Se você não obteve os seus sonhos, pelo menos nunca parou de sonhar. Viveu sonhando.


Deita no chão. Agradece. Abraça. Perdoa. Respira fundo, olha ao redor e diz: “É formidável estar vivo”.

Os dias são longos, os anos são curtos. 
Passamos nossa vida repetindo as rotinas, preocupados com bobagens, irritados com insignificâncias. 

Os dias são longos e parecem intermináveis. Mas os anos são curtos e irrecuperáveis. 

Se você está vivo e saudável, e encontra afeto em alguém vivo e saudável, agradece. Diz. Aperta. Segura firme. 

Estamos juntos. Nesses dias longos demais, nesses anos curtos demais.


Salmos 100:1-3
#diariocomdeus_

domingo, 16 de agosto de 2020

debate filosófico


#dia do filósofo

o papagaio depressivo



Compraram o papagaio com a garantia que era um papagaio falador. Não calava a boca. Ia ser divertido. Não há nada mais engraçado do que que um papagaio certo? Aquela voz safada, aquele ar gozador. Mas este papagaio era diferente.

No momento em que chegou em casa, o papagaio rodeado pelas crianças. Dali a pouco um dos garotos foi perguntar ao pai:
— O quê?

O Papagaio estava citando Kierkegaard¹ para as crianças. Algo sobre a insignificância do Ser diante do Nada. E fazendo a ressalva que, ao contrário de Kierkegaard, ele não encontrava a resposta numa racionalização da cosmogonia cristã. O pai mandou as crianças se afastassem e encarou o papagaio.

— Dá a patinha, Louro.
Por quê? — disse o papagaio.
— Como, por quê? Porque sim.
Essa resposta não é aceitável. A não ser como corolário de um posicionamento mais amplo sobre a gratuidade do gesto enquanto…
— Chega!
Certo. Chega. Eu também sinto um certo enfado com a minha própria compulsão analítica. O que foi que disse o bardo? “O mundo está demais conosco.” Mas o que fazer? Estamos condenados à autoconsciência. Existir é questionar, como disse…

O pai tentou devolver o papagaio, mas não o aceitaram de volta. A garantia era de que o papagaio falava. Não garantiram que seria engraçado. E o papagaio, realmente, não para de falar. Um dia o pai chegou em casa e foi recebido com a notícia que a cozinheira tentara se suicidar. Mas como? A Rosaura, sempre tão bem disposta?

— Foi o papagaio.
— O papagaio?
— Ele encheu a cabeça dela. A futilidade da existência, a indiferença do Universo, sei lá.
Aquilo não podia continuar assim. Os amigos iam visitar, esperando se divertir com a conversa do papagaio depressivo.

No princípio riam muito, sacudiam a cabeça e comentavam: “Veja só, um papagaio filósofo…” Mas em pouco tempo ficavam sérios. Saíam contemplativos. E deprimidos.

— Sabe que algumas coisas que ele diz…
— Eu nunca tinha pensado naquela questão que ele colocou, da transitoriedade da matéria…

Os vizinhos reclamavam. O negativismo do papagaio enchia o poço do edifício e entrava pelas cozinhas. Como se não tivessem bastante preocupações com o preço do feijão, ainda tinham que pensar na finitude humana? O papagaio precisava ser silenciado.

Foi numa madrugada. O pai entrou na cozinha. Acendeu a luz, interrompendo uma dissertação crítica sobre Camus que o papagaio — que era sartreano — fazia no escuro. Pegou um facão.

Hmmm. — disse o papagaio. — Então vai ser assim.
— Vai.
Está certo. Você tem o poder. E o facão. Eu sou apenas um papagaio, estou preso neste poleiro. Mas você já pensou bem no que vai fazer?
— É a única solução. A não ser que você prometa nunca mais abrir a boca.
Isso eu não posso fazer. Sou um papagaio falador. Biologia é destino.
— Então…
Espere. Pense na imoralidade do seu gesto.
— Mas você mesmo diz que a moral é relativa. Em termos absolutos, num mundo absurdo nenhum gesto é mais ou menos moral do que outro.
Sim, mas estamos falando de sua moral burguesa. Mesmo ilusória, ela existe enquanto determina o seu sistema de valores.
— Sim, mas…
Espere. Deixe eu terminar. Sente aí e vamos discutir esta questão. Wittgenstein² dizia que…

¹ Sören Aabye Kierkegaard foi um filósofo, teólogo, poeta e crítico social dinamarquês, amplamente considerado o primeiro filósofo existencialista.

² Ludwig Joseph Johann Wittgenstein foi um filósofo austríaco, naturalizado britânico. Foi um dos principais autores da virada linguística na filosofia do século XX. Suas principais contribuições foram feitas nos campos da lógica, filosofia da linguagem, filosofia da matemática, e filosofia da mente.