domingo, 30 de agosto de 2020
Que na travessia
da solidão, haja o preenchimento de nós mesmos como a melhor companhia e que
não nos falte amparo quando o abraço esperado estiver longe.”
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Marla de Queiroz
os sem-máscara
Eles surgem em número
cada vez maior, principalmente nos finais de semana. Não que não deem o ar da
sua graça também nos dias úteis. Basta apenas que o sol se mostre, despudorado,
assim que nasce a manhã.
Nos parques, nas praças,
nas ruas, eles sentam ao sol, cuia em uma mão, celular na outra. A conversa
está tão boa que, distraídos, às vezes sorvem o celular e sorriem para a cuia,
apontada para uma selfie. Carentes de contato humano, sentam próximos uns dos
outros, bem próximos mesmo, ombro tocando ombro. Nada como aproveitar as
alegrias do convívio.
Eles caminham pelas ruas,
destemidos. Fazia tempo, foi um longo e úmido inverno. Agora, indiferentes a
recomendações e conselhos, aproveitam o prazer do vento nos seus rostos nus.
Tem maior atentado à moral e aos bons costumes que esse, nos dias de hoje?
Eles, os sem-máscara, sem
distanciamento e - porque vem junto no pacote - sem consideração pelos outros,
acham que o mundo ainda é aquele velho lugar que conheceram. Que o vírus é
invenção da China, coisa de comunista. E que basta usar vermífugo e remédio
para lúpus que tudo, tudo passa. Bem, nem todos pensam assim. Mas quem desistiu
da máscara merece ser colocado no mesmo saco.
Qual o problema em usar?
Ah, é que dói a minha
orelha. Meu filho, minha filha, tem modelos de todos os jeitos. Impossível que
um com a tira mais larguinha, ou mais elástica, ou que amarre atrás da cabeça,
impossível que não exista alternativa para a tua orelha. Deixa de frescura,
bota logo essa máscara porque, não demora, nós vamos chegar a 150 mil mortos.
Ah, é que me dá agonia,
não consigo respirar direito. Meu querido, minha querida, e por isso tu vais te
arriscar a contaminar geral, perdigotando na cara alheia? Conheço muita gente,
muita mesmo, que teve contato com a doença sem sintomas. Meu filho só soube por
que o exame sorológico acusou anticorpos. Para sorte dos outros, ele não pisa
fora da porta sem máscara. Deixa de ser egoísta, bota logo essa máscara porque,
não demora, nós vamos chegar a 150 mil mortos.
Ah, eu gosto de mostrar o
meu rostinho lindo para os outros. Meu cidadão, minha cidadã, manda selfies,
manda nudes, manda brasa no Instagram, mas bota logo essa máscara porque, não
demora, nós vamos chegar a 150 mil mortos.
Ah, eu sei que, no
tocante a isso daí, essa questão é só para criar pânico, para falir o comércio,
para acabar com a nossa indústria, coisa de alarmista, não passa de uma
gripezinha, um resfriadinho, quem tem histórico de atleta não sente nada e quem
pegar é bundão. Meu correligionário, minha correligionária, vírus não tem a ver
com política. Cada um acredita no que quiser - é o ônus da democracia, na boa
definição do Ciro Gomes -, mas a saúde pública não tem dois lados. Estamos
todos na mesma. Custa botar logo essa máscara porque, não demora, nós vamos
chegar a 150 mil mortos?
O pior é que alguns
países que já davam a conta por liquidada, viram, aparentemente do nada, o
surgimento de novos casos. Nova Zelândia e Espanha, por exemplo. De Hong Kong -
que tem pela China a mesma ojeriza que o inesquecível Weintraub - veio a
notícia de um possível caso confirmado e acompanhado de reinfecção. A coisa não
é brincadeira, é feia e vem se debruçando. Bota logo essa máscara porque, não
demora, nós vamos chegar a 150 mil mortos.
Meu consagrado, minha
consagrada: custa pensar um pouquinho nos outros?
Claudia Tajes
sábado, 29 de agosto de 2020
Bolsonaro nos ama
Um dos maiores problemas
de Bolsonaro é que ele se importa demais com o que a imprensa diz a seu
respeito. Ele queria ser amado pelos jornalistas, queria que todos o elogiassem
e o aplaudissem, mas não é assim que acontece, então ele se revolta, perde o controle
e fala besteira.
Nesta segunda-feira,
Bolsonaro estava se autoelogiando, lembrando do seu “histórico de atleta”, ao
que atribui o fato de ter se curado da covid-19, e então não se aguentou: teve
que assacar contra os jornalistas. Mandou: "Quando (a covid) pega num
bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor".
Ou seja: morre de
covid-19 quem é bundão.
Diogo Mainardi, ao saber
da declaração de Bolsonaro, gravou um vídeo compassivo diante das águas da
Lagoa de Veneza. Lembrou que seu pai, Ênio Mainardi, morreu de covid-19, e
perguntou se tinha o direito de sentir vontade de socar a boca do presidente da
República, como o presidente da República disse ter vontade de fazer com um
jornalista naquele mesmo dia.
É evidente que Diogo
Mainardi, vivendo a dor de um filho que perdeu o pai, tem o direito de sentir
vontade de socar a boca de Bolsonaro. Familiares e amigos de outros 115 mil
brasileiros que morreram de covid devem estar sentindo o mesmo. Portanto, neste
exato momento, centenas de milhares, talvez milhões de brasileiros estejam
odiando Bolsonaro por uma única declaração absurda que ele fez.
Ainda assim, Bolsonaro
seguirá emitindo tolices, porque ele simplesmente não consegue entender que
falar em público é diferente de falar em particular, sobretudo quando quem fala
é presidente da República. Bolsonaro acredita que está sendo autêntico quando
ofende pessoas ou diz palavrões, e na verdade está sendo apenas grosseiro. Essa
grosseria faz com que ele seja criticado pela imprensa, o que o machuca e
provoca nova reação destemperada e nova crítica.
Está certo que todos os
presidentes se queixaram da imprensa. Todos. Lula chegou a sonhar com o que
chamava de “regulação”, um eufemismo para censura. Mas nenhum, nem os “impichados”
Collor e Dilma, nem o impopular Temer, nenhum se abalou tanto com a opinião dos
jornalistas quanto Bolsonaro.
É algo curioso, porque
Bolsonaro está cercado de bajuladores. Eles o chamam de “mito”, veja só. Eles,
exatamente como os lulistas, não conseguem ver nele nenhuma falha, como se
Bolsonaro fosse uma espécie de super-herói. Mas não é suficiente. Bolsonaro
anseia por um elogio mais do que todos os outros: o elogio dos jornalistas.
Ora, você não pleiteia o
afeto de quem despreza. Só lhe causa aflição a malquerença de quem você deseja.
Com o que, concluo que essa insistência de Bolsonaro em atacar jornalistas não
é ódio; é amor. Mas o amor dos espíritos primitivos, como o homem que, não
admitindo a rejeição da mulher, tenta matá-la: “Se você não vai ser minha, não
será de mais ninguém!” Para esse homem paleolítico, a mulher tem obrigação de
amá-lo tão somente porque ele quer - ele acha que tem méritos e que é dever
dela reconhecê-los. Se ela não reconhece, ela é que está errada.
Bolsonaro é assim.
Bolsonaro é um homem sem requintes. Em sua compreensão de mundo, ele acredita
que tem direito a todos os louvores. Ele olha para a imprensa cheio de angústia
esperançosa, ele quer aprovação, quer carinho, e só encontra censura. Então,
sofre. Sofre por amor. Bolsonaro ama a imprensa de uma forma como a imprensa
jamais foi amada. Compreendo a dor de Bolsonaro. É a dor que desatina sem doer,
é um descontentamento contente, é uma ferida que dói e que se sente, é o fogo
que arde sem se ver.
__David Coimbra
quinta-feira, 27 de agosto de 2020
seu terapeuta é feliz?
Outro dia acompanhei uma conversa
instigante.
Em meio a um grupo, uma mulher
comentou o quanto havia ficado desconcertada ao saber que sua analista não era
feliz. Havia se tratado com ela por três anos, nada sabia da vida íntima da
profissional com quem tanto havia desabafado e agora, depois de muito tempo,
havia descoberto que a analista tinha problemas pessoais e que inclusive havia
tentado o suicídio uma vez.
A tentativa de suicídio me pareceu um
acréscimo sensacionalista à história, mas, desconsiderando esse detalhe, me
concentrei na fantasia que alimentamos a respeito desses profissionais.
Eles ajudam a amenizar nosso
sofrimento emocional, a tomar decisões necessárias para que a vida destrave, a
compreender e perdoar nosso passado, a vencer medos e traumas, enfim, fazem uma
assistência técnica básica. Para que o processo dê resultado, contam com nossa
sinceridade e confiança, e é por isso que despejamos, sem reservas, tudo aquilo
que ocultamos até de nós mesmos. Declaramos abertamente nossas fraquezas,
recalques, frustrações, taras, dificuldades. O que esperamos em troca ? Que eles
já tenham resolvido todas essas questões em suas próprias vidas para que possam
se concentrar na nossa.
É um delírio, mas ficamos mais
descansados assim. Até que um dia descobrimos, sabe-se lá como, que aquela
criatura que parecia acima do bem e do mal, é uma pessoa que bebe muito, que
não consegue manter relações afetivas por mais de seis meses, que já atropelou
um cachorro e fugiu, que sofre até hoje por um grande amor perdido, que tem
medo de andar de elevador, que coleciona multas de trânsito, que não fala com
um irmão há sete anos.
Isso significa que ele não é feliz ? Apenas significa que é mais parecido com um ser humano do que com Deus.
Eis a encrenca: ele não pode ser
parecido com um ser humano, ou seja, conosco. Se não resolveu suas próprias
tranqueiras, que habilidade terá para lidar com as tranqueiras dos outros ? Não
admitimos que ele enlouqueça de ciúmes, que tenha vaidades, que guarde
segredos, que morra de sono no meio da tarde, que sinta tédio, raiva,
claustrofobia. Não pode estar atolado em dívidas, não pode ter um botão
faltando na camisa, não pode fumar, não pode atrasar, não pode chorar.
Ele não pode ter uma vida, apenas uma
carreira. Têm que fixar residência no consultório e estar sempre a nossa espera
de banho tomado e alma lavada. Encontrá-lo com um carrinho lotado de cerveja na
caixa do supermercado exigirá de nós muito autocontrole.
Desejamos que nossos terapeutas sejam
perfeitos, e é por isso que eles costumam acertar no nosso diagnóstico: no
fundo, somos todos uns narcisistas.
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Martha Medeiros
terça-feira, 25 de agosto de 2020
ai de nós, quem mandou?
Mulheres ganham salários
menores do que os dos homens, e líderes feministas seguem lutando para reverter
essa injustiça. Mas já não sei se é boa ideia continuar batalhando por
igualdade. Depois de ler o resultado de uma recente pesquisa feita pela
Universidade de Harvard, fiquei inclinada a pensar que talvez seja melhor
manter as coisas como estão. A pesquisa chama-se Schooling Can't Buy Me Love
(Escolaridade não pode me comprar amor) e confirma que mulheres que estudam
mais acabam progredindo e, quanto mais bem-sucedidas, menores as chances de se
casar. Os homens ainda não estão preparados para abrir mão da superioridade que o papel de provedor lhes
confere. E mesmo os mais antenados, que apoiam que suas mulheres sejam
independentes, ficam inseguros se elas tiverem cargos de chefia e muita
visibilidade. Ganhar dinheiro, tudo bem, mas aparecer mais do que eles já é
desaforo.
Beleza. O que vamos dizer
para nossas filhas? Estudem, mas fazer doutorado e mestrado é exagero, antes um
bom curso de culinária. Tenham opiniões próprias quando conversarem com as
amigas, mas em casa digam só “ahã”, para não se incomodar. Usem seu dinheiro
para comprar roupas, pulseiras e esmaltes, esqueçam o investimento em viagens,
teatro e livros. E, na hora de se declararem, troquem o “eu te amo” por “eu
preciso de você”, “eu não sou ninguém sem você”, “eu não valho meio quilo de
alcatra sem você”. Homens querem se sentir necessários. Só amados não serve.
Que encrenca que as
feministas nos arranjaram. Estimularam o pensamento livre, a autoestima, a
produtividade e a alegria de trilhar um caminho condizente com nosso potencial.
De apêndices dos nossos pais e maridos, passamos a ter um nome próprio e uma
vida própria, e acreditamos que isso seria excelente para todos os envolvidos,
afinal, os sentimentos ficaram mais honestos, e com eles os relacionamentos. O
amor deixou de ser o álibi para um lucrativo arranjo social. Passou a ser mais
espontâneo, e as carências de homens e mulheres foram unificadas, já que todos
precisam uns dos outros para dividir angústias, trocar carinho, pedir apoio,
confessar fraquezas, unir forças no momento das dificuldades. Todos se precisam
da mesma forma, não de formas distintas. Mas há quem defenda que homem só
precisa de paparico e mulher de quem tome conta dela, punto e basta.
Nunca imaginei que em
2010 ainda estaria escrevendo sobre isso. Achei que os homens já tivessem percebido
o quanto ganham em ter uma mulher inteira a seu lado, e não um bibelô.
Acreditei que a competitividade tivesse dado lugar a um companheirismo mais
saudável e excitante, onde todos pudessem se orgulhar dos seus avanços e se
apoiar nas quedas, mas que iludida: isso é coisa pra meia dúzia de emancipada,
filha. Essas mulheres aí que não cozinham, não passam, não lavam, só evoluem,
essas não são exemplo pra ninguém, são umas coitadas de umas infelizes que
pagam as contas e ainda se acham divertidas, se fazem de inteligentes, querem
bater perna em Nova York, pois vão arder no fogo do inferno, vão amargar na
solidão, vão se arrepender de ter lido aquela Simone de Beauvoir, vão morrer
abraçadas aos seus laptops, aqui se faz, aqui se paga, escreve aí.
Tamo ferrada.
Jornal Zero Hora (25/08/2010)
Jornal Zero Hora (25/08/2010)
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Martha Medeiros
NÃO SE PREOCUPE demais
por causa dos perversos! Não fique com inveja dos maus e pecadores.
Logo eles murcharão e
secarão como a erva.
Em vez disso, confie no
Senhor e procure fazer o bem; viva tranquilamente em seu lugar e ponha a
verdade em prática.
Faça do Senhor a sua
grande alegria e Ele dará a você os desejos do seu coração.
Salmos 37:1,4 - Bíblia
Viva
segunda-feira, 24 de agosto de 2020
❝ Lembre-se de que não devemos humilhar ninguém.
Os erros que os outros
cometem hoje, nós podemos cometê-los amanhã.
Não se julgue inatingível
nem infalível.
Todos podem falhar.
Trate os outros com
tolerância, para que possa reerguê-los, se errarem.
A perfeição não é desta
terra.
Não exija dos outros aquilo
que você também ainda não pode dar.
❞
Livro Minuto de Sabedoria
Uma amiga nossa faleceu
essa semana depois de alguns anos lutando contra o câncer. O que vamos nos
lembrar da Pri é como ela estava sempre sorrindo. Ela tinha um daqueles
sorrisos abertos. A gente via todos os dentes, a gente via os olhos sorrindo
junto. A gente sentia o sorriso da Pri quando ela nos olhava e sentia uma
vontade incontrolável de sorrir junto. A Pri era uma dessas pessoas que deixava
o mundo mais feliz. Quando a conheci, já lutava contra um câncer agressivo,
alternava dias muito ruins com dias um pouco melhores. Mas sorria o tempo todo.
Um sorriso que iluminava o recinto. Nos disseram que ela sorriu até o fim.
“Amor fati”, como diziam
os filósofos. Amor ao que me acontece. Amor ao meu destino. Receber tudo o que
me acontece com amor. Não somente tolerar aquilo que me acontece. Não apenas
suportar aquilo que me acontece. Amar o que me acontece. Seja bom ou seja ruim.
Amar aquilo que me acontece. Um beijo. Um acidente. Um romance. Uma doença. Um
filho. Uma perda. “Eu amo isso”, eles diziam. “Eu amo o que me acontece”. “Isso
vai me deixar melhor”. “Eu amo tudo o que acontece comigo”. Na vida, não
controlo as coisas, mas controlo como respondo à elas. Posso responder com
raiva, ou com um sorriso. Um sorriso verdadeiro, que ilumina o recinto.
Por quanto tempo ainda
vou reclamar daquilo que não controlo? Da chuva, do trânsito, dos outros? Que
diferença faz? Não controlamos as coisas da vida, controlamos apenas como
respondemos quando as coisas acontecem. O que faremos quando algo bom
acontecer? O que faremos quando algo ruim ocorrer? Quando alguém faz algo que
não gostamos? Quando o imprevisível acontece? O que faremos quando descobrirmos
uma doença? Não controlamos o que nos acontece. Controlamos apenas a resposta
que damos para o que nos acontece.
Acho a morte um desaforo.
Um atrevimento. Dói quando alguém que faz bem ao mundo se vai. Gostaríamos que
não tivessem existido, portanto? Claro que não. Os bons, quando morrem, nos
lembram do que podemos ser. Se você ama alguém, um dia irá se despedir. Seria
melhor não amar, portanto? Claro que não. O amor é o sentido da vida. Cada
pessoa que amamos é um presente emprestado, mais cedo ou mais tarde se vai. Um
dia seremos nós. Que se lembrem de nós como lembramos da Pri. O mundo era um
lugar melhor com ela. Os que ficaram terão que ser um pouquinho melhores daqui
por diante.
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Marcos Piangers
domingo, 23 de agosto de 2020
otimismo ou pessimismo
Café da manhã, marido e
mulher juntos, com o péssimo hábito de ver notícias. De vez em quando, um de
nós se propõe a não ligar mais, tentar se alienar, muito mais saudável.
Infelizmente não dá: somos habitantes deste planeta, as dores de todos são de
todos de alguma maneira, a não ser que a gente seja da turma dos fúteis e
desligados. E isso não se escolhe: a gente é, por nascimento e formação.
A mim me dói a menina
estuprada, engravidada, posta sob a luz de holofotes irresponsáveis e tendo de
fugir da sua cidade, amigas, família, para preservar alguma identidade.
A mim me machuca a dor de
cada morador da Beirute que nunca visitei; a tristeza de cada neozelandês que
vê desfeito o sonho de corona nunca mais.
A mim me aflige a
ansiedade de cada aluno e pai de escolas e faculdades americanas que já
reabriram suas salas e agora têm centenas de alunos, professores e funcionários
contaminados ou em quarentena.
A mim me entristece e
preocupa o Brasil, onde quase celebramos que um dia em vez de 1,2 mil mortos
temos apenas 980. Talvez eu tenha dificuldade com a realidade: faz parte um
pouco do folclore sobre escritores, poetas, artistas em geral.
ENGANO: sofrer com as
realidades do mundo dos outros, das pessoas próximas, não é fantasia de
artista: é a realidade que morde nosso calcanhar e sangra nosso coração.
Sim, parece que mortes
pelo corona estão diminuindo um pouco por aqui. Aconteceu em países da Europa,
na Nova Zelândia, na Austrália e em outros... apenas para tudo piorar quando se
liberaram de novo as aulas, os bares, as praias, as lojas.
Não me considero sombria
nem pessimista, mas me pergunto insistentemente: o que devemos fazer? Como
proceder? Como escapar dos gurus, dos profetas, dos céticos ou dos
irresponsáveis alegrinhos?
Não sei. Receio que
ninguém saiba. Temo que a Peste do século 21 vai se desgastar por si, cansada
de devorar humanos de todas as idades, de afastar grupos e famílias, de
interromper carreiras e projetos, enfim fatigada com nossa incompetência,
leviandade, fraqueza, falta de comando e seriedade... e, mesmo onde isso
existiu, entediada com sua própria terrível força, imprevisibilidade e manobras
sinistras.
Sim, hoje não estou nem
poética, nem agradável, mas cansada, furiosa com tanto palavrório falso e
danoso, quando milhares de pessoas ainda adoecem, muitas morrem, centenas de
brilhantes cientistas do mundo inteiro se esforçam de maneira quase
sobre-humana, médicos e enfermeiras se sacrificam e adoecem, enquanto uma parte
de nós, pobre humanidade, pensa em festa, praia, passeio, reunião com a turma e
viagens.
Desculpem, hoje não estou
achando graça de muita coisa, exceto talvez da neve e da geada que recobrem e
embelezam os gramados do meu Bosque em Gramado, onde escolhi não estar neste
frio extremo: o vírus tem alguma autoridade sobre esta eterna rebelde: eu
escolho a vida, se puder. Minha circunstância me pede isso.
quinta-feira, 20 de agosto de 2020
Não viajo para me
encontrar, mas para me perder.
Descobrir que tudo que eu
achava sobre os outros países estava errado.
Entender a pluralidade do
ser humano e apreciá-la.
Viajo pelo deslumbramento
em descobrir como há tantas pessoas vivendo vidas completamente diferentes da
minha. E como a minha poderia ser diferente também.
Viajo para perceber que
sou insignificante perto da imensidão do mundo e que ele continuará girando
igualzinho, comigo ou sem.
A consciência do nosso
tamanho no universo toma outra proporção e nossa pequenez nos fazer querer
engrandecer a alma.
Viajo porque o ser humano
é incrível demais (apesar de toda sua crueldade) e viajar me dá fé na humanidade.
Viajo porque quando sou
do mundo sou mais eu. Porque quando parto de algum lugar, deixo um pouco de mim
e assim construo um universo particular.
Viajo para compartilhar o
pouco que tenho e levar comigo toda boa energia do caminho. Voltarei, um dia,
cheia de luz.
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Carolina Sanovicz,
Outros
a separação como ato de amor
É sabida a dor que advém de qualquer
separação, ainda mais da separação de duas pessoas que se amaram muito e que
acreditaram um dia na eternidade deste sentimento. A dor-de-cotovelo corrói
milhares de corações de segunda a domingo — principalmente aos domingos, quando
quase nada nos distrai de nós mesmos — e a maioria das lágrimas que escorrem é
de saudade e de vontade de rebobinar os dias, viver de novo as alegrias
perdidas.
Acostumada com esta visão dramática da
ruptura, foi com surpresa e encantamento que li uma descrição de separação que
veio ao encontro do que penso sobre o assunto, e que é uma avaliação mais
confortante, ao menos para aqueles que não se contentam em reprisar
comportamentos padrões. Está no livro “Nas tuas mãos”, da portuguesa Inês Pedrosa.
“Provavelmente só se separam os que levam a
infecção do outro até aos limites da autenticidade, os que têm coragem de se
olhar nos olhos e descobrir que o amor de ontem merece mais do que o conforto
dos hábitos e o conformismo da complementaridade.”
Ela continua:
“A separação pode ser o ato de absoluta e
radical união, a ligação para a eternidade de dois seres que um dia se amaram
demasiado para poderem amar-se de outra maneira, pequena e mansa, quase
vegetal.”
Calou fundo em mim esta declaração, porque
sempre considerei que a separação de duas pessoas precisa acontecer antes do
esfacelamento do amor, antes de se iniciarem as brigas, antes da falta de
respeito assumir o comando. É tão difícil a decisão de separar que vamos
protelando, protelando, e nesta passagem de tempo se perdem as recordações mais
belas e intensas. A mágoa vai ganhando espaço, uma mágoa que nem é pelo outro,
mas por si mesmo, a mágoa de se reconhecer covarde. E então as discussões se
intensificam e quando a separação vem, não há mais onde se segurar, o casal não
tem mais vontade de se ver, de conversar, quer distância absoluta, e aí se
configura o desastre: a sensação de que nada valeu. Esquece-se o que houve de
bom entre os dois.
Se o que foi bom ainda está fresquinho na
memória afetiva, é mais fácil transformar o casamento numa outra relação de
amor, numa relação de afastamento parcial, não total.
Se os dois percebem que
estão caminhando para o fim, mas ainda não chegaram no momento crítico — o de
se tornarem insuportavelmente amargos — talvez seja uma boa alternativa
terminar antes de um confronto agressivo. Ganha-se tempo para reestruturar a
vida e ainda se preserva a amizade e o carinho daquele que foi tão importante.
Foi, não. Ainda é.
“Só nós dois sabemos que não se trata de sucesso
ou fracasso. Só nós dois sabemos que o que se sente não se trata — e é em nome
deste intratável que um dia nos fez estremecer que agora nos separamos. Para lá
da dilaceração dos dias, dos livros, discos e filmes que nos coloriram a vida,
encontramo-nos agora juntos na violência do sofrimento, na ausência um do outro
como já não nos lembrávamos de ter estado em presença. É uma forma de amor
inviável, que, por isso mesmo, não tem fim.”
É um livro lindo que fala sobre o amor eterno
em suas mais variadas formas. Um alento para aqueles — poucos — que respeitam
muito mais os sentimentos do que as convenções.
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Martha Medeiros
terça-feira, 18 de agosto de 2020
quando não realizamos os nossos sonhos
Eu acordei pensando algo
sério. Foi um pressentimento, uma autocrítica, uma descoberta que só
encontramos na humildade mais funda.
O que mais desejamos na
vida pode nunca acontecer. E não devemos nos desesperar.
Talvez viver não seja
alcançar os objetivos. Nosso maior objetivo é estar sempre correndo atrás
deles.
Talvez não tenhamos tempo
de cumpri-los (quem é que sabe o tempo que nos resta?). Ainda assim passaremos
adiante a nossa força de vontade.
Nem todos ficam para ver
as suas alegrias realizadas. Ainda assim deixarão testemunhas de seu esforço.
Não há lembrança
inacabada que não seja completada depois por um filho, por um amigo, por um
amor. Nossas últimas páginas serão escritas pelos outros, que acompanharam as
nossas batalhas silenciosas para manter inteira a personalidade. Não estaremos
mais aqui, estaremos dentro deles. A saudade é uma inesperada sobrevida.
Mesmo não chegando ao
lugar pretendido, persistirá o legado de sua teimosia, de sua curiosidade, de
sua avidez em tentar de todos os jeitos e seguir adiante.
Exercitou a honestidade
da busca, que é o melhor destino a ser alcançado.
Não é nenhum fracasso não
concretizar aquilo que se pretendia, mas desistir por falta de confiança.
Se você não obteve os
seus sonhos, pelo menos nunca parou de sonhar. Viveu sonhando.
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Fabrício Carpinejar
Deita no chão. Agradece.
Abraça. Perdoa. Respira fundo, olha ao redor e diz: “É formidável estar
vivo”.
Os dias são longos, os
anos são curtos.
Passamos nossa vida repetindo as rotinas, preocupados com bobagens, irritados com insignificâncias.
Os dias são longos e parecem intermináveis. Mas os anos são curtos e irrecuperáveis.
Se você está vivo e saudável, e encontra afeto em alguém vivo e saudável, agradece. Diz. Aperta. Segura firme.
Estamos juntos. Nesses dias longos demais, nesses anos curtos demais.
Passamos nossa vida repetindo as rotinas, preocupados com bobagens, irritados com insignificâncias.
Os dias são longos e parecem intermináveis. Mas os anos são curtos e irrecuperáveis.
Se você está vivo e saudável, e encontra afeto em alguém vivo e saudável, agradece. Diz. Aperta. Segura firme.
Estamos juntos. Nesses dias longos demais, nesses anos curtos demais.
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Marcos Piangers
domingo, 16 de agosto de 2020
o papagaio depressivo
Compraram o papagaio com a garantia que era um
papagaio falador. Não calava a boca. Ia ser divertido. Não há nada mais
engraçado do que que um papagaio certo? Aquela voz safada, aquele ar gozador.
Mas este papagaio era diferente.
No momento em que chegou
em casa, o papagaio rodeado pelas crianças. Dali a pouco um dos garotos foi
perguntar ao pai:
— O quê?
O Papagaio estava citando
Kierkegaard¹ para as crianças. Algo sobre a insignificância do Ser diante do
Nada. E fazendo a ressalva que, ao contrário de Kierkegaard, ele não encontrava
a resposta numa racionalização da cosmogonia cristã. O pai mandou as crianças
se afastassem e encarou o papagaio.
— Dá a patinha, Louro.
— Por quê? — disse o
papagaio.
— Como, por quê? Porque
sim.
— Essa resposta não é
aceitável. A não ser como corolário de um posicionamento mais amplo sobre a
gratuidade do gesto enquanto…
— Chega!
— Certo. Chega. Eu também
sinto um certo enfado com a minha própria compulsão analítica. O que foi que
disse o bardo? “O mundo está demais conosco.” Mas o que fazer? Estamos
condenados à autoconsciência. Existir é questionar, como disse…
O pai tentou devolver o
papagaio, mas não o aceitaram de volta. A garantia era de que o papagaio
falava. Não garantiram que seria engraçado. E o papagaio, realmente, não para
de falar. Um dia o pai chegou em casa e foi recebido com a notícia que a
cozinheira tentara se suicidar. Mas como? A Rosaura, sempre tão bem disposta?
— Foi o papagaio.
— O papagaio?
— Ele encheu a cabeça
dela. A futilidade da existência, a indiferença do Universo, sei lá.
Aquilo não podia
continuar assim. Os amigos iam visitar, esperando se divertir com a conversa do
papagaio depressivo.
No princípio riam muito,
sacudiam a cabeça e comentavam: “Veja só, um papagaio filósofo…” Mas em pouco
tempo ficavam sérios. Saíam contemplativos. E deprimidos.
— Sabe que algumas coisas
que ele diz…
— Eu nunca tinha pensado
naquela questão que ele colocou, da transitoriedade da matéria…
Os vizinhos reclamavam. O
negativismo do papagaio enchia o poço do edifício e entrava pelas cozinhas.
Como se não tivessem bastante preocupações com o preço do feijão, ainda tinham que
pensar na finitude humana? O papagaio precisava ser silenciado.
Foi numa madrugada. O pai
entrou na cozinha. Acendeu a luz, interrompendo uma dissertação crítica sobre
Camus que o papagaio — que era sartreano — fazia no escuro. Pegou um facão.
— Hmmm. — disse o
papagaio. — Então vai ser assim.
— Vai.
— Está certo. Você tem o
poder. E o facão. Eu sou apenas um papagaio, estou preso neste poleiro. Mas
você já pensou bem no que vai fazer?
— É a única solução. A
não ser que você prometa nunca mais abrir a boca.
— Isso eu não posso
fazer. Sou um papagaio falador. Biologia é destino.
— Então…
— Espere. Pense na
imoralidade do seu gesto.
— Mas você mesmo diz que
a moral é relativa. Em termos absolutos, num mundo absurdo nenhum gesto é mais
ou menos moral do que outro.
— Sim, mas estamos
falando de sua moral burguesa. Mesmo ilusória, ela existe enquanto determina o
seu sistema de valores.
— Sim, mas…
— Espere. Deixe eu
terminar. Sente aí e vamos discutir esta questão. Wittgenstein² dizia que…
¹ Sören Aabye Kierkegaard
foi um filósofo, teólogo, poeta e crítico social dinamarquês, amplamente
considerado o primeiro filósofo existencialista.
² Ludwig Joseph Johann
Wittgenstein foi um filósofo austríaco, naturalizado britânico. Foi um dos
principais autores da virada linguística na filosofia do século XX. Suas
principais contribuições foram feitas nos campos da lógica, filosofia da
linguagem, filosofia da matemática, e filosofia da mente.
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Luis Fernando Veríssimo
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