eu também estava precisada de fazer nada!
segunda-feira, 31 de julho de 2017
bem que tentamos
Não conseguimos nos separar.
Fracassamos ao nos separar.
Somos incompetentes para a despedida.
Tem gente que não dá certo junto, a gente não dá certo
separado.
A vida fica muito pior quando isolados.
Em nossa combinação, tempo é distância, distância é saudade,
saudade é amor urgente.
Eu, que adoro miolo de pão, tiro o excesso para lhe imitar.
Não compreendo se é imitação ou influência, percebo que, em sua ausência, você
continua ao meu lado, eu é que desapareço. Vivo reproduzindo suas atitudes e
gestos. Sou um mímico de seu rosto. Sou um intérprete de sua risada.
Intriga-me este mistério que não nos permite o fim da
relação. Qual a fatalidade? Será maldição? Carma? Dívidas de vidas passadas?
Macumba? Reza?
Por que não nos desamamos?
De onde vem essa obsessão, essa vontade louca de estar sempre
colado?
Nem a diferença de idade nos aparta, nem as personalidades
diferentes nos distanciam, coisa alguma, problema algum.
É como se descobrisse que somos vampiros do amor: não há
morte em nossa entrega.
Já tentamos de tudo para nos separar – e não funciona. Já
abusamos dos desaforos, das ofensas, das discussões, do ciúme, das brigas, dos
barracos. Já falamos mal um do outro, já rifamos o passado, já criamos atritos,
inventamos o inferno, metemos a família no meio, chamamos os amigos para
complicar o final. E só fortalecemos ainda mais os laços.
Cá estamos, mais apaixonados do que no primeiro dia. E
ninguém entende nada, muito menos nós. Geramos crises em nossos terapeutas.
Nosso amor não morre! Nosso amor não acaba!
Eu me assusto com a promessa de longevidade, talvez tenhamos
que envelhecer juntos, talvez seja necessário aceitar os fatos, talvez a mala
não seja nossa porta, talvez o aceno seja para os outros, talvez nosso sangue
sonhe filhos.
De tanto criar hipóteses, investigar nossa convivência,
explorar nossas confusões, eu acredito que não iremos nos separar por um
simples motivo: fizemos algo de errado no início. Cometemos uma grande gafe.
Uma falha imperdoável.
Não sabemos quem disse o primeiro eu te amo.
Não assinalamos o autor da declaração fundadora. Não anotamos
o nome do corajoso.
Lembramos de tudo, menos de quem disse o primeiro eu te amo.
Recordamos de nossas viagens, dos aniversários de cada passo,
dos detalhes microscópicos de nossos hábitos, menos quem falou primeiro. Quem
declarou primeiro. Quem transformou o endereço em destino.
Se não sabemos quem falou o primeiro eu te amo, resta-me crer
que já nascemos nos amando. E eu, muito antes, privilégio de quem é mais velho.
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Fabrício Carpinejar
sexta-feira, 28 de julho de 2017
muitas
Dizem: quando
nasce um bebê, nasce uma mãe também. E um polvo. Um restaurante delivery. Uma
máquina de chocolate prontinho. Uma mecânica de carrinhos de controle remoto.
Uma médica de bonecas. Uma professora-terapeuta-cozinheira de carreira
medíocre. Nasce uma fábrica de cafuné, um chafariz de soro fisiológico, um robô
que desperta ao som de choro. E principalmente: nasce a fada do beijo.
Quando nasce um bebê, nasce também o medo da morte – mães não se conformam em deixar o mundo sem encaminhar devidamente um filho.
Não pense você que ao se tornar mãe uma mulher abandona todas as mulheres que já foi um dia. Bobagem. Ganha mais mulheres em si mesma. Com seus desejos aumentam sua audácia, sua garra, seus poderes. Se já era impossível, cuidado: ela vira muitas. Também não me venha imaginar mães como seres delicados e frágeis. Mães são fogo, ninguém segura. Se antes eram incapazes de matar um mosquito, adquirem uma fúria inédita. Montam guarda ao lado de suas crias, capazes de matar tudo o que zumbir perto delas: pernilongos, lagartas, leões, gente.
Mães não têm tempo para o ensaio: estreiam a peça no susto. Aprendem a pilotar o avião em pleno voo. E dão o exemplo, mesmo que nunca tenham sido exemplo. Cobrem seus filhos com o cobertor que lhes falta. E, não raro, depois de fazerem o impossível, acreditam que poderiam ter feito melhor. Nunca estarão prontas para a tarefa gigantesca que é criar um filho – alguém está?
Mente quem diz que mãe sente menos dor – pelo contrário! Ela apenas aprende a deixar sua dor para outra hora. Atira o seu choro no chão para ir acalentar o do filho. Nas horas vagas, dorme. Abastece a casa. Trabalha. Encontra os amigos. Lê – ou adormece com um livro no rosto. E, quando tem tempo pra chorar – cadê? -, passou. A mãe então aproveita que a casa está calma e vai recolher os brinquedos da sala. “Como esse menino cresceu”, ela pensa, a caminho do quarto do filho. Termina o dia exausta, sentada no chão da sala, acompanhada de um sorriso besta.
Já os filhos, ah… Filhos fazem a mãe voltar os olhos para coisas que não importavam antes. O índice de umidade do ar. Os ingredientes do suco de caixinha. O nível de sódio do macarrão sem glúten. Onde fica a Guiné-Bissau. Os rumos da agricultura orgânica. As alternativas contra o aquecimento global. Política. E até sua própria saúde. Mães são mulheres ressuscitadas. Filhos as rejuvenescem, tornando a vida delas mais perigosa – e mais urgente.
Quando nasce um bebê, nasce uma empreiteira. Capaz de cavar a estrada quando
não há caminho, só para poder indicar: “É por ali, filho, naquela direção”.
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Cris Guerra
quinta-feira, 27 de julho de 2017
quanta felicidade eu aguento
“Te desejo toda a felicidade que puder aguentar”. Foi com essa frase que uma pessoa que gosta muito de mim encerrou seu e-mail, e fiquei petrificada diante do computador, um pouco pela explosão de gentileza de alguém que nem conheço, e outro tanto pela contundência que me fez pensar: quanta felicidade eu aguento?
Felicidade não tem a ver com oba-oba, riso frouxo, vida
ganha. Isso é alegria, que também é ótima, mas não tem a profundidade de uma
felicidade genuína que engloba não só a alegria como a tristeza também.
Felicidade é ter consciência de que estar apto para o sentimento é um
privilégio, e que quando estou melancólica, nostálgica, introvertida,
decepcionada, isso também é uma conexão com o mundo, isso também traz evolução,
aprendizado.
Feliz de quem cresce, mesmo aos trancos.
Infelicidade, ao contrário, é inércia. A pessoa pode passar a
vida inteira sem ter sofrido nada de relevante, nenhuma dor aguda, mas
atravessa os dias sem entusiasmo, anestesiada pelo lugar comum, paralisada por
seu olhar crítico, que julga os outros sem nenhuma condescendência. Para ela
todos são fracos, desajustados ou incompetentes, e não sobra afetividade nem
para si mesma: se está sozinha ou acompanhada, tanto faz. Se lá fora o sol
brilha ou se chove, tanto faz. Se há a expectativa de uma festa ou de uma
roubada, tanto faz. Essa indiferença em relação ao que os dias oferecem é uma
morte que respira, mas ainda assim, uma morte.
Eu reajo, me movo, procuro, arrisco - essa perseguição a algo
que nem sei se existe é a homenagem que presto à minha biografia. Nada me
amortece, tudo me liga, tanto aquilo que dá certo como também o que dá errado.
Felicidade é uma palavrinha enjoada, que remete só ao bom, mas dou a ela outro
significado: é uma inclinação corajosa para a vida, que nunca é só boa.
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Martha Medeiros
quarta-feira, 26 de julho de 2017
a vez dos avós
O veto migratório proposto por Trump aos cidadãos de Síria,
Irã, Líbia, Somália, Sudão e Iêmen chamou a atenção não só pela discriminação
religiosa, mas também por liberar a entrada apenas de imigrantes e refugiados
que fossem pais, irmãos ou filhos de norte-americanos: avós não foram
considerados parentes próximos. Como sandice tem limite, o presidente teve que
voltar atrás e incluir os velhinhos na liberação.
Eu disse velhinhos?
Velho é uma palavra que não se usa mais.
Uma pessoa pode ser antiga, mas isso não significa que seja
um matusalém — pode ser antiga aos 15, aos 26, aos 32. Se a questão for apenas
a idade, ninguém mais é velho, e sim maduro. Algumas de minhas amigas já têm
netos, o que não as impede de fazerem trilhas, dançarem até às cinco da manhã,
postarem suas aventuras nas redes, trabalharem e se apaixonarem. São avós
porque esse é o nome que se dá quando os filhos da gente começam a ter seus
próprios filhos, mas a atmosfera caquética se dissipou. Hoje é dia dos avós e
não será comemorado com avental, fogão e agulhas de crochê, e sim com jeans,
boteco e cílios postiços.
“Que ridículo, mãe”, talvez diga a mulher de 50 para sua mãe
de 75 que é ala de um time de basquete veterano. “Que ridículo, mãe”, talvez
diga a garota de 25 para sua mãe de 50 que vai passar o fim de semana na Praia
do Rosa com o namorado surfista. “Que ridículo, mãe”, talvez diga a garota de
14 para sua mãe de 40 que está fazendo sua primeira tatuagem. “Que ridículo” é
a forma condensada de os mais moços demonstrarem o medo de que seus “velhos”
estejam pensando mais em si mesmos do que em seus descendentes. É infantil, mas
compreende-se: todos querem ser cuidados por quem chegou antes, ser a razão da
vida de seus predecessores. Difícil aceitar que quem nos colocou no mundo está
casando pela terceira vez, está se preparando para estudar inglês na ilha de
Malta, está fazendo planos. Planos! Os maduros estão humilhando as novas
gerações. Quanto mais idade, mais ativos, enquanto que seus filhos e netos
ainda não sabem o que serão quando crescerem.
Talvez do que a garotada esteja precisando é ter uma dimensão
mais aproximada da morte.
O fim ainda está longe pra eles, então ficam meio prostrados,
esperando alguma garantia antes de se aventurarem. Temem escolher errado, temem
fracassar e, enquanto isso, o tempo passa. Tempo que seus avós não têm mais
para esbanjar: jogam-se sem precisar de garantia pra nada. O fato de os “velhinhos”
estarem mais dinâmicos não fragiliza seus vínculos, continuam sendo parentes
próximos, ainda que viajem, excursionem, pedalem e corram — pra longe dos
estereótipos.
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Martha Medeiros
terça-feira, 25 de julho de 2017
de onde vem a nossa dor
A dor nas costas vem das costas, a dor de estômago vem do estômago, a dor de cabeça vem da cabeça. E sua dor existencial, vem de onde?
Ela vem da história que você meio que viveu, meio que criou –
é sabido que contamos para nós mesmos uma narrativa que nem sempre bate com os
fatos. Nossa memória da infância está repleta de fantasias e leituras
distorcidas da realidade. Mesmo assim, é a história que decidimos oficializar e
passar adiante, e dela resultam muitas de nossas fraturas emocionais.
Nossa dor existencial vem também do quanto levamos a sério o
que dizem os outros, o que fazem os outros e o que pensam os outros – uma
insanidade, pois quem é que realmente sabe o que pensam os outros? Pensamos no
lugar deles e sofremos por esse pensamento imaginado. Nossa dor existencial vem
dessa transferência descabida.
Nossa dor existencial, além disso, vem de modelos projetados
como ideais, a saber: é melhor ser vegetariano do que comer carne, fazer
faculdade de medicina do que hotelaria, namorar do que ficar sozinho, ter
filhos do que não ter, e isso tudo vai gerando uma briga interna entre quem
você é e entre quem gostariam que você fosse, a ponto de confundi-lo: existe
mesmo uma lógica nas escolhas?
Como se não bastasse, nossa dor existencial vem do que não é
escolha, mas destino: quem é muito baixinho, ou tem cabelo muito crespo, ou é
pobre de amargar, ou tem dificuldade de perder peso vai transformar isso em uma
pergunta irrespondível – por que eu? – e a falta de resposta será uma cruz a
ser carregada.
Nossa dor existencial vem da quantidade de nãos que
recebemos, esquecidos que somos de que o “não” é apenas isso, uma proposta
negada, um beijo recusado, um adiamento dos nossos sonhos, uma conscientização
das coisas como elas são, sem a obrigatoriedade de virarem traumas ou convites
à desistência.
Nossa dor existencial vem do bebê bem tratado que fomos, nada
nos faltava, éramos amamentados, tínhamos as fraldas trocadas, ninavam nosso
sono, até que um dia crescemos e o mundo nos comunicou: agora se vire, meu bem.
Injustiça fazer isso com uma criança – alguém aí por acaso deixou totalmente de
ser criança?
Nossa dor existencial vem da incompreensão dos absurdos, da
nossa revolta pelos menos favorecidos, da inveja pelos mais favorecidos, da
raiva por não atenderem nossos chamados, por cada amanhecer cheio de promessas,
pela precariedade das nossas melhores intenções e pela invisibilidade que nos
outorgamos: por que nunca ninguém nos enxerga como realmente somos?
Dor de dente vem do dente, dor no joelho vem do joelho, dor
nas juntas vem das juntas. Nossa dor existencial vem da existência, que nenhum
plano de saúde cobre, de tão difícil que é encontrar seu foco e sua cura.
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Martha Medeiros
segunda-feira, 24 de julho de 2017
quinta-feira, 20 de julho de 2017
estranho equilíbrio
Eu descobri ontem um provérbio perfeito: Se quer ser amigo
feche um olho, se quer manter uma amizade feche os dois olhos.
Faz muito sentido. Amigo é não se meter, por mais que
tenhamos intimidade, é respeitar a decisão mesmo que não seja o que você pensa.
Se ele procura namorar alguém que você não gosta, é dar apoio
igual. Se ele pretende permanecer num emprego que você não acha justo, é dar
apoio igual. Se ele busca manter uma vida que você não considera ideal, é dar
apoio igual.
É estar junto apenas, para qualquer dos lados.
Amizade é dança. Acompanhar o ritmo da música.
É opinar, expor sua crítica, mas não viver pelo outro.
É não intervir, não pesar a mão, não exagerar.
Amigo não é ser pai, não é ser mãe, não é educar.
É aceitar o que ele é, é reconhecer o que ele deseja, ainda
que seja muito diferente de suas crenças.
É entender o momento de falar e entender também o momento de
silenciar.
Análise demais estraga a amizade. Você estará sendo
terapeuta, não amigo.
É discordar e seguir adiante. Não é discordar e fazer
oposição, boicote, greve. Até que nosso amigo mude de ideia.
Amigo é oferecer conselho, não um sermão. É alertar, jamais
insistir.
Amizade é fugir do julgamento, é compreender a alternância,
os altos e baixos, os desabafos.
Amigo não cobra coerência, não fica em cima cutucando
feridas.
É saber tudo e agir como se não soubesse de nada. É não ficar
apontando o que é certo ou errado.
Amizade é difícil. Amizade é um estranho equilíbrio.
Mas amizade não é cegueira. É a arte de enxergar com os
ouvidos.
#dia do amigo
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Datas,
Fabrício Carpinejar
o medo do amor
Eu não tenho medo do amor. Eu tenho medo é de amar quem tem medo dele.
Amar quem teme o amor é como se apaixonar por uma sucessão de desistências.
É como viver apenas a possibilidade de algo, mas com a sensação de que ela nunca se estabelecerá.
É ficar intranqüilo não com o amanhã, mas com os próximos minutos.
Quem teme o amor vai embora antes de fazer as pazes com ele.
Antes de saber que surpresas ele reservava.
Quem teme o amor teme caminhar de mãos vazias em direção ao desconhecido.
Está sempre baseado numa repetição do passado.
E acha que a vida será como todos aqueles dias idos.
Quem teme o amor não vê a pessoa que conheceu, não se dá a oportunidade de ser amado de outra forma.
Quem teme o amor se envolve é com o drama de todas as feridas que vieram à tona porque ele não se permitiu ficar sozinho e confuso o suficiente para curá-las.
Quem teme o amor não aprendeu a pedir ajuda nem a receber a cura do Universo. Ele se acha maior que o amor e não conjuga o verbo.
Quem teme o amor consegue ser mais perverso do que quem o magoou.
Quem tem medo do amor, pra se preservar, não se permite
delirar lindamente... e perde a parcela mais deliciosa que o amor
prometeu... por medo de amar.
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Marla de Queiroz
quarta-feira, 19 de julho de 2017
Que saco, esse saco cheio de prepotência e arrogância, minha
gente!
Libertem-se de tanta
vaidade...
Gente leve consegue ser mais feliz!
Vamos cuidar de diminuir essa soberba. Voar, voar, subir,
subir: “biafrar”
Eu fico pasma como o poder revela as pessoas.
Bem dizem que “só se conhece o soldado quando ele vira
tenente.”
#desabafo!
“Não sei se estou perto ou longe demais, se peguei o rumo
certo ou errado.
Sei apenas que sigo em frente, vivendo dias iguais de forma
diferente.
Já não caminho mais sozinha, levo comigo cada recordação, cada
vivência, cada lição.
E, mesmo que tudo não ande da forma que eu gostaria,
saber que já não sou a mesma de ontem me faz perceber que valeu a pena.”
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Cora Coralina
diálogo das pombas
Imagine duas pombas dialogando na Praça dos Três Poderes.
– Viu só? Agora inventaram um Código de Ética.
– Triste país em que a ética precisa de um código para ser
entendida.
– A culpa é de Brasília, que está distante de tudo. Aqui,
tudo precisa ser reinventado, até a ética. Aqui, o poder é apenas uma forma
hierarquizada de solidão. Em Brasília, nenhuma multidão é uma multidão, são
vários solitários juntos.
– Literatura. A culpa é de Brasília porque foi aqui que
começou o Brasil moderno, ou o Brasil refém das empreiteiras. Juscelino
inaugurou o regime sob o qual vivemos e do qual tudo o mais é decorrência: a
ilicitocracia. O governo por licitação suspeita, o lobby como programa, o
“quanto eu levo nisso” como lema e a propina como sistema. Ao mesmo tempo em
que desbravávamos o nosso oeste político, rompíamos a barreira moral que nos
mantinha agropastoris e atrasados e nos privava da mola universal do progresso,
que é o superfaturamento. E tudo continua igual. Só inovamos o processo: aqui,
o refém é sempre o mesmo e mudam os bandidos.
– Não, não, é algo no ar. Algo na luz, algo no chão. A
construção de Brasília mexeu com o que não era para ser mexido, despertou um
monstro enterrado, furou um veio maligno. Isso que anda por aí não é mau
caráter, é escapamento. Collor respirou essas emanações na adolescência. Era um
filho da profanação. Aquilo não era falta de escrúpulos, era intoxicação.
– Mas o Temer, por exemplo, não é daqui.
– Mas foi aceito como um filho. Só a um filho se permitiria
chegar tão longe, sabendo-se o que se sabia dele. Só uma mãe adotiva seria tão
compreensiva.
– A culpa não é do chão, é da obra. Nenhum país se torna uma
cleptocracia moderna e fica inocente ao mesmo tempo. Esse canteiro de
transformações, em qualquer outro lugar, teria dado a mesma coisa. Todo mundo
sabe o que há num canteiro de obras: métodos pesados e muita lama. Não é um
lugar para almas leves. É um lugar para tratores e padilhas.
– A culpa é da luz! Razão teve o Jânio, que deu no pé. Não
foi golpe mal dado nem ressaca, foi lucidez. Jânio encarou a luz de Brasília e
decidiu que ela, sim, o enlouqueceria. Era ela ou ele. Fugiu.
– Jango chegou a Brasília com a pior ilusão que um presidente
pode ter: a de que preside. Não soube administrar nem a sua solidão. Foi
expulso.
– Os presidentes militares sobreviveram à luz, ao ar e ao
sortilégio de Brasília porque souberam usar a principal virtude militar, que é
a falta de imaginação. A solidão não os afetou porque mesmo o general mais
sozinho tem a companhia das suas divisas e pelo menos uma presunção de tropa.
– Brasília não se contentou em repudiar Tancredo. Matou-o.
– A danação poupou Sarney.
– Tudo poupou Sarney. A vida, a história, a crítica
literária, os eleitores... Sarney descobriu a camuflagem perfeita para passar
por Brasília incólume. Se disfarçou de José Sarney.
– E Itamar?
– Itamar escapou porque, onde quer que ele estivesse, estava
sempre em Juiz de Fora. É um caso raro em que a geografia acompanhou o homem.
– E chegamos a Fernando Henrique.
– O Surpreendido. Este descobriu um meio de conviver com
Brasília e com o Brasil no qual nenhum presidente desde Juscelino pensara.
– Qual?
– Não se envolver e fingir que nada era com ele.
– E, nós, o que fazemos aqui?
– Somos parte da paisagem.
– Outra maneira de não se envolver.
– Isso.
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Luis Fernando Veríssimo
sábado, 15 de julho de 2017
quinta-feira, 13 de julho de 2017
não “temos de”
Vivemos sob o império do “ter de”. Portanto, vivemos num
mundo de bastante mentira. Democracia? Meia mentira. Pois a desigualdade é
enorme, não temos os mesmos direitos, temos quase uma ditadura da ilusão dos
que ainda acreditam. Liberdade de escolha profissional? Temos de ter um
trabalho bom, que dê prazer, que pague dignamente (a maioria quer salário de
chefe no primeiro dia), que permita grandes realizações e muitos sonhos
concretizados? “Teríamos”. No máximo, temos de conseguir algo decente, que nos
permita uma vida mais ou menos digna.
Temos de ter uma vida sexual de novela? Não temos nem
podemos. Primeiro, a maior parte é fantasia, pois a vida cotidiana requer, com
o tempo, muito mais carinho e cuidados do que paixão selvagem. Além disso,
somos uma geração altamente medicada, e atenção: muitos remédios botam a libido
de castigo.
Temos de ter diploma superior, depois mestrado, possivelmente
doutorado e no Exterior? Não temos de... Pois muitas vezes um bom técnico ganha
mais, e trabalha com mais gosto, do que um doutor com méritos e louvações.
Temos de nos casar? Nem sempre: parece que o casamento à moda antiga, embora
digam que está retornando, cumpre seu papel uma vez, depois com bastante
facilidade vivemos juntos, às vezes até bem felizes, sem mais do que um
contrato de união estável se temos juízo. E a questão de gênero está muito mais
humanizada.
Temos de ter filho: por favor, só tenham filhos os que de
verdade querem filhos, crianças, adolescentes, jovens, adultos, e mesmo adultos
barbados, para amar, cuidar, estimular, prover e ajudar a crescer, e depois
deixar voar sem abandonar nem se lamentar. Mais mulheres começam a não querer
ter filho – e não devem.
Maternidade não pode mais ser obrigação do tempo em que, sem
pílula, as mulheres muitas vezes pariam a cada dois anos, regularmente, e aos
cinquenta, velhas e exaustas, tinham doze filhos. Bonito, sim. Sempre desejei
muitos irmãos e um bando de filhos (consegui ter três), mas ter um que seja
requer uma disposição emocional, afetiva, que não é sempre inata. Então,
protejam-se as mulheres e os filhos não nascidos de uma relação que poderia ser
mais complicada do que a maternidade já pode ser.
Temos de ser chiques, e, como sempre escrevo, estar em todas
as festas, restaurantes, resorts, teatros, exposições, conhecer os vinhos,
curtir a vida? Não temos, pois isso exige tempo, dinheiro, gosto e disposição.
Teríamos de ler bons livros, sim, observar o mundo, aprender com ele, ser boa
gente também.
Temos, sobretudo, de ser deixados em paz. Temos de ser
amorosos, leais no amor e na amizade, honrados na vida e no trabalho, e, por
mais simples que ele seja, sentir orgulho dele. Basta imaginar o que seriam a
rua, a cidade, o mundo, sem garis, por exemplo. Sem técnicos em eletricidade,
sem encanadores (também os chamam bombeiros), sem os próprios bombeiros,
policiais, agricultores, motoristas, caminhoneiros, domésticas, enfermeiras e o
resto. Empresários incluídos, pois, sem eles, cadê trabalho?
Então, quem sabe a gente se protege um pouco dessa pressão do
“temos de” e procura fazer da melhor forma possível o que é possível. Antes de
tudo, um lembrete: cada um do seu jeito, neste mundo complicado e vida-dura,
temos de tentar ser felizes. Isso não é inato: se tenta, se conquista, quando
dá. Boa sorte!
“Todo o mundo me diz que tenho que fazer exercício. Que é bom
para a minha saúde. Mas nunca ouvi ninguém dizer a um desportista: tens que
ler.”
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José Saramago
quarta-feira, 12 de julho de 2017
sobre filhos:
é falar olha fulano é assim, assim, assado, Deus existe,
esta vida tem fim, estamos aqui é emprestados, a fim de fazer
o bem,
amar nossos semelhantes.
É debater com eles quando a tiririca das más companhias e das
influências ruins ameaçarem a lavoura.
Depois que a gente tem filho só existe uma tarefa pra fazer:
cuidar deles.
O que está mais perto do amor de pai e de mãe é ódio de pai e
de mãe.
Se a gente se esforçar pra ser pai e mãe com decência,
parar de pensar na gente, pra se incomodar mais com estes que nós pusemos no mundo, eles vão dar conta de sofrer sem perder a esperança.”
parar de pensar na gente, pra se incomodar mais com estes que nós pusemos no mundo, eles vão dar conta de sofrer sem perder a esperança.”
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Adélia Prado
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