"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

abre alas


Ô abre alas que ele quer passar! Aí vem ele, o festeiro mor do nosso país, o Carnaval Brasileiro. Quer você goste ou não, ele vai acontecer nos quatro cantos do país. Que atire a primeira pedra, quem nunca se viu no meio de uma roda ou de uma corrente humana dançando e cantando uma música de carnaval?

Ele já arrastou milhões de pessoas, já trouxe turistas do mundo inteiro para o nosso país, já foi palco de grandes amores e por ele foram reveladas competências da musica e da arte de criar e encantar. Ele cresceu tanto que diversificou. Você pode desfilar na avenida, pode ir atrás do trio elétrico, frevo, maracatu, blocos de rua ou torcer veementemente pela sua escola de samba favorita.

A festa hoje ficou muito relativa. O carnaval depende da idade, do estado civil, da conta bancária e de um monte de outros fatores. Se a pessoa está solteira, sobrecarregada de amor para dar, o carnaval é passagem comprada para a Bahia. Muito Axé e beijo na boca. Se a pessoa vive no Recife ou nos arredores, carnaval é compromisso. Vai a família inteira para a rua. Não tem desculpa. É parte da vida daquelas pessoas, algo maravilhosos de se ver! E ainda tem aqueles que aproveitam os dias de carnaval para fazer um retiro de silencio ou de meditação que tanto queriam. Se este é o seu caso, corre lá que dá tempo!

O importante é deixar que cada um curta o seu carnaval do seu jeito. O que não dá para aceitar é a pessoa passar os 4 dias de folia literalmente implicando com o carnaval do outro. A música que é ruim, a roupa que é pequena demais, as mulheres depravadas, o dinheiro que gastou no desfile. Esse aí perdeu a chance de aproveitar os 4 dias de carnaval. Tá certo que o carnaval de hoje é muito diferente do carnaval das marchinhas, mas, o quê não é diferente? Tudo mudou; os comportamentos, as opções, os gostos e principalmente as pessoas! Por que, com o carnaval seria diferente? Para com essa implicância ridícula e segue sua vida! O dia que aprendermos a conviver com as escolhas alheias, aí sim, teremos uma grande festa! Um carnaval de boas energias.

Agora, se você como eu, não vai poder desfilar na Mangueira como gostaria; bem, para nós carnaval vai ser livro, gaveta arrumada, descanso, faxina na casa, enfim, tudo que a gente vai adiando, adiando e reza para chegar um feriado que nos dê a chance de colocar em ordem. Cada um escolhe a fantasia que lhe convém!



A palavra incontornável da semana, “carnaval”, tem a ver com carne?
Claro que tem, mas as aparências enganam.

Em vez da carne humana que desfila pelas ruas em plena folia, desinibida e seminua, estamos falando da carne de animais – literalmente – comestíveis. E em vez de licença e permissividade, a palavra em sua origem traduzia o oposto: interdição, veto.
A palavra foi importada no século XVI do italiano carnevale, derivada, segundo a maioria dos filólogos, da expressão latina carnem levare, que significa suspender a carne, dar adeus a ela, afastar-se dela.

“Carnaval” referia-se inicialmente apenas à Terça-Feira Gorda, véspera da Quarta de Cinzas, quando começa a Quaresma, que uma tradição católica (um tanto esquecida hoje) mandava consagrar inteiramente ao jejum – a hora, portanto, de suspender o consumo de carne.

Sim, é óbvio que, por trás da aparente severidade, a ideia de excesso já acompanhava a palavra em seu nascimento: nas últimas horas antes da interdição da carne, abusava-se de seu consumo.

Sérgio Rodrigues / Sobre Palavras



Eduque a criança no caminho em que deve andar, e até o fim da vida não se desviará dele.

Provérbios 22:6 / NTLH

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

gostar de carnaval



Sei que não vou ter a aprovação deles: os apaixonados por Carnaval vão torcer o nariz e passar adiante.

Não desgosto de Carnaval. Quando mocinha, fui a bailes de clube e achava muito divertido, fantasia de holandesa, que combinava comigo, ou de odalisca, que não tinha naaaada a ver.

Éramos adolescentes meio inocentes do Interior, mas, estranhamente, todo mundo usava lança-perfume, hoje condenado. As mães só recomendavam para não aspirar direto nem cheirar lenço molhado com o produto, cujo cheiro aliás eu adorava, lembrava alegria e descontração.

Não havia quase Carnaval de rua, nada parecido com os blocos de hoje, as multidões suadas e não muito vestidas, num aperto meio indigno de não haver onde fazer xixi nem o resto, gente de porre vomitando é quase normal, peitos e bundas oferecidos com generosidade absoluta.

Acho que éramos cheios de manias naquele tempo. Carnaval era mais alegria do que deboche. Talvez ainda fôssemos moralistas ou bobos.

Hoje me entristece um pouco: não a alegria, a diversão, a catarse de um povo explorado e sofrido, mas a capacidade meio desesperada de por vários dias e noites esquecer a situação do país - que beira o dramático ou trágico - pulando, requebrando, chacoalhando numa felicidade ímpar.

Por um breve tempo de ilusão, esquecem-se as contas atrasadas, a comida cara, a condução desconfortável, o pagamento atrasado, o terror da violência tão habitual, o temor de adoecer e não ter hospital nem remédio.

Talvez esses dias de total alienação - estranha para quem não participa - sejam um intervalo necessário e misericordioso num país em tamanhas dificuldades. A imagem que fica é a de um povo rico, saudável, despreocupado, bem empregado e feliz, não dando a menor bola para os chatos que, como esta colunista, assistem com um vago espanto às sucessivas e intermináveis (e incansáveis) ondas de corpos suados, caras desfeitas, risos abertos e copos sempre cheios que por dias e dias e dias e dias enchem ruas e avenidas numa alegria atroz.

Quem sabe hoje escreve aqui uma bruxa nem tão boa, nem tão divertida, mas com certeza um bocado preocupada e atenta ao que fazem conosco e com este país que a gente ama.


#ema ema ema!

as músicas inofensivas e as dilacerantes



É difícil escrever sobre música. Palavras sempre ficam aquém da intensidade do som. Canções são obras eróticas, as letras seduzem, o ritmo excita. Música é um afrodisíaco universal. O cinema não vive sem. O amor não vive sem.

Cada um de nós tem seu próprio gosto. A música que a gente prefere é nosso demônio interno ganhando voz, dialogando conosco em privado. É uma troca de segredos entre dois desconhecidos íntimos que se relacionam através de fones de ouvido, dentro do carro, no escuro do quarto. A música é a arte mais próxima do sexo.

Há quem só escute músicas inofensivas. Você sabe, aquelas que possuem rimas óbvias, melodias calmantes, nenhuma perturbação e que ganham as paradas de sucesso mais condescendentes do universo. As músicas fáceis. Bonitinhas. Descartáveis.

São necessárias. Gosto de muitas delas - preciso delas, inclusive, porque ninguém consegue ser tão endiabrado de segunda a segunda. Uma baladinha bem chiclete, que você cantarola enquanto espera o trem na estação do metrô. Normal. É nossa dose anestésica contra a dor de existir.

Mas prefiro a dor de existir.

Música sem voz rasgada, sem alma decepada, sem ter sido lacerada por álcool ou drogas ou desespero ou alucinação ou raiva ou paixão – de onde veio então? Não me identifico com nada que tenha sido composto sem esforço. Quero que a diva que esteja cantando me confesse seus pecados, que o cara que esteja cantando tente me convencer que está arrependido, que o amor que esteja sendo narrado tenha sido o mais profundo de todos, que a banda me sequestre na calçada da escola e eu passe dois dias em um cativeiro com pôsteres descascados de Jim Morrison nas paredes, quero que a música me coloque no meio de uma estrada, que me tire de onde estou, que tire a roupa que estou.

Que a música (e não estou falando só de rock, mas de jazz, blues, ópera, gospel) me eleve até um ponto em que eu vislumbre o mar lá de cima, as montanhas, as famílias voltando para casa no fim do dia cantarolando refrões - que pareça que eu morri. Quero que ela me tonteie com sua crueza, que me arrebate com sua poesia, que me aproxime de sentimentos impenetráveis, que me revele o lado infernal da sofisticação, quero música que mesmo que eu não entenda o que diz, eu entenda.

A música tem que me invadir de um jeito que me faça duvidar se tenho força para emoções desmedidas – mas tenho. Ela precisa enredar como nos enreda a voz soturna de Tom Waits, os poemas cantados pelo Chico, os gritos rasgantes de Janis, as provocações sensuais de Jagger, os sussurros de João Gilberto. Todas as canções dilacerantes são um pouco criminosas, pois nos abatem e nos condenam ao silêncio, aquele silêncio sagrado em que a gente se escuta, finalmente.

um dia por vez



Por isso, não fiquem preocupados com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã trará as suas próprias preocupações. Para cada dia bastam as suas próprias dificuldades.

Mateus 6:34 / NTLH

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

o tempo não mata o desejo



Não acredite que o tempo mata o desejo. Que o tempo estraga relacionamentos.
Que um casal com mais de cinco anos junto está fadado ao desânimo, destinado a infidelidade. 

Não é verdade. O tempo, nesse caso, é só um sinônimo para a inveja dos outros.

A cumplicidade é maior, as possibilidades de sair de uma briga são maiores, as chances de superar as dificuldades são maiores. 

O par fica com traquejo, manha, esperteza para sobrevoar um impasse. Conhece a fundo os limites da convivência para não se afogar.

A rotina traz humildade e autocrítica, não existe mais aquela arrogância da paixão “ou é do meu jeito ou não faço”, não existe mais o tudo ou o nada, não existe mais a chantagem da separação, a porta é apenas uma porta.

O sexo é menos encenado e performático, com destreza e cumplicidade, tirando proveito da naturalidade do toque e do conhecimento do corpo.

O tempo nem passa para quem ama. Há assuntos mais importantes para cuidar.


eu também preciso arrumar outra desculpa!

beleza ou paciência



Outro dia vi , talvez no meu Face, esta frase: “Quando tudo dá certo, a gente diz ´Beleza!’. Quando dá errado, se diz ´Paciência!`”. Como tantas dessas frases soltas na rede social, essa me pareceu divertida e verdadeira. Outras, muitíssimas, são bem tolas, sem fundamento, preconceituosas ou ainda arrastando, depois de mais de um mês, as disputas e insultos políticos.

Sim, quando dá certo, a gente fica tranquilo, ou eufórico, dá graças a Deus (um amigo médico reclamou: “Agradecem a Deus, está certo, mas e nós, médicos, em geral só nos citam em participações fúnebres”). Há quem agradeça, mas enfim... Deus ajudou, quando nos salvamos, Deus quis quando alguém amado morre. Somos simplistas talvez para aguentar a montanha-russa da vida.
Sempre tive pouca paciência, sobretudo para aprender coisas. Fui uma estudante esquisita, eu acho, sabendo muita coisa, porque lia loucamente, e ignorando outras, básicas, por falta de capacidade ou paciência para me concentrar. O bom professor de matemática que me deu aulas particulares anos a fio certo dia disse a meu pai, constrangido: “Doutor Arthur, a sua filha é muito inteligente, mas comigo não aprende mesmo. Eu explico, explico, ela fica me olhando com aquele jeito meio distraído, e vejo que, de verdade... não entendeu nada”.
Outro professor, já na faculdade, brincava dizendo que eu aprendia “pra trás”, isto é, se não pegava logo pela intuição, já desistia do esforço de aprender. Sonhadora e preguiçosa, eu não queria saber quantos metros de trilhos tantos operários fariam em tantas horas, ou quantas maçãs caberiam num cesto se... Ali não valiam nem “beleza”, nem “paciência”.
Escrevi na coluna passada, mais uma vez, da minha paixão inata pelas palavras. Vai daí que também implico com algumas: por exemplo, atualmente, “empoderamento” e “feminicídio”. Elas são ruins? Não valem? Até que são boas, até que valem porque todos entendem, mas sobretudo “feminicídio” é de matar e provoca minha maior impaciência. Dói nos ouvidos. “Homicídio” não bastaria porque se liga a homem?

Que pobreza. Assim, no populismo atual por este grande mundo, não basta dizer “o homem às vezes sabe ser genial” porque isso não incluiria as mulheres? Não se atina com o fato bem simples da linguagem segundo o qual “homem” é agenérico, refere-se a criatura da raça humana... Como quando dizemos “presidente” de uma empresa, caso seja mulher, não precisamos criar o termo “presidenta” (ou “presidanta”)...
Eu sei que língua é um ser vivo, que se modifica segundo fato social que é, e que isso independe, em geral, da atuação de uma ou mais pessoas. Possivelmente, nas gírias diversas, alguma celebridade usando um termo ou interjeição, ou mesmo gesto (que é linguagem), vai criar uma momentânea onda de imitadores. Logo passa. Mas a língua em si, essa fascinante criatura viva, bela e atroz, poética e cruel, ou inócua e obtusa, merecia ser dispensada dessa invasão de feminicídios e empoderamentos, e mais outros da sua turma. Implicância minha, impaciência? Provavelmente. Ainda bem que, como já disse e repito, sendo ela um ser vivo e livre, não precisa da minha simpatia ou implicância para continuar.



Esperei com paciência
pela ajuda de Deus, o Senhor.
Ele me escutou e ouviu
o meu pedido de socorro.

Salmos 40:1 / NTLH

domingo, 17 de fevereiro de 2019



Diálogo entre duas mulheres, entreouvido numa sala de espera: “De que ela morreu?” Respondeu a outra: “De causa natural”. Fiquei pensando: então a coitada deve ter morrido de latrocínio. 

Hoje em dia, morrer de causa natural é morrer por ter cruzado com um garoto viciado ou um brutamontes colérico que não controla seus atos e atira. É morrer da facilidade com que delinquentes portam armas. É morrer de bala perdida. Uma morte natural, naturalíssima, está todos os dias nos jornais. 

Dão entrada em hospitais centenas de pessoas com infecções, tumores, edemas, intoxicações, mas elas não morrem dessas doenças. Antes, morrem de falta de leito. De falta de médico. O natural é que morram de falta de atendimento. 

Há quem esteja morrendo de lipoaspiração: a paciente escolhe uma clínica clandestina, que não possui o equipamento cirúrgico necessário, e morre se for alérgica a algum medicamento ou se tiver uma parada cardíaca durante a anestesia. Morre de falta de socorro adequado. 

Tanto quanto de raios, morre-se também de sequestro-relâmpago. Dependendo do humor dos sequestradores, você volta para casa ou não.

Morre-se de ganância, de falta de alvarás, de desprezo pelas regras de segurança, de material de quinta categoria, de prazos de validade vencidos.

Morre-se de falta de policiamento nas ruas, morre-se de invisibilidade: não vemos ninguém quando precisamos e ninguém nos vê também. 

Morre-se de calçada irregular, de estrada esburacada, de rodovia mal sinalizada, de obra sucateada. A gente se mata para pagar os impostos e eles continuam não sendo reaplicados em nós, e, sim, no sustento de mordomias parlamentares.

Morre-se de político corrupto, que desvia verbas públicas em prol de interesses particulares, e também de político covarde, que não enfrenta o esquemão contaminado de seus pares, que se candidatou apenas por vaidade e pelo poder, que não se compromete com a população e que jamais será respeitado enquanto não se dedicar ao bem das pessoas que representa. 

Morre-se de trote. Escolha a modalidade mais natural: o trote na universidade, praticado por estudantes bestiais, ou o trote telefônico, aquele que mata do coração os que não detectam o fajuto golpe do sequestro.

E como o próprio nome diz (morte natural), a natureza tem feito sua parte, provocando óbitos por deslizamentos, queimadas, tsunamis, que nada mais são do que revide às agressões que temos cometido contra o meio ambiente. Fazer esse mea culpa causa depressão, que, ironicamente, pode matar também. Liquidamos com o planeta e conosco mesmo.

Morrer de velhice e de falência múltipla dos órgãos é que não é natural - passou a ser um luxo para poucos.


Quando você tiver a minha idade, não tenha medo. O mundo é um lugar bom, apesar de tudo. Ainda não inventaram outro lugar onde as pessoas se abraçam assim. Ainda não inventaram outro lugar em que a gente pode andar de bicicleta conversando. Em que a gente pode deitar na grama. Em que a gente pode dizer “eu te amo”.

Claro que há os que não acreditam na beleza do mundo. Há os que estão presos no trânsito. Há os que se molharam com a chuva. Há os que perderam o ônibus. Há os que reclamam do chefe. Há os que nunca têm tempo pra nada. Há os que sempre estão precisando de mais dinheiro.

Mas há os que estão ouvindo jazz. Há os que acham a chuva um milagre. Há os que decidiram caminhar. Há os que começaram o próprio negócio. Há os que tiraram um dia de folga. Há os que não precisam de mais nada pra serem felizes. Há os que olham ao redor e falam pra si mesmos: “Se isso aqui não é agradável, não sei o que é”.

Tem coisas que a gente não controla, meu amor. O clima. Os outros. O tempo. Esta é a beleza do mundo. O improvável. O imprevisível. Quando tiver a minha idade, não tenha medo. Espero estar ao seu lado hoje, mas se não estiver não tenha medo. Há o que você controla. Há abraços e amigos e música e há crianças.

Faça coisas boas. Arrume o sofá e assista a um filme. Tome seu chá favorito. Faça algo inesperado. Diga o que sente. Abrace as pessoas. Me mande uma mensagem amorosa. O mundo é um lugar bom, meu amor. Apesar de tudo. Porque ainda não inventaram outro lugar que você existe.



“Que brilhem como o sol nascente aqueles que amam o Senhor.” 

Juízes 5:31

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

adeus, Boechat!



Não se vive mais, só se enterra. Por que tantas mortes? Já não havia como suportar a população dizimada de Brumadinho, os dez adolescentes sacrificados no ninho do Urubu, as sete vítimas do dilúvio do Rio, e, agora, mais essa lâmina cortando a nossa voz de novo: morre Ricardo Boechat, 66 anos, um dos melhores jornalistas brasileiros, três prêmios Esso, âncora da rádio BandNews FM, e do Jornal da Band, na TV Bandeirantes.

Ele estava no helicóptero que caiu sobre um caminhão na ligação do Rodoanel com a rodovia Anhanguera, em São Paulo, nesta segunda-feira (11). Que provação é essa? Que privação é essa? Assistimos a um interminável enterro, um insuportável transporte de caixões com a bandeira brasileira. Caronte não para de carregar almas daqui. Brasil é Hades.

Como serão as nossas manhãs sem a eloquência de Boechat? Ele falava bonito cada notícia, como se estivesse recitando Fernando Pessoa, nunca perdendo a linha de raciocínio, sem cacoete verbal: límpido pensamento sonoro.
Tinha uma máquina de escrever entre os dentes. Soprava páginas e derrubava mitos e preconceitos.

Irônico, argumentativo, combativo, um dos últimos adeptos da retórica do jornalismo. Defendia exaustivamente as suas ideias e apenas se acalmava ao descascar as aparências do poder e descartar todos os pontos de vista. Ganhava a discussão pelo fôlego e pelas metáforas.

Qualquer um conhece Boechat, da tevê ou do rádio ou do jornal (trabalhou nos jornais O Globo, O Dia, O Estado de S. Paulo e JB e foi comentarista no Bom Dia Brasil, da TV Globo): um aristocrata de cabeça lisa, com o olhar confiante e sedutor. Impossível virar os olhos com ele em ação: hipnótico, convincente, impositivo.

Gostava de uma boa briga. Envolvia-se em uma polêmica semana sim e outra também.
Era um duelista à moda antiga, com um lenço dobrado no terno e ferro na lábia, daqueles que ainda se dispunham a lutar para manter a honra e a palavra, custe o que custasse, em confrontos intensamente emocionais contra os desmandos do país.

Até os desafetos respeitavam a sua opinião. Até os adversários não deixavam de ouvir, ver, ler Boechat. Até a morte deve ter pedido desculpa.


Meu Deus, o nuvens tá parecendo um obituário!



Poderia ter sido Zizinho. Poderia ter sido Carlinhos (Violino). Poderia ter sido Zico. Poderia ter sido Júnior. Poderia ter sido Leandro. Poderia ter sido Adílio. Poderia ter sido Andrade. Poderia ter sido Gerson Canhotinha de Ouro. Poderia ter sido Marcelinho Carioca. Poderia ter sido Zinho. Poderia ter sido Leonardo. Poderia ter sido Aldair. Poderia ter sido Sávio. Poderia ter sido Paulo Nunes. Poderia ter sido Djalminha. Poderia ter sido Júnior Baiano. Poderia ter sido Mozer. Poderia ter sido Adriano Imperador. Poderia ter sido Julio César. Poderia ter sido Juan. Poderia ter sido Tita. Poderia ter sido Zagallo. Poderia ter sido Dida. Poderia ter sido Felipe Melo. Poderia ter sido Renato Augusto. Poderia ter sido Vinicius Júnior. Poderia ter sido Lucas Paquetá.

Todos em comum foram um dia garotos de base do Flamengo, todos dormiram em alojamentos parecidos com o local da tragédia dessa sexta (8/2) no Rio de Janeiro, todos acordaram da adolescência e não tiveram a sua vida ceifada antes da glória adulta e do crescimento profissional, todos transformaram a esperança em realidade.

Christian Esmério, goleiro de 15 anos, nunca será Christian Esmério. Não empunhará o seu punho vitorioso após defender um pênalti, não vibrará com uma convocação do técnico Tite para a seleção brasileira, não será íntimo da altura do gramado do Maracanã, não levantará mais taças, não comprará casa para os pais, não legará filhos e histórias.
Assim como Arthur Vinicius, 14 anos, não será Arthur Vinicius. Permanecerá anônimo sem ouvir o seu nome ser gritado pela nação rubro-negra.
São duas das dez vítimas do incêndio no Ninho do Urubu, na Zona Oeste do Rio.

Eles morreram dormindo, talvez sonhando em ser igual a Zizinho, a Carlinhos, a Zico...




Lucas 6:45 - Homem bom, do bom tesouro do seu coração tira o bem,
e o homem mau, do mau tesouro do seu coração tira o mal,
porque da abundância do seu coração fala a boca.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

amor x empoderamento


Tento escrever cartas de amor, mas o que fazer com as cartas, em tempos de internet? O romance se foi e vejo que o amor sobrou sozinho à espera daqueles que ainda têm a audácia de vivê-lo. Sim, é audacioso amar.

Amar nunca foi fácil! Acredito que agora ficou ainda mais difícil. Amar, depois da tecnologia, dos livros de autoajuda, do coach e das redes sociais ficou quase impossível.

É preciso atravessar a super auto estima, a meta pessoal, a carreira, todas as redes sociais e muitas selfies para chegar ao amor. Passada todas as etapas do processo de seleção de si próprio, mais todas as ferramentas de auto conhecimento, será que sobra amor para o outro?

A pessoa fica tão foda, tão maravilhosa, tão “empoderada” que não sobra amor para mais ninguém!!!! É uma escola de narcisos!

Todos são super! Não há lugar para os mortais, para os comuns, para os que não gostam de subir ao palco.

Tenho visto as pessoas tão apaixonadas consigo mesmas que não conseguem  achar ninguém à altura delas!

Vivem um relacionamento ilusório com elas mesmas e ao mesmo tempo são carentes de um parceiro. Mas como achar parceiro para quem se coloca acima da humanidade? Como encontrar lugar para o outro numa vida que já vive um relacionamento sério entre “eu comigo e eu mesmo”?

Amar é partilhar a própria vida. Amar é antes de tudo, fazer companhia. Não importa a distância, quando amamos, temos companheiros e companheiras.

O amor não foi feito para os perfeitos. Ele não sobrevive neste meio. O amor fecunda no improvável, no incerto, nas entrelinhas das nossas verdades mais escusas.

Amar é correr riscos, é baixar as máscaras, se desnudar. Amar é deixar o mundo acontecer lá fora e se trancar com o outro num quarto qualquer. Amar é querer acima das condições físicas, financeiras, meteorológicas e geográficas. Amar é um grande desafio.

O amor gosta da simplicidade, do descontrole da situação, do riso solto. O amor de verdade dispensa a maquiagem, o carro, o título, o sobrenome. E narcisos não vivem sem eles.

Vai chegar o momento em que a geração da foto perfeita vai ter que fazer uma escolha. E aí, cartas de amor deixarão de ser ridículas; famílias voltarão a fazer parte dos planos dos jovens e viver será mais que receber likes.

Tudo em excesso prejudica, até o empoderamento. Fica a dica!




Sei o que é estar necessitado e sei também o que é ter mais do que é preciso. Aprendi o segredo de me sentir contente em todo lugar e em qualquer situação, quer esteja alimentado ou com fome, quer tenha muito ou tenha pouco. 
Com a força que Cristo me dá, posso enfrentar qualquer situação.

Filipenses 4:12-13 / NTLH

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019


“O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas covardias do cotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for suscetível de servir os nossos interesses.”


#volta às aulas

Rio de fevereiro



O calendário não pegou no Rio. O ano efetivo carioca tem a duração de nove meses. É o máximo de tempo-responsável que a nossa tribo suporta. Depois de nove meses de gestação, as cucas de nossos tamoios perdem a consistência, sofrem contrações e dão à luz uma cuíca, ninguém segura a barriga do Rio quando acaba novembro.

Trata-se duma hiperinflação de gratuidades.

Dezembro é fogo e é nesse fogo que os guanabarinos esquecem a produtividade, o compromisso, a carestia, dando férias geral à alma acorrentada. É no fogo de dezembro que o nosso clã desamarra o burro aristotélico e vai brincar nas pastagens da fantasia. O carioca só é de fato carioca durante três meses; no resto do ano é um cidadão mais ou menos cônscio dos seus deveres, quase um paulista.

Dezembro é o mais adolescente dos meses: sem juízo, turbulento, transpirando pansexualismo. Gasta-se em dezembro o dinheiro que não se tem e a saúde que se economizou. Assim sendo, quando janeiro já está engrenado, corre um desejo forte de se descansar das farras de fim de ano, uma necessidade de não se fazer nada. Sejamos sutis: em dezembro a alma carioca entra em férias, mas férias ativas, agitadas, divertidas; janeiro é o descanso do descanso. Nada acontece então na paisagem espiritual do carioca, nenhum desejo, nenhuma inclinação para o bem ou para o mal, a sensação biológica de que a vida flui e faz um calor danado.

Quando janeiro já vai estrebuchando, o carioca leva um susto. O mesmo susto que me esfriava todo, quando mamãe, de repente, como se me detestasse, começava a falar que já estava em tempo de providenciar uniformes novos para o colégio. Quando vejo um jovem reclamar contra os aborrecimentos da vida de estudante, costumo dizer-lhe que há uma única vantagem em envelhecer: não ir ao colégio, não se ter de fazer e decorar verbos irregulares.

O carioca no finzinho de janeiro sente exatamente que as férias vão terminar, é preciso arrumar uniforme novo, enfrentar os professores e os horários ditatoriais. Aí, dá uma louca no Rio.

Fevereiro é um mês torto e adoidado. Não se encaixa no compasso anual. É a ovelha furta-cor do zodíaco.

Fevereiro é o sumo do Rio. O carioca funciona os nove meses efetivos: joga tudo pro alto em dezembro; põe-se em sossego em janeiro, para reflorir e dar de si em fevereiro. É como se a população tirasse a roupa e ficasse nua. O que também acontece – mas estou me referindo às roupagens convencionais que nos escondem e falsificam.

Quem mora no Rio, por ciência ou por instinto, sabe que no mês de fevereiro pode acontecer tudo: o calor de estrumbicar passarinho e o aguaceiro desatado; as calmarias de um amor divino e os emboléus de um amor infernal; quem pretende matar o trabalho e ir comer ostras na Barra da Tijuca costuma acabar comendo ostras na Pedra de Guaratiba – pois em fevereiro as disposições honestas são sempre contrariadas e as disposições vadias são sempre cumpridas.

Quem mora no Rio deve aprender o seguinte: o Rio é medularmente o mês de fevereiro. Quem vive aqui os dias abrasivos de fevereiro viveu tudo (ou quase tudo) da graça e da fantasia carioca. É meter a calça curta e sair por aí: tudo acontece. E embeber-se de fevereiro, pois o mês vai terminar de repente com um baque, como o chão que falta, e é preciso viver intensamente quando nos sentimos emaranhados na armadilha do efêmero.

Fevereiro é um resumo da existência carioca: curto, sacudido, sensual, encalorado, colorido, dourado, irreal. Fevereiro encerra todos os adjetivos do realismo fantástico. Machado de Assis estranhava que, por obediência à tradição, o carnaval vigorasse no verão causticamente, ora, o nosso carnaval está certo, tendo se modelado pelas condições de fevereiro, tornando-se a simbolização em carne viva duma cidade que se despede das férias. Tudo é carnaval em fevereiro. Quando o carnaval cai em março, o carioca perde muito do rebolado: é como festejar o aniversário duma criança dois dias depois, só por ser mais conveniente. Março, não; em março todo mundo sabe que a vida civil e chata começou. Março é o fim.

Paulo Mendes Campos



Se plantar no terreno da sua natureza humana, desse terreno colherá a morte. Porém, se plantar no terreno do Espírito de Deus, desse terreno colherá a vida eterna.

Gálatas 6:8 / NTLH