É difícil escrever sobre
música. Palavras sempre ficam aquém da intensidade do som. Canções são obras
eróticas, as letras seduzem, o ritmo excita. Música é um afrodisíaco universal.
O cinema não vive sem. O amor não vive sem.
Cada um de nós tem seu
próprio gosto. A música que a gente prefere é nosso demônio interno ganhando
voz, dialogando conosco em privado. É uma troca de segredos entre dois
desconhecidos íntimos que se relacionam através de fones de ouvido, dentro do
carro, no escuro do quarto. A música é a arte mais próxima do sexo.
Há quem só escute músicas
inofensivas. Você sabe, aquelas que possuem rimas óbvias, melodias calmantes,
nenhuma perturbação e que ganham as paradas de sucesso mais condescendentes do
universo. As músicas fáceis. Bonitinhas. Descartáveis.
São necessárias. Gosto de
muitas delas - preciso delas, inclusive, porque ninguém consegue ser tão
endiabrado de segunda a segunda. Uma baladinha bem chiclete, que você cantarola
enquanto espera o trem na estação do metrô. Normal. É nossa dose anestésica
contra a dor de existir.
Mas prefiro a dor de
existir.
Música sem voz rasgada,
sem alma decepada, sem ter sido lacerada por álcool ou drogas ou desespero ou
alucinação ou raiva ou paixão – de onde veio então? Não me identifico com nada
que tenha sido composto sem esforço. Quero que a diva que esteja cantando me
confesse seus pecados, que o cara que esteja cantando tente me convencer que
está arrependido, que o amor que esteja sendo narrado tenha sido o mais
profundo de todos, que a banda me sequestre na calçada da escola e eu passe
dois dias em um cativeiro com pôsteres descascados de Jim Morrison nas paredes,
quero que a música me coloque no meio de uma estrada, que me tire de onde
estou, que tire a roupa que estou.
Que a música (e não estou
falando só de rock, mas de jazz, blues, ópera, gospel) me eleve até um ponto em
que eu vislumbre o mar lá de cima, as montanhas, as famílias voltando para casa
no fim do dia cantarolando refrões - que pareça que eu morri. Quero que ela me
tonteie com sua crueza, que me arrebate com sua poesia, que me aproxime de
sentimentos impenetráveis, que me revele o lado infernal da sofisticação, quero
música que mesmo que eu não entenda o que diz, eu entenda.
A música tem que me
invadir de um jeito que me faça duvidar se tenho força para emoções desmedidas
– mas tenho. Ela precisa enredar como nos enreda a voz soturna de Tom Waits, os
poemas cantados pelo Chico, os gritos rasgantes de Janis, as provocações
sensuais de Jagger, os sussurros de João Gilberto. Todas as canções
dilacerantes são um pouco criminosas, pois nos abatem e nos condenam ao
silêncio, aquele silêncio sagrado em que a gente se escuta, finalmente.