"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



quarta-feira, 31 de outubro de 2018


“Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas,
lugares, chocolate, vinho, papos amenos, 
amizade, amor. 

Acho que a poesia está contida nisso tudo.”

#dia da poesia

gostosuras ou travessuras?



Que neste dia possamos acabar com todos os fantasmas de nossas vidas!

#fique por dentro
O Halloween é o segundo feriado mais comercial dos Estados Unidos, 
só perde para o Natal. 
Em geral, os americanos gastam a maior parte do dinheiro com doces, fantasias e festas, além de comprar fantasia para os animais de estimação também entrarem no clima.

#coisas do tio Sam

terça-feira, 30 de outubro de 2018

diagnóstico: Alzheimer


Almocei com um amigo semanas atrás e, quando perguntei a razão de seu abatimento, ele me disse sem rodeios: “Esta manhã recebi o diagnóstico de minha mãe: é Alzheimer”. Imaginei essa senhora, alegre e vital, enveredando pelas sombrias trilhas de uma enfermidade diabólica, e entendi a tristeza de meu amigo como se fosse minha. Minha própria mãe morreu aos 90 anos, depois de bem mais de uma década sendo paulatinamente envolvida na mortalha mental e emocional do Alzheimer. Uma bela mulher ativa tornou-se inexoravelmente uma estranha, raramente ostentando uma vaga semelhança com a que fora minha mãe.

A doença se manifesta em geral muito sutil: um esquecimento aqui, uma confusão ali. Uma atitude estranha aqui, outra ali, intercaladas por fases de aparente normalidade. A sociabilidade muda, os bons modos parecem esquecidos, o controle do dinheiro se torna caótico, e é dificílimo interferir. Há enorme resistência dos familiares em aceitar essa enfermidade. Para mim, minha mãe sofria episódios naturais de esquecimento. Só o choque de um dia a encontrar com uma pintura bizarra no rosto, ela tão recatada, me fez cair na duríssima realidade. Ela já não sabia – ou em longos períodos não sabia – o que estava fazendo. Algumas pessoas mais chegadas tinham me avisado: eu havia me recusado a ver.

O que eu disse a meu amigo, disse a mim mesma nos muitos longuíssimos anos daquela jornada: o doente em geral não sofre. A família, sim. O que se pode fazer? Muito pouco, além de cuidar para que ele esteja bem alimentado, bem abrigado, medicado e tratado com carinho. Nada de criticar quando não sabe mais quem somos, porque no fim não sabe mais quem ele próprio é. Quando já não se porta à mesa como antes, quando faz “artes” às vezes perigosas, ele precisa ser protegido, não mais ensinado. Não vai mesmo aprender. 

Como sempre nas doenças graves, devemos lembrar que a vítima não somos nós: é o outro. Nesse processo, que em geral dura muitos anos, não há nada de bom, de belo, de encantador, a não ser o exercício da ternura, da paciência e dos cuidados, sem esperar muito retorno, pois em breve seremos chamados de senhor, senhora, moça, não mais de filha, filho, meu querido. O ser amado se distancia, sem volta, sem saber, sem querer e sem que nada possa evitar: agora havia ali uma velhinha da qual eu cuidava como podia. Por fim, para a proteger de si própria, por insistência dos médicos ela foi posta na melhor clínica que pude assumir. Jamais esquecerei a dor e a culpa que me assaltaram, contrariando qualquer raciocínio. Milhares de vezes tentei me convencer de que minha mãe nem existia mais, era apenas uma velhinha de quem eu tinha de cuidar. Como ficção, funcionava; como realidade, a cada uma das centenas de visitas meu coração se partia outra vez.

Cuide de sua doente, eu disse a meu amigo, da melhor forma. Não alimente nenhuma esperança vã, pois tudo é triste, infinitamente desalentador. Uma coisa que ajuda, um pouco, é tentar entrar no universo do doente, em lugar de querer que ele retorne ao nosso. Mas cuide também de si mesmo. Tente pegar-se no colo, proteja-se da culpa insensata que nos espreita, siga sua vida. Na natureza morrem árvores jovens, e velhas árvores tortas vivem muito além da última floração. Estamos mergulhados no mistério: isso torna a vida possível mesmo quando não a entendemos.


#dia do ginecologista


sejam agradecidos a Deus em todas as ocasiões. Isso é o que Deus quer de vocês por estarem unidos com Cristo Jesus.

1 Tessalonicenses 5:18 / NTLH

domingo, 28 de outubro de 2018




É um premiado filme sueco de 2015, chama-se Força Maior. Uma família (pai, mãe e um casal de crianças) tira seis dias de férias para esquiar nos Alpes. Na manhã do segundo dia, estão almoçando ao ar livre, no deck do hotel, cercados por outros hóspedes, quando, nas montanhas ao fundo, um filete de neve começa a escorrer. Não parece perigoso. Minutos depois, aquele deslizamento sem importância cresce em dimensão.

Avalanches controladas são comuns, mas aquela demonstra estar ligeiramente descontrolada. Até que, de forma súbita, a neve fica prestes a invadir o deck. Pânico. Algumas pessoas gritam e muitas correm, incluindo o pai da família, que dispara sozinho a fim de se abrigar, deixando para trás a mulher e os dois filhos.

Poderia ter sido um acidente com mortos e feridos, mas não: apenas uma névoa seca cobriu o ambiente e, assim que se dissipou, os que correram retornaram aos seus lugares, inclusive o pai. A família prossegue com o lanche, mas dali em diante nada mais será igual. Descobriu-se que aquele homem, ao se desesperar, segue impulsos egoístas e se desgoverna.

Neste domingo se encerra uma avalanche. Nas últimas semanas, fomos soterrados por textos, vídeos, áudios, fotos, fake news, ofensas e postagens absurdas que invadiram as redes. O que se deseja, depois da esquizofrenia toda, é que o que se configurava uma tragédia demonstre ser apenas uma névoa seca que não deixe mortos e feridos pelo caminho. Se o presidente eleito tiver um mínimo de responsabilidade, será diplomático a fim de reunir todos no mesmo deck de novo, e a vida seguirá com suas avalanches controladas, e não fatais.

Mas será que nossas relações pessoais sobreviverão sem sequelas? No filme, a atitude inesperada e covarde do pai transfigura os laços e, dali por diante, inaugura um distanciamento difícil de transpor. Será que nós, que passamos os últimos dias trocando farpas com amigos e familiares por causa de nossos antagonismos, conseguiremos restituir 100% o afeto que havia antes?

A não ser entre aqueles que construíram uma base de amor e respeito muito sólida, creio que essa eleição tão polarizada fragilizará alguns vínculos. Não estávamos apenas defendendo um candidato ou outro, e sim diferentes visões de mundo, e com isso desnudando raivas, angústias, preconceitos, medos, maledicências, liberalidades, perversidades. Como não se espantar com pessoas que, no convívio social, pareciam ser afins, mas que, diante de um confronto sem precedentes, revelaram uma faceta bastante incômoda?

Ninguém sairá perdendo se o novo presidente conseguir restabelecer o crescimento do país sem colocar em risco a integridade de seus habitantes, mas uma baixa já ocorreu: a da admiração por pessoas próximas que, equivocadamente, julgávamos imunes a certas pequenezas.



Quando os honestos governam, o povo se alegra; mas, quando os maus dominam, o povo reclama.

Provérbios 29:2 / NTLH

sábado, 27 de outubro de 2018


sexta-feira, 26 de outubro de 2018


queridos lobos





Aqui de fora, do lado que se pode ver, tem uma pessoa lutando como louca para dar conta de todos os seus papéis. Não podemos reclamar de nenhum deles. Todos são  papéis que escolhemos, que assumimos e que não abrimos mão. 
O papel de pais, de esposa ou de marido, o papel de filhos, de empresários, de profissionais, sejam estes bem sucedidos ou não, o papel de defender alguma causa social, de participar de uma instituição e ainda o papel de cidadão em um país com as deficiências do nosso. 
Enfim, ser a pessoa que somos dá um trabalho danado. Mas é um trabalho bom! Trabalho escolhido por livre e espontânea vontade, ainda que seja tão difícil equilibrar tudo. Todos conhecem a pessoa madura e forte na qual nos tornamos.

Mas dentro de cada um de nós, aqui deste lado que só eu e você conhecemos, ainda falta muito!
Dentro de cada um de nós, escondido e encolhido moram nossos medos, nossas pequenices, nossas falhas. Aquelas que ainda não conseguimos vencer. 
Nossos desejos proibidos, nossas intenções negras, aqueles pensamentos sórdidos trancados a sete chaves. 
É lá dentro, lá onde ninguém chega, que residem nossas verdadeiras máculas. E torcemos para que Deus seja tão ocupado que não tenha tempo de conhecê-las.

A maldade, a vaidade, o ciúme e a inveja; este lobo mal que alimentamos silenciosamente. 
Ah como é difícil conviver com essa verdade! Como é difícil aceitar que somos tão frágeis e que o caminho da verdadeira evolução é longo!

É certo que não somos só isso!  O que nos salva é que, na outra jaula de nossos corações, reside um lobo bom. Capaz de amar e de se compadecer. 
É ele que não nos deixa por em prática tudo que pensamos. 
É ele que, entre um dia e outro, acorda nossos sentidos e não nos deixa cometer um desatino. 
É ele que nos dá prudência, sabedoria, discernimento, razão e afeto na proporção certa. 
É ele que nos permite viver nossos papéis. 
É ele que nos silencia na hora da briga e nos dá voz na hora da defesa. 
É ele que nos mostra o caminho e nos traz de volta à nós mesmos.  
Aqui reside a nossa lucidez, a centelha de luz que carregamos. A verdadeira e silenciosa bondade. A que luta contra nossas vaidades e pequenices. 

E é ele, este pobre lobo bom que carregamos, quem devemos alimentar todos os dias.
Difícil mesmo é saber qual dos dois tem sido nosso guia.


O ser humano tem brigado mais que o normal, tem se ofendido mais e tem ferido o outro com mais facilidade. 
Nesses últimos dias, aqui na nossa “pátriaamadaidolatradasalvesalve”, temos assistido brigas homéricas em função da política. Temos visto lobos ferozes, esbravejando, rosnando e mordendo, na tentativa louca de provar que o outro está errado em suas escolhas. 
Vindos de todos os lados eles atacam e pervertem. 
Alimentados pelo ódio, pela descrença ou pelo cansaço, eles brigam como se estivessem num ringue, onde o vencedor tem que comer o outro vivo até que não lhe sobre absolutamente nada, tampouco dignidade.
Existe um lobo bom morrendo de sede e fome, alimente-o!

um só / Gabriel, o Pensador



Eu não sei se ele era antigo e tava congelado
Se era alguém que tinha morrido e foi ressuscitado
Ou se veio do futuro teletransportado
Se era um ser de outro planeta e tava disfarçado

Eu só sei que no começo ele nem foi notado
Carregando o seu sorriso e observando tudo
Muito medo e muita raiva por todos os lados
E ele calmo, protegido por um belo escudo

Caminhava devagar mas ia sempre em frente
E tratava sempre igual todo tipo de gente
Corajoso e consciente do poder do amor
Entendia da alegria e também da dor

Espalhava poesia até sem dizer nada
Num momento em que ninguém queria ouvir ninguém
Seu silêncio era sincero e nos lembrava que a verdade pode ser manipulada pro mal ou pro bem

Pouca gente dava ouvidos pro que ele dizia
Preferiam suas próprias frases feitas
Não queriam abrir os olhos nem abrir caminhos
Tão fechados nas esquerdas e direitas

As pessoas em geral nunca estão satisfeitas
Sempre querendo estar onde não estão
Se o João tem uma visão e o José não aceita
O José arranca os olhos do João

Pedro vê José sorrindo e quer vingança por João
Então fura os olhos de José com pregos
E assim, olho por olho e dente por dente
Ninguém mais pode sorrir e todos ficam cegos

Banalizam a violência e a coerência some
Já não sabem se são homens ou são ratos
Dominados por aquilo que consomem
Acreditam mais nas “fake news” do que nos próprios fatos

Uma luz brilhou por cima das nuvens
Tempestade era rotina mas o céu se abriu
Uma brecha fina era um raio intenso
Mas o clima estava tenso e quase ninguém viu

Quando alguém sorriu um sorriso raro
Que não era pra uma selfie nem para um comício
Quase todos já marchavam rumo ao precipício
Mas a voz era tão linda e todo mundo ouviu

Sussurrando palavras de união
Desarmando granadas no nosso peito
Uns olhando pros outros e essa visão
Nos mostrando que somos tão imperfeitos

Se o antídoto é feito do veneno
Nenhum grande é maior do que o pequeno
Se o passado é a semente do futuro
Nenhum claro é mais puro que o escuro

Se um sábio subiu em cima do muro
Foi pra olhar com mais calma pros dois lados
E entender que o curral tava cercado
E que o nosso caminho é um só

O povo heroico não tá só no hino
Talvez seja o nosso destino ser fortes
Lutar de verdade por dignidade
Por mais independência e menos mortes

Quem nos divide é pra nos dominar
E o mapa da mina pra quem nos domina é a gente que dá
Pra nos derrubar igual dominó da maneira mais fácil
Criando um espaço entre as peças
As peças que unidas seriam espessas
Mas eles nos querem batendo cabeças gritando palavras de ordem

Em cada um de nós, eu disse em cada um de nós, tem um gigante dormindo
E quem nos divide não quer que os gigantes acordem!



Então Jesus disse para os que creram nele:
— Se vocês continuarem a obedecer aos meus ensinamentos, serão, de fato, meus discípulos e conhecerão a verdade, e a verdade os libertará.

João 8:31-32 / NTLH

quinta-feira, 25 de outubro de 2018


Democracia é quando eu mando em você; ditadura é quando você manda em mim”.

seja gentil



De volta ao Brasil para votar, depois de muito necessárias férias, que há séculos não tirávamos, entrei num turbilhão que, de longe, mesmo com internet, não me parecia tão nocivo. Mas foi pior do que eu pensava: raiva, ódio, insultos, calúnias, intolerância absoluta, mentiras, dissolução de laços bem bonitos e dignos entre amigos e família – por causa da política. Dos políticos. De nós mesmos, que nos tornamos raivosos, intolerantes, capazes das mais loucas afirmações. Expressamos nessa batalha muito de nossas mágoas e frustrações.

Mas, inesperadamente, no Face, encontro uma imagem linda, comovente, quase irreal neste mundo que anda pra lá de besta: uma camiseta, um elefante (meu bicho preferido), com flores atrás de uma orelha, óculos coloridos, e a legenda (estou traduzindo): “Num mundo em que você pode ser qualquer coisa,seja gentil”. Ou, se quiserem, seja bondoso. Tolerante. Humano.

A violência desde sempre me assusta: não precisa ser a física, de um tapa, um empurrão, uma voz alterada, mas a emocional, da acusação injusta, da invencionice maligna, da desconsideração com humanidade, cortesia, e democracia – ah, a palavra tão usada, mal usada, abusada.

Os que a defendem são muitas vezes os mais intolerantes, arrogantes e ignorantes que não conhecem nem medem o peso das palavras (dizia meu pai, “o pior burro é o burro falante”): correto é só o que eu penso, bom é só o que eu faço, o resto é tudo bandido, fascista, maldoso, ignorante, explorador de pobres e desvalidos, pisa em cima da cultura, despreza a saúde etc, etc, etc. (Poderia ser uma linha inteira de etcs.)

Basta refletir um pouco, abrir olhos e orelhas, ver que estamos numa situação-limite. Este pobre país nunca esteve tão por baixo, com tantos miseráveis, doentes não atendidos, podridão em vez de saneamento (sem falar na podridão moral), desrespeito, precariedade em vez de infraestrutura, cultura muito esquisita, e a maioria sem saber o que pensar. Ou começando a pensar, o que é bom. Pois andam acontecendo mudanças no país, e há quem comece a respirar: será mesmo, será?

Então resolvi hoje falar dessa camiseta, desse elefantinho, dessa gentileza que deveria ser o habitual, e acho que não é. Na maioria das vezes, em família, amigos, trabalho, não acontece muito, e quando ocorre até nos admiramos: olha só, que cara educado, bondoso, camarada. A gente se sente bem com ele, e não é artificial, nem imposto. O beijo de bom-dia em casa, alguma indagação sobre como foi a noite, ou a festa, ou como poderá ser a prova na escola, o novo amigo, ou o ombro que ontem doía tanto. Pequenas, miúdas coisas que fazem a vida, uma vida boa, uma vida humana como deveria ser: pausas para respirar, para se olhar, para escutar... para reencontrar com prazer.

Claro que a vida não é esse mar de rosas e risos. Mas pode ser, muito mais vezes do que tem sido. Podemos tentar viver e conviver, e votar, e torcer, e trabalhar, estudar, viajar, comer, dormir, sem o incrível estresse da raiva, do xingamento, do insulto, e dos maus desejos e da desinformação fatal.

Viva o elefantinho que nos propõe: neste vasto mundo em que você pode fazer tantas coisas, seja bondoso, seja gentil. Be kind.

#dia do dentista
x.x.x

#dia da democracia



Há três coisas na vida que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida.



Quem ama o dinheiro nunca ficará satisfeito; quem tem a ambição de ficar rico nunca terá tudo o que quer. 
Isso também é ilusão.

Eclesiastes 5:10 / NTLH

domingo, 21 de outubro de 2018



Era criança e ficava extasiada ao ver um termômetro quebrar. De dentro, saíam várias bolhinhas de mercúrio. Eu mesma vivia numa bolha, mas não sabia. Achava que o planeta se resumia à minha família, ao colégio e ao clube, onde eu encontrava “todo mundo”. Todos iguais, brancos, de classe média alta, que reproduziam piadinhas racistas e chamavam de bicha os garotos que não jogavam bola. Não éramos pessoas ruins, apenas alienados.

Mas tive sorte. Meus pais me proporcionaram muita leitura, música, teatro. Dessa forma, o “todo mundo” se expandia. Caetano, Millôr, Fernanda Montenegro e Marina Colassanti, só pra citar alguns, viviam no meu quarto. Cultura não era apenas entretenimento e, sim, uma ponte para um universo muito mais amplo.

A arte impulsionou meu crescimento, mas eu continuava habitando um microcosmo. Até que comecei a trabalhar, a namorar. E aconteceu: conheci pessoas de fora da minha bolha. Gente que foi criada de outro modo, que tinha outra história de vida, que passava por dificuldades que nunca passei. É normal fazer turismo por territórios “estrangeiros”, mas é raro incorporá-los ao nosso. Seguem eles lá, nós aqui. Cada um na sua bolha.

Já fui a favor do porte de arma. Já fui contra as cotas nas universidades. Eu estava errada. Eu mudei de ideia. E isso só foi possível porque saí da minha bolha para escutar, enxergar, compreender. Não haveria crescimento progressivo se eu me contentasse em dizer oi para quem era diferente de mim e logo voltasse correndo para baixo da minha cama. Então, cheguei mais perto de tudo que não era eu, e passei a levar outras realidades em conta.

Uma das maneiras de se fazer isso é por meio da política. Já votei certo. Já votei errado. Mesmo sabendo que a nossa política, como um todo, é canalha, cafona e arrogante, ela ainda é uma forma para avançarmos. Se a gente não avança, a gente morre dentro da bolha. Vive aquela vidinha: família, colégio, clube. Tudo bem seguro, como se não houvesse ninguém lá fora, ninguém que importasse.

Nunca fui militante ou ativista. Nunca tive partido, nunca fui fiel a um candidato. Mas já não me acomodo. Trouxe da minha bolha os princípios éticos e deixei pra trás os preconceitos e tudo o que me abreviava como ser humano, tudo o que parecia que me protegia, mas que apenas me tornava uma criatura indiferente. E o processo não terminou, ainda tenho muito a evoluir.

Diante do atual aquecimento de ânimos, lembrei do termômetro quebrado, das gotas de mercúrio no chão e de como elas se fundiam numa só, atraídas umas para as outras numa reação química que me parecia fascinante. Em meio a essa perigosa onda retrô em que nos metemos, nunca me pareceu tão urgente que o “todo mundo” de um dialogue com o “todo mundo” do outro. E apostar em quem respeita o poder transformador da educação, da arte e da diversidade, contribuindo assim para unir todas as bolhas.




— Será que eu não posso fazer com o povo de Israel o mesmo que o oleiro faz com o barro? 
Vocês estão nas minhas mãos assim como o barro está nas mãos do oleiro. 
Sou eu, o Senhor, quem está falando.

Jeremias 18:6 / NTLH

sábado, 20 de outubro de 2018

o direito ao “foda-se!”


O nível de stress de uma pessoa é inversamente proporcional à quantidade de “foda-se!” que ela fala.

Existe algo mais libertário do que o conceito do “foda-se”?

O “foda-se” aumenta minha autoestima, me torna uma pessoa melhor. Reorganiza as coisas. Me liberta.

“Não quer sair comigo? Não? Então foda-se!”

“Vai decidir essa merda sozinho(a) mesmo? Então foda-se!”

O direito ao foda-se deveria estar assegurado na Constituição Federal.

Os palavrões não nasceram por acaso. São recursos extremamente válidos e criativos para prover nosso vocabulário de expressões que traduzem com a maior fidelidade nossos mais fortes e genuínos sentimentos.

É o povo fazendo sua língua.

Como o Latim Vulgar, será esse Português Vulgar que vingará plenamente um dia.

“'Pra caralho”, por exemplo. Qual expressão traduz a ideia de muita quantidade do que “pra caralho”?

“Pra caralho” tende ao infinito, é quase uma expressão matemática.

A Via-Láctea tem estrelas pra caralho, o Sol é quente pra caralho, o Universo é antigo pra caralho, eu gosto de cerveja pra caralho, entende?

No gênero do “pra caralho”, mas no caso, expressando a mais absoluta negação, está o famoso nem fodendo!

O “Não, não e não!” é tampouco nada eficaz e já sem nenhuma credibilidade. “Não, absolutamente não!” o substituem.

O “nem fodendo!” é irretorquível, e liquida o assunto. Te libera, com a consciência tranquila, para outras atividades de maior interesse em sua vida.

Aquele filho pentelho de 17 anos te atormenta pedindo o carro pra ir surfar no litoral? Não perca tempo nem paciência. Solte logo um definitivo “Danielzinho, presta atenção, filho querido... nem fodendo!”. O impertinente se manca na hora e vai pro Shopping se encontrar com a turma e você fecha os olhos e volta a curtir o CD do Lupicínio.

Por sua vez, o “porra nenhuma!” atendeu tão plenamente as situações onde nosso ego exigia não só a definição de uma negação, mas também o justo escárnio contra descarados blefes, que hoje é totalmente impossível imaginar que possamos viver sem ele em nosso cotidiano profissional.

Como comentar a bravata daquele chefe idiota senão com um “é PHD porra nenhuma!” ou “ele redigiu aquele relatório sozinho porra nenhuma!”

O “porra nenhuma”, como vocês podem ver, nos provê sensações de incrível bem-estar interior. É como se estivéssemos fazendo a tardia e justa denúncia pública de um canalha.

São dessa mesma gênese os clássicos “aspone”, “chepone” e mais recentemente o “prepone” - presidente de porra nenhuma.

Há outros palavrões igualmente clássicos.

Pense na sonoridade de um “puta que pariu”, ou seu correlato “pu-ta-que-o-pa-riu!!!” falados assim, cadenciadamente, sílaba por sílaba.

Diante de uma notícia irritante qualquer um “puta-que-o-pariu!” dito assim te coloca outra vez em seu eixo. Seus neurônios tem o devido tempo e clima para se reorganizar e sacar a atitude que lhe permitirá dar um merecido troco ou o safar de maiores dores de cabeça.

E o que dizer de nosso famoso “vai tomar no cu!” e sua maravilhosa e reforçadora derivação “vai tomar no olho do se cu!”?

Você já imaginou o bem que alguém faz a si próprio e aos seus quando, passado o limite do suportável, se dirige ao canalha de seu interlocutor e solta: “Chega! vai tomar no olho do seu cu!”. Pronto, você retomou as rédeas de sua vida, sua autoestima. Desabotoe a camisa e saia na rua, vento batendo na face, olhar firme, cabeça erguida, um delicioso sorriso de vitória e renovado amor íntimo nos lábios.

E seria tremendamente injusto não registrar aqui a expressão de maior poder de definição do Português Vulgar: “fodeu!”. E sua derivação mais avassaladora ainda: “fodeu de vez!”.

Você conhece definição mais exata, pungente e arrasadora para uma situação que atingiu o grau máximo imaginável de complicação? Expressão, inclusive, que uma vez proferida insere seu autor em todo um providencial contexto interior de alerta e autodefesa. Algo assim como quando você está dirigindo bêbado, sem documentos do carro e sem carteira de habilitação e ouve uma sirene de polícia atrás de você mandando você parar: O que você fala? “Fodeu de vez!”.

Liberdade, igualdade, fraternidade e foda-se!