Almocei com um amigo
semanas atrás e, quando perguntei a razão de seu abatimento, ele me disse sem
rodeios: “Esta manhã recebi o diagnóstico de minha mãe: é Alzheimer”. Imaginei
essa senhora, alegre e vital, enveredando pelas sombrias trilhas de uma
enfermidade diabólica, e entendi a tristeza de meu amigo como se fosse minha.
Minha própria mãe morreu aos 90 anos, depois de bem mais de uma década sendo
paulatinamente envolvida na mortalha mental e emocional do Alzheimer. Uma bela
mulher ativa tornou-se inexoravelmente uma estranha, raramente ostentando uma
vaga semelhança com a que fora minha mãe.
A doença se manifesta em
geral muito sutil: um esquecimento aqui, uma confusão ali. Uma atitude estranha
aqui, outra ali, intercaladas por fases de aparente normalidade. A
sociabilidade muda, os bons modos parecem esquecidos, o controle do dinheiro se
torna caótico, e é dificílimo interferir. Há enorme resistência dos familiares
em aceitar essa enfermidade. Para mim, minha mãe sofria episódios naturais de
esquecimento. Só o choque de um dia a encontrar com uma pintura bizarra no
rosto, ela tão recatada, me fez cair na duríssima realidade. Ela já não sabia –
ou em longos períodos não sabia – o que estava fazendo. Algumas pessoas mais
chegadas tinham me avisado: eu havia me recusado a ver.
O que eu disse a meu
amigo, disse a mim mesma nos muitos longuíssimos anos daquela jornada: o doente
em geral não sofre. A família, sim. O que se pode fazer? Muito pouco, além de
cuidar para que ele esteja bem alimentado, bem abrigado, medicado e tratado com
carinho. Nada de criticar quando não sabe mais quem somos, porque no fim não
sabe mais quem ele próprio é. Quando já não se porta à mesa como antes, quando
faz “artes” às vezes perigosas, ele precisa ser protegido, não mais ensinado.
Não vai mesmo aprender.
Como sempre nas doenças graves, devemos lembrar que a vítima não somos nós: é o outro. Nesse processo, que em geral dura muitos anos, não há nada de bom, de belo, de encantador, a não ser o exercício da ternura, da paciência e dos cuidados, sem esperar muito retorno, pois em breve seremos chamados de senhor, senhora, moça, não mais de filha, filho, meu querido. O ser amado se distancia, sem volta, sem saber, sem querer e sem que nada possa evitar: agora havia ali uma velhinha da qual eu cuidava como podia. Por fim, para a proteger de si própria, por insistência dos médicos ela foi posta na melhor clínica que pude assumir. Jamais esquecerei a dor e a culpa que me assaltaram, contrariando qualquer raciocínio. Milhares de vezes tentei me convencer de que minha mãe nem existia mais, era apenas uma velhinha de quem eu tinha de cuidar. Como ficção, funcionava; como realidade, a cada uma das centenas de visitas meu coração se partia outra vez.
Como sempre nas doenças graves, devemos lembrar que a vítima não somos nós: é o outro. Nesse processo, que em geral dura muitos anos, não há nada de bom, de belo, de encantador, a não ser o exercício da ternura, da paciência e dos cuidados, sem esperar muito retorno, pois em breve seremos chamados de senhor, senhora, moça, não mais de filha, filho, meu querido. O ser amado se distancia, sem volta, sem saber, sem querer e sem que nada possa evitar: agora havia ali uma velhinha da qual eu cuidava como podia. Por fim, para a proteger de si própria, por insistência dos médicos ela foi posta na melhor clínica que pude assumir. Jamais esquecerei a dor e a culpa que me assaltaram, contrariando qualquer raciocínio. Milhares de vezes tentei me convencer de que minha mãe nem existia mais, era apenas uma velhinha de quem eu tinha de cuidar. Como ficção, funcionava; como realidade, a cada uma das centenas de visitas meu coração se partia outra vez.
Cuide de sua doente, eu
disse a meu amigo, da melhor forma. Não alimente nenhuma esperança vã, pois
tudo é triste, infinitamente desalentador. Uma coisa que ajuda, um pouco, é
tentar entrar no universo do doente, em lugar de querer que ele retorne ao
nosso. Mas cuide também de si mesmo. Tente pegar-se no colo, proteja-se da
culpa insensata que nos espreita, siga sua vida. Na natureza morrem árvores
jovens, e velhas árvores tortas vivem muito além da última floração. Estamos
mergulhados no mistério: isso torna a vida possível mesmo quando não a
entendemos.