domingo, 28 de novembro de 2021
os bichos
O termo não é um ataque.
Não serve como insulto. Ouvi a expressão de alguém ao descrever um parente:
Naquela casa, eles são bichos. O que significa?
Para o bem e para o mal,
os animais respondem a impulsos básicos: fome, sede, sexo, sobrevivência. A
vida de um leão não passa por crises existenciais, planos de longo prazo,
crenças ou coisas similares. Por mais que exista a música Hakuna Matata (se você
não sabe, não fique uma fera, apenas procure), os leões não pensam se a vida é
isto que temos pela frente. Ser bicho é ser aqui e agora, respondendo a
impulsos básicos.
Haveria pessoas-bicho?
Meu amigo garantia que sim. Não são de uma classe social definida ou tipo
físico. São seres humanos como todos os outros, apenas, destituídos de
metafísica. Quando entram no cio, atacam o que estiver disponível. Na fome,
desaparece o impulso gourmet ou a estética alimentar. Dormem quando querem.
Urinam e defecam onde for possível. Irritados, atacam. Defendem a ninhada
conhecida como filhos. Respondem ao chamado da vida em linha reta, para o bem e
para o mal. Em um mundo de gente dissimulada, passam por “sincerões”. Dizem o
que passa pela cabeça, na hora em que ocorre, sem filtro ou cuidados Chutam o
balde sem medir o peso dele em ação sobre o próprio pé ou onde o referido
recipiente possa vir a cair. Como um gato, saltam no colo da visita e cochilam.
Como um cachorro, latem para estranhos por serem estranhos. Como ursos,
hibernam enquanto o frio mandar. Na chuva, não saem de casa. Não possuem
horários ou princípios. Chegam aos compromissos quando bem entendem e deles
saem no momento em que o cansaço aparece. Nada negociam. Conhecem a fome e o
frio, nunca o vazio existencial ou o propósito de vida. Ouviram falar de
pessoas que apresentam dificuldade em fazer o “número dois” fora de casa.
Estranham o pudor. Vazam por qualquer orifício em qualquer lugar. Basta surgir
a consciência de superpopulação na bexiga ou no intestino. Eructam e flatam com
a mesma tranquilidade com que dizem oi. Vieram ao mundo sem culpa, só corpo,
sem alma, só instinto. Seduzem pela liberdade e incomodam pela mesma
característica.
Os “bichos” são
arrastados para cinemas ou teatros. Instalados, dormem bem. Seria justo falar
em hibernação. Alguns roncam. Quando um desses animais se acasala com um ser
humano e contrai núpcias, ouve reclamações fortes na saída. Ignora, pois é hora
de comer e de ir ao banheiro, se houver um. Caso contrário, “vai em qualquer lugar
mesmo”.
Não são irritantes pelas
más intenções. Apenas desconhecem que nos separamos em algum ponto de nossos
irmãos primatas na escala evolutiva. Outra metáfora infeliz. Chipanzés são
elegantes e com olhar terno. Nossas criaturas antropomorfas estão mais para
bovinos. Comer, mastigar, urinar e defecar sem a elegância melancólica dos
primos-irmãos de toda a espécie humana.
Não gostam de ler. Veem
programas, porém, não acompanham o que se passa lá. Observam como um gato
parado em frente a uma tela de computador, saindo sem cerimônia do que se passa
lá para ir até a caixinha de areia sanitária na área de serviço.
Todas as famílias possuem
alguns exemplares de animais no meio do mesmo sobrenome. Incomodam pouco, nada
ajudam, causam alguma graça e críticas sobre modos ou tom direto. Conhece
aquele tio que se levanta da ceia de Natal para ir ao banheiro e depois se
atira no sofá ligando a televisão? É sua cota familiar, cármica, de... bicho.
Para não sobrecarregar demais um endereço, a natureza não coloca todos juntos,
mas espalha pelas casas. Não existe, pois, uma família formada só de bichos.
Claro, a parentela da sua esposa ou de seu marido tem uma quantidade expressiva
de animais, não obstante, mesmo lá, surgem seres humanos aqui e ali.
Em manada, eles uivam,
crocitam, balem, grasnam, zurram, mugem, relincham, bufam e rugem. Não é
necessário tentar decifrar, não existe mensagem. São sons variados, expressões
de ar passando pela garganta, nunca frases completas ou ideias relevantes.
A favor? Nunca mandam mensagens
de bom dia nos grupos de WhatsApp. Da mesma forma que não entopem celulares
alheios, nunca visitam pessoas em hospitais ou levam abraço solidário a
enterros. São lugares ruins e eles dizem que não gostam. Vivem de acordo com
sua vontade imediata, como se não houvesse amanhã. Alguém já viu um javali
olhando como quem diz: “E o próximo semestre, como será?”.
Não são de todo maus,
sequer são bons. Apenas, são... bichos. Vivem o aqui e agora sem grande
solidariedade, sem cinismos ou maquiavelismos familiares. Não atrapalham demais
e nunca ajudam. Como um gato irritado em dia de limpeza pesada, saem do sofá
para evitar o aspirador e saem do quarto quando o lençol é trocado. Podem até
arranhar, porém, se você alimentar e não incomodar muito, vivem bastante se a
ração for interessante. Nada cobram além do material. Nunca elogiam. Nunca
apoiam, jamais percebem.
Algumas espécies vivem
mais do que outras. Quase todas acasalam. Após uma existência plana, morrem
como todos os humanos e todos os bichos. No velório, surgem amigos e
familiares. Alguns, caridosos, contemplam o caixão e dizem: “Tão novo, tinha a
força de um animal”. Não é só a força, há ternura nessa oração fúnebre. Minha
querida leitora e estimado leitor: existe algum egresso do zoológico da minha
crônica que coabita na sua família? É preciso ter esperança, na humanidade e na
fauna.
quarta-feira, 24 de novembro de 2021
para sempre
O Alzheimer é uma perda em vida.
Se vive um luto a cada dia.
“Porque, quanto ao Senhor, seus olhos passam por toda a terra, para mostrar-se forte para com aqueles cujo coração é totalmente dele.”
2 Crônicas 16:9
Eu tinha
dúvidas a respeito da fé, mas aprendi que muitas vezes não se trata de dúvida,
mas de confiar 100% no Senhor. Isso mesmo, confiar.
Quando pedimos algo em
oração, se ficamos confiantes demais é aí que devemos desconfiar. Temos que
depender do Senhor em tudo! E, neste caso, não quer dizer que não temos fé, mas
dependência.
Qual criança que não
sente insegura quando sobe pela primeira vez em uma bicicleta? Mas ela sabe em
quem confia. E com o papai segurando na garupa ela perde o medo, se aventura e
vai. Ela depende 100% do pai.
Assim somos nós.
Quem presta vestibular
100% seguro? Se assim o faz está confiando mais no que estudou, o frio na
barriga, a ânsia para ver o gabarito, não é dúvida, mas dependência.
Ao pedir aquela garota em
compromisso, o frio na barriga faz o jovem a todo instante fazer pequenas
preces: “Senhor, que ela diga sim.” Isso é dependência.
Em quem tens crido?
Nos estudos, na farda,
nas possibilidades (Deus age no impossível), nas cartas de amor, nos presentes,
no sorriso, nos treinos...?
Enfim, somos pó e
dependentes do oleiro.
Deus quer continuar
segurando a bicicleta, mesmo sabendo que você sabe andar.
Que as mãos dEle estejam
sempre estendidas.
segunda-feira, 15 de novembro de 2021
sua estupidez, Brasil
Meu bem, meu bem, você
tem que acreditar em mim... Estou apelando para Roberto Carlos, quem sabe ele
me ajuda a dar uma cantada nessa pátria borocoxô. A pandemia nos entortou.
Ninguém imaginaria que um ciclone viral se atravessaria na nossa história, nos
atingindo a caminho do altar, da formatura, do aeroporto. De repente, tudo
mudou. Adeus, liberdade para sair de casa a qualquer hora, abraçar
desconhecidos, dividir o mesmo balcão do bar. Logo nós, célebres pela
camaradagem e irreverência, viramos ursos hibernando no inverno e no verão,
grudados 24 horas nas redes sociais. Teve que ser assim, mas agora, vacinados e
retomando aos poucos a vida que a gente tinha, começamos a olhar para os lados
e a contabilizar o estrago, como sobreviventes que saem lentamente de um
bunker. Todo mundo perdeu alguém ou alguma coisa, quem é que venceu? A
estupidez.
Ninguém pode destruir
assim um grande amor... Mas aconteceu. Mesmo sendo uma nação fragmentada pela
desigualdade social, o bom trato nos unia: ser afável não era a exceção, e sim
a regra. Havia oposições, discordâncias, mas a bandeira do país era de todos.
Torcidas brigavam, às vezes a flauta passava do ponto, mas não havia esse
climão, essa brutalidade que não é espontânea, e sim estimulada.
Não dê ouvidos à maldade
alheia, e creia... A despeito de tantos problemas, o alto-astral era nosso
cartão de visitas, lembra? Chegava a ser difícil explicar como havia tanta
gente risonha em meio a tanta carência, mas era fato: o ar não pesava. Mesmo na
corda bamba, matando um leão por dia, todo brasileiro tinha no DNA o gene da
bossa. Terra de gente divertida, de explosão de ritmos, de erotismo sem culpa.
Sempre fui muito crítica ao país, mas nunca desdenhei da nossa alegria, da
nossa extraordinária natureza e da nossa arte, três grandes motivos de orgulho.
E que agora estão aí, desbotados, minguando.
Quantas vezes eu tentei
falar, que no mundo não há mais lugar, pra quem toma decisões na vida, sem
pensar... Minha voz é apenas mais uma entre diversos brasileiros que estão
todos os dias escrevendo, debatendo, postando notícias com fonte segura,
refletindo com seriedade sobre o país, trazendo à tona nossa história e
ancestralidade, valorizando mais do que nunca o conhecimento, as pesquisas
científicas e as crenças espirituais voltadas para o acolhimento sem exclusão.
O material da casa é farto e está à disposição de quem deseja se aprofundar,
enquanto o mundo, lá fora, observa espantado esse Brasil que em tão pouco tempo
trocou o violão pelo fuzil, a simpatia pelo desaforo.
Sua estupidez não lhe
deixa ver... que ainda te amamos, Brasil, ou não estaríamos insistindo tanto
para você acordar desse pesadelo e voltar à sua luminosidade original.
quarta-feira, 10 de novembro de 2021
Não sei como tudo se
resolverá, mas descobri que as soluções muitas vezes florescem em silêncio,
enquanto nos afligimos com a presença da incerteza.
Não sei como tudo se
resolverá, mas aprendi que respostas incríveis nascem também das noites mais
compridas.
Não sei como tudo se
resolverá, mas entendi que demorar a vida na tristeza não aduba nenhum caminho.
Não sei como tudo se
resolverá, mas por nada desse mundo eu largo a mão da minha fé.
Não sei como tudo se
resolverá. Ainda.
“E se nós tivéssemos
aprendido desde cedo que é bonito envelhecer? Os sinais de alegria, sabedoria
e experiência, que devem ser celebrados e não motivo de vergonha?
.
Nós aprendemos a odiar o
nosso corpo envelhecido. As linhas e as manchas que marcam o nosso rosto nos
lembram constantemente a nossa idade - e também a grande mentira que nos
contam ao longo da vida que a beleza só está na juventude.
.
Mesmo que, ao olharmos
para as nossas fotos antigas, muitas vezes não gostamos do que vemos, ainda
assim queremos coisas que agora não podemos mais ter.
.
O movimento “pro” deve começar com a gente. Se detestarmos nossos corpos e rostos amadurecidos, nos tornamos parte da ideologia que suporta o ageismo.
.
Eu sou grato pela minha
avó e todas as suas rugas, que para mim foi a mulher mais bonita que já
existiu. Suas linhas me contaram muitas histórias e me confortavam enquanto
ela sorria.
.
Precisamos ensinar os mais
jovens que envelhecer tem a sua beleza. Se tivermos sorte o suficiente de
envelhecer, temos que orgulhosamente desfilar nossas rugas e linhas com muita
honra.
.
Que jornada!
Ari Seth Cohen
domingo, 7 de novembro de 2021
Todos se confessaram fãs,
mesmo quem a descobriu ontem.
Políticos tentaram
capitalizar a morte.
Alguém teve o mau gosto
machista de falar da forma física dela em um momento de luto.
Sempre imaginei que a
morte tenha urubus como efeito colateral.
Um avião cai e cinco
vidas terminam: Henrique Ribeiro, Abicieli Silveira, Geraldo Martins, Tarciso
Viana e Marília Mendonça.
Biografias ceifadas no
apogeu, lares em luto e uma ferida de ausência que vai se prolongar nos filhos.
Falei com Marília uma
única vez: carismática, mulher forte e um pouco cansada da rotina intensa.
A sofrência, agora, é
nossa.
Passei o dia pensando não
na falta que eu faria, todavia na falta que a vida me faria.
A minha ausência pode ou
não provocar dor, quero refletir sobre minha presença agora.
Marília se foi no auge da
existência e da carreira.
Nós ficamos para
continuar a luta de significado.
Morrer é inevitável;
viver bem é uma arte diária.
terça-feira, 2 de novembro de 2021
morra bem
Um dos meus textos mais conhecidos
chama-se A morte devagar, que publiquei na véspera de Finados de 2000 e que
logo ganhou o mundo com o título Morre Lentamente. No início foi
equivocadamente atribuído a Pablo Neruda, por isso o espalhamento e seu
sucesso. Passado tanto tempo, já me devolveram a autoria e hoje esse texto
virou canção na França e entrou no roteiro de um filme italiano – sem falar nas
traduções para o espanhol, que alguns desconfiados ainda acreditam ser seu
idioma de origem.
Na época, aproveitando a proximidade
do Dia dos Mortos, escrevi puxando as orelhas (não os pés) daqueles que morrem
em vida: os que evitam o risco, a arte, a paixão, o mistério, as viagens, as
perguntas - apenas atravessam os dias respirando.
Neste dia de Finados, muitos anos
depois, reitero: não morra lentamente. Morra rápido, de uma vez só, sem
delongas. Morra quantas vezes for necessário.
Quando fiz meu mapa astral, ouvi da
astróloga: “Você tem dificuldade de lidar com ambivalências, gosta das coisas
esclarecidas, para o bem ou para o mal”. E ela concluiu: “Morrer é algo que
você faz bem, ficar em banho-maria, não”.
Sombrio? Soturno? Ao contrário.
Entendi com clareza sobre o que ela falava. Morte é a antessala da luz. Não a
morte definitiva, que encerra o assunto, mas as diversas mortes em vida, os
vários falecimentos a que somos submetidos. É preciso morrer bem enquanto se
vive.
Cada final de amor é uma pequena
morte, por exemplo. Morre lentamente quem fica alimentando fantasias de
retorno, planejando vinganças, cultivando lembranças com naftalina. Sei que
dói, mas não deixe esse amor definhando na UTI, dê logo a extrema-unção, acabe
com isso, morra rápido, morra de vez, para que possa renascer ligeiro também.
Finais de carreira, finais de
amizade, finais de ciclo: mortes que acontecem aos 30, aos 40 anos, em qualquer
idade. Dói, dói demais, não estou negando a dor, mas o que você prefere? As
dúvidas, as ilusões, o apego? Prefere a sobrevida a uma vida nova? Confie na
experiência de quem já se enterrou algumas vezes. Morra. Morra bem morrido,
baby.
Final de juventude, final da
faculdade, final de uma viagem de intercâmbio: vai ficar agindo como se tivesse
18 anos para sempre? Mate o garoto, renasça adulto.
A morte daqueles que amamos é
trágica, mas nossa própria morte, não. Ela é uma contingência de nossa longa
existência, e essa não é uma frase cínica, simplesmente é assim. Nossos sonhos
morrem. Nosso passado morre. Nossas crenças, nossas fases. Fazer o quê? Morra
bem. Morra com categoria. Com dignidade. O menos lentamente possível. Morra de
morte bem arrematada, uma, duas, três mil vezes, morra em definitivo sempre que
for exigido, para sobrar tempo pra vida em frente.
Às vezes,
Somos o nó preso na
garganta, alguma falta de fé, somos uma vaga lembrança daquilo que a gente
quer. Somos a voz embargada contida no choro. Somos o olhar assustado e a
vontade do grito.
Mas também,
Somos uma luz que brilha
e transmuta a agonia. Somos o instinto de vida que guia nossos passos. Somos a
cura contida num abraço. Somos a busca diária pela felicidade. Somos nossos
sonhos crescentes, justos e realizáveis.
Somos o vazio que amplia
o horizonte de possibilidades. Somos o mistério, dádiva divina e nenhuma
certeza. Somos a base que construímos e os alicerces que nos sustentam. Somos a
lembrança acesa de que tudo é transitório, mudança.
Somos a força que impera
quando resgatamos a confiança.