"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



quinta-feira, 30 de abril de 2020

e findou abril...



Um abril que não abriu!

Um abril que tudo fechou… portas comércios, estradas, fronteiras, economia, esporte.

Um abril que a natureza se abriu aliviada.

Um abril que se diferenciou.

Um abril que estremecemos e, em seguida, decepcionamos com ídolos criados.

Um abril que abriu as portas da ganância pelo poder em detrimento da necessidade do povo.
Onde a imoralidade política se escancarou.
Um abril que lives se abriram para o show ser em sua casa.

Um abril que a igreja não abriu, mas incontáveis igrejas se abriram em casa, que se tornaram verdadeiramente um lar.

Um abril que a escola não abriu e os pais puderam conhecer seus filhos e os filhos resgataram os pais.

Um abril que os mais velhos se fecharam em casa, mas tiveram oportunidade de contar histórias pelo celular.

Um abril que, se pensarmos, abriu as portas… escancarou escandalosamente as portas do coração, da solidariedade da caridade da paciência, da resiliência, da oração e da Fé!

Um abril que abriu nossa alma e a coloriu de uma única certeza: a certeza da incerteza que tudo passa, menos o que verdadeiramente somos.
Que nossa essência é… ser humano.

Então, caminhemos…
Que abram-se as portas de maio!

quarta-feira, 29 de abril de 2020




Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não para

Enquanto o tempo acelera e pede pressa
Eu me recuso faço hora vou na valsa
A vida tão rara

Enquanto todo mundo espera a cura do mal
E a loucura finge que isso tudo é normal
Eu finjo ter paciência

O mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo e o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência

Será que é tempo que lhe falta pra perceber
Será que temos esse tempo pra perder
E quem quer saber
A vida é tão rara

Paciência - Lenine

você não pode ter sempre o que quer



A quarentena surpreendeu a todos. Havíamos recém entrado em março, quando 2020 começaria pra valer, mas em vez de dar início ao cumprimento das resoluções de fim de ano, fomos condenados à prisão domiciliar, mesmo não tendo cometido crime algum. Paciência: ser livre se tornou um delito. Parece injusto, mas chegou a hora de entender que não podemos ter sempre o que queremos.

Gostaríamos muito de rever os amigos e parentes, fazer a viagem planejada, torcer pelo nosso time, ir ao pilates, ao cabeleireiro, tomar uma caipirinha com o crush, comparecer a formaturas e casamentos. Gostaríamos de ver as lojas abertas, o comércio aquecido, os índices da bolsa subindo, o dólar baixando.

Gostaríamos de acreditar que todos os líderes do mundo estão errados e só o nosso presidente está certo. Gostaríamos de ter alguém lúcido e responsável no comando do país. Mas, infelizmente, You Can´t Always Get What You Want. Não por acaso, foi essa a música escolhida pelos Rolling Stones em sua participação no comovente One World/Together at Home, evento transmitido ao vivo em 18 de abril, em que diversos artistas, personalidades e profissionais da saúde uniram-se online, cada um em sua casa, para lembrar que somos todos absolutamente iguais diante de uma ameaça, e que o distanciamento social é a saída, mesmo que não seja o que a gente quer.

Seu desejo é uma ordem? Não mesmo. Frase cancelada, como canceladas foram as peças de teatro, os jogos de futebol, as liquidações, o happy hour depois do expediente - e o próprio expediente. Aposentadoria antes da hora, por tempo indefinido. Qual será o legado, o que aprenderemos desta experiência?

Que consumir por consumir é uma doença também. Que o céu está mais azul, a vegetação mais verde e o ar mais puro: não somos tão imprescindíveis, a natureza agradece nossa reclusão. Que há muitas maneiras de se comemorar um aniversário, mesmo sozinho em casa: vizinhos cantam em janelas próximas, amigos deixam flores na portaria do prédio, organiza-se uma reunião por aplicativo. Emoção genuína, festa inimitável. E pensar que há quem gaste uma fortuna com decoração de ambiente, DJ da moda e champanhe francês para 500 convidados, e ainda assim não consegue se sentir amado.

Já tivemos, poucos anos atrás, uma greve de caminhoneiros que serviu de ensaio do apocalipse. Pois já não é mais ensaio, é apocalipse now. Não desperdicemos a chance de amadurecer, simplificar, mudar de atitude. De valorizar o coletivo em detrimento do individual. De praticar um novo método de convívio: uns pelos outros, sempre, e não só na hora do aperto. De fazer deste imenso país uma nação mais homogênea, em prol de uma existência menos metida a besta.


Eclesiastes 3:1
#diariocomdeus_

terça-feira, 28 de abril de 2020

a sogra do meu marido




Dizem que sogra implica com nora e mima demais o genro. Que sogra se mete na vida do casal, que faz intriga e que só falta colocar um colchão na sala e se instalar pra sempre. Que sogra fala demais. E se não fala, aí é que é mais perigosa. Que sogra parece que adivinha o horário mais inconveniente para telefonar. Isso foi o que eu ouvi falar, pois minha experiência no assunto é zero. Não tive sogra. A única sogra que eu conheço é a do meu marido.

A sogra do meu marido desmente todos os clichês acima relacionados. Ela é a pessoa mais discreta que eu conheço. Nunca deu palpite sobre a vida íntima do genro nem da mulher dele, a não ser nas vezes em que foi convidada a dar sua opinião. Dizem que sogra é abusada. Pois a do meu marido só abusa no tato e no respeito. Nunca apareceu sem avisar, nunca se escalou para finais de semana, nunca abriu panelas e xeretou o tempero. Ao mesmo tempo, não é visita: é gente da casa. Sempre soube ser bem-vinda.

A sogra do meu marido é alegre e vaidosa. Nunca foi vista de pijama, roupão, grampo no cabelo e outras alegorias que os chargistas adoram vestir nas sogras. Ela gosta de música, discute cinema, dá presentes bons e elogios rasgados. Sorri muito e torna qualquer ambiente agradável. Cara fechada não é com ela.

A sogra do meu marido cozinha para si mesma, é independente e não reclama da vida. Aceita caronas com relutância, pois gosta de dirigir seu próprio carro e ainda mais de andar a pé. E quando recebe em sua casa, é sempre uma festa. Prepara os pratos que o pessoal mais gosta, põe uma mesa de dar gosto, deixa todo mundo à vontade.

É uma mãe para todos, uma mulher para ela mesma e uma “sogra” para ninguém.
Além disso, a sogra do meu marido é a melhor avó que uma criança poderia sonhar. Conta histórias mais originais que as de Harry Potter, inventa brincadeiras engraçadas, está disponível para aventuras e é boa de abraçar.

Alguém já escreveu que todo homem detesta a própria sogra porque ela antecipa o que a sua mulher provavelmente se tornará. Se é mesmo verdade que as sogras são todas ranzinzas e intrometidas, então estes caras estão mesmo numa sinuca. Eu prefiro achar que as sogras de hoje são criativas, divertidas e amorosas, e sabem muito bem estar por perto sem sufocar ninguém, até porque elas têm mais o que fazer da vida. Isso se elas forem como a sogra do meu marido, em quem um dia pretendo me espelhar.

#dia da sogra
#a sogra da esposa do meu filho também é assim



Sarada!
É assim que você deve se sentir.
Com quilos a mais, com quilos a menos. Com a barriga trincada ou bem molinha.

Ser sarada é estar curada da pressão social que nós mulheres sofremos por estarmos em um padrão.
Você pode amar suas celulites ou combatê-las com injeções.
Malhar todos os dias da quarentena ou apenas se afundar no sofá... tudo bem!
Pode fazer o que quiser com seu corpo. Tomar um whey ou um milkshake de chocolate... ninguém tem nada a ver com isso.
Pode ser que um mês está na salada e no outro no cheeseburger. Às vezes está virada no Jiraya da malhação, às vezes te dá raiva só de passar em frente a uma academia e ver o povo lá dentro.

Ser sarada é saber amar o próprio corpo. É não se violentar, ser carinhosa com as palavras que usa quando se refere a ele. É entender que ele está a serviço da nossa existência aqui e não ao contrário. É não se comparar com ninguém. É ter saúde e isso inclui a mental.
Engorde, emagreça, afrouxe, endureça. Mude ou permaneça.
Enquanto tudo isso for algo leve, você estará sarada.

Rafa Brites

2 Corintios 4:17
#diariocomdeus_

segunda-feira, 27 de abril de 2020



Sim, hoje te permito mais uma vez...
Permito que me faça feliz.
Permito me amanheça iluminando meu dia com seu sorriso lindo.
Permito que esteja em meu pensamento a cada momento do meu dia.
Permito que seja minha última lembrança antes de dormir.
Enfim, permito que me permita te amar!

Neckyr, via status WhatsApp 

#nemar


se me permitem, quero me apresentar: 
“Muito prazer, eu sou o amor!”


... e o destino encontrou uma chance de juntar
“você, o amor e eu” 

#dia da permissividade



sem príncipe encantado


Acho que já se chegou à conclusão de que príncipe encantado não existe. Nem estamos mais numa monarquia para acreditar no suserano do amor.

A verdade começa a aparecer depois dos 30 anos, quando você cansa de testemunhar a mentira, a deslealdade e a covardia em suas experiências. Ao encontrar alguém com química, falta literatura. Ao encontrar alguém com literatura, falta química. Sempre está faltando alguma coisa.

A ausência desse algo não pode trazer desespero, mas vontade de aprendizado. Temos que ensinar o outro como somos, como funcionamos, o que queremos.

Ficará junto quem tem mais humildade para aprender, apesar das enormes diferenças de temperamento.

Aceitar e acolher a imperfeição é a grande percepção para encontrar uma companhia fundamental. As relações não vêm prontas, restando apenas o nosso esforço de encaixar. As peças devem ser inventadas e manufaturadas na convivência. As pontas serão moldadas pelo prazer de nos explicar e facilitar o acesso.

Na hora de expor os defeitos, não se sentir cobrado, criticado e ameaçado, não gritar e muito menos acusar para se igualar na fraqueza. A pressa elimina candidatos honestos e sinceros. Só a paciência produz intimidade.

Ninguém tem a obrigação de saber o que pensa, ninguém está dentro de sua cabeça para aceitar as suas decisões - terá que rebobinar a história ao início para justificar as suas escolhas.

O amor é um jogo infantil feito para adultos. Ou seja, precisará conversar devagar, como se estivesse expondo as regras de seu corpo e de sua mente para uma criança: isso pode fazer, isso não pode fazer, ganha o meu coração quem avançar todas as casas sem trapacear.

Qualquer um, por mais louco que seja, possui regras. Estenderá o tabuleiro de sua personalidade e mostrará o conteúdo das cartas, longe da tentação do blefe e da telepatia. Ganhará a partida se o seu par ganhar. A vitória dele será a sua vitória: significa que conseguiu a façanha de se traduzir.

Não há como ser amado antes de ser compreendido. Príncipe encantado não existe, o que existe é a perseverança da amizade. Quando unimos, na mesma pessoa, o melhor amigo e o melhor amante.


#10 anos de permissão concedida

🌼 1 Coríntios 13:1
@diariocomdeus_

sábado, 25 de abril de 2020



“Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. 
Eles são muitos.”

Nelson Rodrigues



sobre a coletiva do Bolsonaro, para “reestabelecer verdades”

o luto morreu



No espaço de um mês, perdi uma tia e um primo. Em função disso, eu, que quase não vejo meus parentes, tive a oportunidade de estar com eles uma vez a cada semana, em dois velórios e em duas missas de sétimo dia, onde trocamos longas conversas e até algumas risadas que escaparam durante a tristeza. Não foram momentos alegres, mas foram momentos bonitos de encontro e confirmação da potência afetiva da nossa família.

Morte não é um assunto que evito, mas, nos últimos dias, pelas circunstâncias, pensei nela mais do que o normal - nela e em sua consequência imediata: o luto. Pra quem acaba de chegar ao planeta Terra, explico: luto era um período de resguardo, com duração variável, em que a gente processava a nossa dor. Não dava vontade de trabalhar, namorar, participar de confraternizações – o silêncio se fazia necessário para que a gente pudesse se despedir de uma presença transformada subitamente em ausência. O sofrimento não era camuflado: fazia parte da cura. Só então, aos poucos, a gente se reintegrava à sociedade, retomando nossos afazeres diários.

O luto vinha após qualquer morte. Não apenas depois da morte de alguém: valia também para o fim de um amor, a demolição de uma casa, a partida de um filho. Além de prestar uma homenagem ao passado, o luto servia para reorganizar nossos sentimentos e pensamentos. Isso existiu.
Mas, como você deve ter reparado, o luto morreu. Não existe mais. No lugar do luto, veio o dia seguinte com compromissos intransferíveis, mensagens de whatsapp que exigem resposta imediata, passagens aéreas que melhor não cancelar para não pagar multa, clientes que podem se irritar se a reunião for desmarcada, o horário no médico que foi uma dificuldade pra agendar, sem falar na manhã ensolarada exigindo uma selfie. Dar espaço pra dor se tornou improdutivo. Vamos em frente, time is money, o morto vai entender.

O morto é um querido: não quer incomodar, empatar sua vida. Ele já foi como você, teve agenda, obrigações, planos. Não foi sua culpa ter morrido numa terça-feira: se pudesse escolher, ele teria morrido numa sexta à tardinha (mesmo melando o happy hour) para que você pudesse aproveitar o sábado e o domingo para acostumar sua alma com a nova situação, mas foi morrer em dia útil, imagina se exigirá atenção plena. O morto libera o pessoal do luto e não puxa os pés de ninguém. Todo defunto é boa gente.

Só me pergunto se a dor não fica sublimada, se ela não explodirá mais adiante em um momento indevido, se é possível mesmo colocar vida e morte sentadas na mesma sala, com a mesma música alta. Ok, eu sei, a modernidade não tolera sentimentalismos. Resta isso, então, uma crônica saudando os velhos tempos, o que também não deixa de ser um dever cumprido no prazo, o jornal não pode esperar.

#RIP tia Iracy
família da minha mãe se esvaindo...


Salmos 37:4-5
#diariocomdeus_

quinta-feira, 23 de abril de 2020


#dia mundial do livro

O dia 23 de abril foi escolhido por ser a data da morte de três grandes escritores da história: William Shakespeare, Miguel de Cervantes, e Inca Garcilaso de la Vega.



“Eu decidi ficar com amor. O ódio é um fardo muito grande para carregar.”

- Martin Luther King -





Normalmente, vou bastante ao supermercado. Duas vezes por semana, no mínimo. As pessoas estão acostumadas a me encontrar pelos corredores e, quando falam comigo, são sempre muito simpáticas. Mas um cliente, certa vez, conseguiu me constranger. Sem dar bom dia e sem se apresentar, fitou meu carrinho com os dois olhos arregalados e exclamou num tom de voz muito acima do razoável: “Vamos ver o que a Martha Medeiros come!”. Fiquei muda, perplexa. Quando ele fez menção de tocar nas minhas compras, desviei e dei-lhe as costas - não disse o que ele merecia escutar. Sou covarde diante da iminência de um barraco.

Foi quando me dei conta do quão íntimo é o conteúdo dos nossos carrinhos. É possível identificar o estilo de vida de uma pessoa apenas analisando suas compras regulares no supermercado: se mora sozinha, se tem crianças em casa, se tem filhos adolescentes, se tem muito dinheiro, se está de dieta, se é vegetariana. No filme Divã, a personagem de Lilia Cabral, recém-separada, encontra o ex-marido entre as gôndolas do supermercado e não resiste em dar uma conferida no carrinho dele. Repara que o ex comprou uma garrafa de um vinho caro. Espumando de raiva, mas mantendo o sangue frio, comenta: “Humm, comprando vinho de R$ 80 ... quando éramos casados o teto era R$ 35”. Ele dá uma desculpa qualquer, mas não adianta: ela acaba de descobrir que o bandido já está namorando.

O carrinho entrega tudo: se você só come carne de segunda, se tem cachorro, se não se preocupa com o peso, se está menstruada, se depila com gilete, se pretende maratonar uma série no sofá com um balde de pipoca no colo ou se vai dar uma festa em casa - não é possível que aquela quantidade de garrafas de espumante seja apenas para fazer estoque.

Nos primeiros dias da crise do coronavírus, quando a população invadiu os supermercados para se abastecer, os carrinhos deduraram os mais egoístas. Clientes que conduziam carrinhos abarrotados de papel higiênico e garrafas de álcool eram vistos como inimigos da população, pessoas sem empatia. Da mesma forma, mas invertida, me doeu ver uma senhorinha de uns quase 90 anos comprar apenas um litro de leite, um pacote de macarrão, dois tomates, uma cebola e três sabonetes. Nem precisou de carrinho, a cestinha deu conta.

Entre este momento em que escrevo até o momento em que serei lida transcorrerá uma semana. Não sei como estará o mundo, nem o Brasil, já que as notícias têm sido atualizadas a cada 10 minutos. Nossa vida melhorou? Piorou? Seja como for, espero o básico: que a gente consiga continuar se abastecendo de comida e de respeito pelos outros, que é o que faz uma sociedade doente receber alta.


Eclesiastes 3:1 🌼
#diariocomdeus_

quarta-feira, 22 de abril de 2020


pandemia & pandemônio


Roubo, ou empresto, a expressão que me escreveu minha querida Miriam Leitão. Vivemos isso hoje, com uma intensidade inquietante, sem ver a saída tão cedo, com líderes em alguns países bancando as maiores trapalhadas, pensando em política e poder... gente morrendo feito mosca, gente entristecendo ou ficando furiosa sem saber com quem...

Particularmente, sinto uma falta danada de conviver, como de hábito, com minha família, filhos, netos, netas, amizades queridas, e saboreando a velha liberdade que desde criança tanto aprecio: até para decidir que quero ficar em casa. Mas neste momento de loucura e tristeza, é preciso calar a criança rebelde dentro de nós, ou a adolescente também inquieta, e seguir as regras: para salvar vidas, verdade muito verdadeira.

Outro amigo me manda o poema que eu não conhecia de Mario Benedetti, que diz mais ou menos isso: “Quando a tempestade passar, sobreviventes de um naufrágio coletivo, nos sentiremos felizes por estarmos vivos, e com os amados vivos também. Lembraremos o que perdemos, e quem sabe aprenderemos tudo o que antes deixamos de aprender. E tudo será um milagre”.

Nuns dias meio sombrios, o poema me animou, a beleza sempre anima, é a saída melhor, além dos afetos, nos momentos tormentosos.

Então esta noite tive um sonho - sonho intensamente desde criança, e lembro boa parte do que sonhei. “Sonhos são espumas”, diziam em alemão minha mãe e avós, nem sonhando com o velho Freud, segundo o qual sonhos são, como também elas diziam, “espumas que flutuam sobre as águas escuras do nosso coração.” (Do inconsciente, diria o Velho.)

Nesse sonho, que divido com meus leitores porque assim nos fazemos companhia uns aos outros, eu procurava uma tradução de um termo em inglês, que não recordo. E estranhava, porque geralmente sou boa nesse idioma, que, como alemão, falo quase desde sempre. Mas, claro, às vezes o bom dicionário ilumina.

O lugar era como um grande teatro, ou cinema. Na plateia, em lugar de poltronas, mesinhas e cadeiras como as de uma escola ou universidade, todas ocupadas, muitas dezenas de pessoas. As paredes eram cobertas de prateleiras, e me indicaram uma prateleira baixa onde estariam os dicionários. Recomendaram um de inglês, cujo autor não conhecia, não conheço e esse nome esqueci.

Caminhei diante da primeira fileira de alunos, professores, estudiosos, todos ocupados com seus trabalhos. E de repente escutei uma espécie de música - como uma chuva doce caindo, musical, fora deste mundo. Parei no meio do meu trajeto, olhei aqueles tantos estudiosos, todos de cabeça baixa ocupados com seus livros, e percebi, então, que o rumor era das páginas, centenas, milhares, sendo viradas. Acordei: a chuva que de verdade caía lá fora tinha invadido meu sono, dando-me uma incrível sensação de consolo, beleza, aconchego.

De volta para a pandemia e o pandemônio, preocupada com meus amores e com milhões de desconhecidos no mundo, imaginei o que hoje escreveria aqui. Escrevi. Cuidem-se.


#descobrimento do Brasil

🌼 2 Corintios 4:17
#diariocomdeus_

terça-feira, 21 de abril de 2020

#dia de Tiradentes



“Aquele que planta uma árvore, sabendo que nunca vai sentar-se na sua sombra, começou a entender o significado da vida.”

Rabindranath Tagore

daqui pra frente


 Semana passada, fui surpreendida por uma contratura traiçoeira: começou levezinha, no pescoço, e logo se expandiu para as costas e um dos braços. Dor infernal, de acabar com o bom humor. Achei que um analgésico daria conta, mas não tinha nenhum em casa, então pedi socorro por WhatsApp a um vizinho mais prevenido que eu. Ele colocou a cartela no chão do elevador e apertou no botão do meu andar - não me entregou em mãos por motivos óbvios.

Mas o analgésico não foi suficiente. Já não conseguia me mexer, não havia posição para dormir, e pior, não conseguia mais escrever. Eu precisava de um fisioterapeuta pra ontem, e que fosse valente, já que seria impossível me ajudar à distância. Quis a divina providência que me recomendassem a Carol, uma vizinha não de prédio, mas de quarteirão, que se prontificou a me atender em casa.

Chegou com máscara, luvas, álcool gel e logo perscrutou cada uma de minhas costelas e meus músculos. Eu estava com um nó cego dentro do corpo. Ela aliviou a situação, mas deu a real: eu não ficaria boa num piscar de olhos. Sugeriu um pelotão de medicamentos e ordenou: repouso absoluto. Eu não poderia nem mesmo chegar perto do computador. Pensei: ok, tenho alguns textos de reserva justamente para essas situações. E relaxei.

Até que chegou o dia de enviar esta coluna para a redação do jornal. Abri meu arquivo de textos inéditos: qual escolher? Comecei a lê-los e me dei conta de que nenhum servia. Todos estavam relacionados a situações presenciais, ruas da cidade, hábitos culturais, preocupações que destoariam do que estamos vivendo hoje. Percebi que não era apenas o meu corpo que não podia sair de casa: minhas reflexões anteriores ao coronavírus também não.

A danada da contratura foi provocada por uma manobra desajeitada durante um exercício e pela má postura ao digitar no teclado, mas não se pode descartar os efeitos emocionais da pandemia. O estresse de ter a rotina interrompida. A aflição por quem não tem condições de ficar em casa, ou que nem casa tem. O medo de perder amigos e parentes. A falta de um prazo para o fim desta ameaça. As consequências econômicas, que serão dramáticas. A ausência de uma liderança política que nos passe confiança. Sorte de quem consegue peitar a crise sem desenvolver uma taquicardia, sem depressão, sem insônia, sem as entranhas acusarem o golpe. Eu, que me considero calma, amiga íntima do Dalai Lama, não consegui evitar a somatização.

Só me resta festejar a inexistência de exame antidoping para colunistas. Estou escrevendo este texto ainda sentindo dores lombares e ingerindo alguns comprimidos, mas não tem outra saída: daqui pra frente, o assunto mudou. A vida do lado de fora das nossas janelas terá que ser repensada - e reescrita.



Até o insensato passa por sábio quando fica calado; de boca fechada , até parece inteligente.

Provérbios 17:28 / NVT

segunda-feira, 20 de abril de 2020

seja civilizado


                                                            Margaret Mead - 1901/1978

Anos atrás, a antropóloga Margaret Mead foi perguntada por uma estudante o que ela considerava ser o primeiro sinal de civilização em uma cultura. 

A aluna esperava que Mead falasse sobre anzóis, panelas de barro ou pedras de amolar. Mas não. Mead disse que o primeiro sinal de civilização em uma cultura antiga era um fêmur (osso da coxa) que havia sido quebrado e depois curado.

Mead explicou que no reino animal, se você quebrar sua perna, você morre. Você não pode correr do perigo, chegar ao rio para beber ou caçar comida. Você é carne para animais rondando. Nenhum animal sobrevive a uma perna quebrada por tempo suficiente para o osso curar. 

Um fêmur quebrado que curou é evidência de que alguém teve tempo para ficar com aquele que caiu, amarrou a ferida, levou a pessoa à segurança e cuidou da pessoa através da recuperação. 

Ajudar alguém através da dificuldade é onde a civilização começa, disse Mead.

“Estamos no nosso melhor quando servimos aos outros.”


o aviário das varandas



Nunca as varandas e sacadas foram tão frequentadas. O medo pode confundi-las com gaiolas, já a esperança compreende que são aviários.

Com o resguardo diante da pandemia, elas se tornaram uma espécie de calçada da família. As pessoas viraram namoradeiras de pedra em seus corrimãos.

Você observa os edifícios e sempre tem alguém de vigia no mirante particular. Mesmo as mais estreitas, que não têm espaço nem para uma churrasqueira, vêm servindo para esticar as cadeiras de praia e as pernas. Ter uma abertura ao ar livre, para tomar sol e descascar tangerinas no inverno, para dar uma escapadinha e ver o movimento ou o não movimento das ruas.

Alguns entoam músicas para os vizinhos, outros tocam instrumentos como violão, violino e saxofone.

É uma porção de pássaros nos fios dos parapeitos, cantando, decantando a solidão, controlando o mundo de cima e se esforçando para exercer uma comunicação nova, à distância, pelos sinais e vozes, para alcançar ao menos a solidariedade dos rostos

É a redescoberta das serenatas, das conversas ao entardecer, de apanhar o pôr do sol ou a lua e manchar as camisas com os reflexos da luz. Ainda há aqueles que se trancam ali para fazer sua terapia por chamada de vídeo, isolados dos parentes, protegendo a privacidade das confissões, como se estivessem em antigas cabines telefônicas.

Há os que discutiram e, depois dos gritos dentro de casa, esfriam a cabeça com as sobrancelhas sofridas, pungentes, quase chorando de raiva. Há os fumantes, que tragam espirais de fumaça com lentidão, imitando suspiros à beira do cânion do Itaimbezinho.

Há os jogadores de carteado, do buraco, que montam brincadeiras de cartas com os filhos enquanto esperam o tempo passar. São os mais alegres, fingindo que atravessam um veraneio chuvoso.

Há também os velhinhos que jamais se aproximam do umbral, temerosos da altura, que mantém a sombra e a pele unidas no mesmo passo.

A porta de correr das varandas está mais usada do que a porta da frente. Não duvido que os anjos, os Cristos e as tabuletas de bem-vindo mudem de lugar.