#dia da saudade
quarta-feira, 30 de janeiro de 2019
Para quem – por desespero ou por gosto – vive aludindo aos erros do passado, eis uma frasezinha de um homem chamado Fénelon: “Pode-se corrigir o passado, com o futuro.”
Talvez seja, aliás, o único modo de corrigir o passado. Pois uma verdade óbvia é esta: enquanto você lamenta o passado, o presente lhe foge das mãos.
E não há tanto do que se recriminar e lamentar: não há outro modo de viver senão o de errar e corrigir-se, e depois errar de novo e corrigir-se de novo. O que não chega a ser trágico: trata-se do jogo da vida, e todos nós jogamos o mesmo jogo.
Agora, o que é mesmo uma pena é uma pessoa sentar-se num canto da sala (figurativamente), e lamentar, lamentar, lamentar. Quem está no jogo tem que aceitar as regras do jogo.
Você há de dizer: “Eu não pedi para entrar no jogo, não pedi para nascer.” Pois esse argumento é uma mistura de neurastenia, vontade de despistar, má vontade e chicana.
Tenha cuidado com uma coisa: quando lamentar-se começa a ser um consolo, é tempo de prestar atenção.
Marcadores:
Clarice Lispector
saudade de sentir saudade
Telefonei para minha mãe
hoje de manhã, e ela, ao ouvir minha voz, sussurrou com doçura: “Filha,
saudades...”. Não fazia nem 48 horas que ela havia almoçado aqui em casa, sem
contar os dois telefonemas que haviam sido trocados ontem, e ela já estava com saudades.
Isso me fez sentir a filha mais amada do mundo e a mãe mais megera do planeta.
Não vejo minha própria
filha há dois meses (está morando ali na Nova Zelândia) e quando me perguntam
se não estou derretendo de saudades eu digo que sim, claro, mas na verdade
tenho falado com ela mais hoje do que quando ela dormia no quarto ao lado. O
WhatsApp e o Facebook fazem com que minha saudade não mereça virar uma queixa e
muito menos um sofrimento. Minha saudade é tolerável, ainda que o adjetivo
tolerável não costume ser tolerado pelo passional universo materno.
Lembro com certa
nostalgia de quando a gente esperava uma carta, esperava para revelar uma foto,
esperava para colocar os olhos no bebê que ainda estava dentro da barriga. Pois
andaram me mostrando a ecografia de um feto de quatro semanas cuja resolução
era incrivelmente parecida com a de uma selfie. Hoje em dia você pode dizer se
seu filho puxou ao pai ou à mãe meses antes de ele nascer. Esperar é verbo
condenado à extinção.
Se não há mais espera,
onde colocar a saudade? Posso ver e falar com quem eu quiser, na hora que
quiser, em tempo real. Qualquer país do Hemisfério Norte está mais próximo do
que a esquina aqui de casa. Longe é um lugar que não existe, confirmado.
Caducou até mesmo a Teoria dos 6 Graus de Separação, estudo que prova que
estamos a seis pessoas de distância de qualquer outra pessoa, até mesmo do
Barack Obama. Ora, o Obama está no Twitter. E já falei com Mark Ruffalo pelo
Facebook. Não preciso de intermediários. Daqui a pouco até Deus estará online
(aliás, está).
A saudade é provocada
pela ausência, mas quem se ausenta, hoje? Aqueles que morreram, apenas – para a
morte não há aplicativo. Já reclamar de saudade de quem está vivo virou apenas
um afago verbal, uma declaração de amor, e não uma carência real de contato, a
não ser que se esteja muito desanimado para ligar os apetrechos eletrônicos que
nos conectam. Temos recursos, temos acesso. A saudade já não precisa ser
tamanha, podemos torná-la comedida.
Não estou falando da
saudade entre amantes: beijos e seus derivados, só ao vivo mesmo. E para
amenizar a saudade constante que minha mãe sente, ela que se nega a aderir ao
mundo digital, só vejo um jeito: forçá-la a aceitar um smartphone de presente e
convidá-la para almoçar mais vezes.
Marcadores:
Martha Medeiros
terça-feira, 29 de janeiro de 2019
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
III
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.
IV
Quantas toneladas
exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas
disfarçamos
Sem berro?
Em 1984, Carlos Drummond
de Andrade publicou seu poema “Lira Itabira”, versos proféticos sobre o
conflito entre a mineradora Vale e a vida ribeirinha nos sertões mineiros.
Era
pra ser sobre o Rio Doce. Hoje a dimensão do poema alcança também o Rio Paraopeba.
Em sua profecia, Drummond nunca foi tão doído, tão cortante, tão pungente e tão
atual.
Marcadores:
Carlos Drummond de Andrade
Se você acha que apenas
você está sofrendo, ou amando, ou desesperado, ou apavorado – enfim, se você
acha que tudo de bom ou de mal na vida só acontece com você, relembre Salomão:
“Geração vai e geração
vem, mas a terra permanece sempre a mesma. Levanta-se o sol, e põe-se o sol, e
volta ao seu lugar, e nasce de novo”.
“O vento vai para o sul,
e faz seu giro para o norte; volve-se e revolve-se, na sua carreira, e retorna
aos seus circuitos”.
“Todos os rios correm
para o mar, e nem por isso o mar se enche; (…)”.
“O que foi, é o que há de
ser; o que se fez, isso se tornará a fazer. Não há nada de novo debaixo do
sol”.
Salomão dizia isto há
3.000 anos – mas não para fazer com que nos sentíssemos inúteis ou repetitivos.
Sua intenção era nos mostrar que, em nenhum momento, estamos sozinhos. Se Deus
fez com que todas as gerações anteriores encontrassem seu rumo, fará a mesma
coisa por cada um de nós. Afinal, Ele tem milênios de experiência com nossos
problemas.
Eclesiastes 1:4-9
Marcadores:
Bíblia,
Paulo Coelho
sábado, 26 de janeiro de 2019
No mundo lá fora, cidades
só desaparecem em caso de tragédias naturais.
Tsunamis, terremotos,
furacões.
Aqui não.
Aqui cidades desaparecem
por culpa da incompetência e da ganância.
Absoluta incompetência do
Estado para fiscalizar e ganância sem precedentes da iniciativa privada, que
não investe na manutenção.
Aí cidades somem do mapa.
Gente morre às centenas.
Famílias perdem o pouco
que têm.
E está tudo certo.
Porque é gente barata.
Gente que o Estado nunca
investiu muito mesmo.
Cidades com
infraestrutura precária.
Gente pobre, genérica.
É chato, deixa a gente
triste, passa no Fantástico, mas né?
É lá no interior de
Minas, tudo bem.
Com o tempo gente aceita.
Aí o Brasil vira o país
da tragédia anunciada.
Brumadinho é tragédia
anunciada.
Quando Mariana foi
dizimada, apagada do mapa, um monte de especialistas avisaram que outras
barragens apresentavam os mesmos riscos.
Mas deixaram para lá.
Uma multa aqui, uma
reportagem ali e segue o enterro.
Incompetência e ganância
dão nisso.
Brumadinho esfrega na
nossa cara o problema que convivemos em aparente menor escala diariamente.
Ou o fato dos rios Tietê
e Pinheiros serem rios mortos, recebendo esgoto clandestino de centenas de
indústrias, não é - na essência - o mesmo problema?
Incompetência do Estado
em fiscalizar, ganância das empresas que não investem no despejo de seus
esgotos.
Não é por isso que a
Bahia da Guanabara está como está?
Ou a infraestrutura
ferroviária está sucateada?
Incompetência do Estado
para fiscalizar.
Ganância do setor privado
que não investe.
E uma gigantesca falta de
coragem e vergonha na cara de todos nós em exigir mudanças.
A tragédia natural do
Brasil é o brasileiro.
sexta-feira, 25 de janeiro de 2019
”Milagre é quando tudo
conspira contra, mas Deus vem de mansinho e com um sopro leve muda o rumo dos
ventos.
Milagre é quando o incerto nos abraça depois de nos atingir cruelmente
com sua fúria.
É quando respirar vira quase um suspiro de alivio e a vida devolve
o sorriso como forma de retribuição por todo sofrimento.
É o instante teimoso
que resiste bravamente a um duro percurso e mantém-se em pé amparado pela força
divina.
É a decisão que escapa de nossas mãos, mas que antes de cair agarra-se
com toda força a uma segunda chance.
Milagre é o improvável gesto de carinho
que impulsiona o ser humano a não deixar de acreditar.”
Marcadores:
Fernanda Gaona
A precipitação é
perigosa. Por querer o que foi bom um dia, não aceitamos a mudança dos
sentimentos.
Ter paz não é tédio. Ter
carinho de vez em quando não é pobreza emocional. Transar uma vez por semana
não é o apocalipse conjugal.
Confundimos o fim de um
ciclo com o término da relação. Confundimos o descanso com o cemitério.
Não é que você vem
desamando, o amor ora nervoso se transformou em estabilidade.
Passou da rebentação e se
tranquiliza para as braçadas. No raso, as ondas quebram e fazem o dobro do
barulho. Quando encontra a afinidade, consegue boiar no olhar do outro. O mar é
igual, somente se encontra mais no fundo dele.
Não há mais aquelas
brigas homéricas, as discussões duram cada vez menos. Não há mais aquelas
viradas sexuais de madrugada, a intimidade tem seus atalhos. Não há mais
aquelas conversas intermináveis na cozinha, os horários são mais honrados. É o
fim de um ciclo, não é o último capítulo do romance.
Existe uma pressão para
que os casais sejam sempre adolescentes apaixonados, agarrando-se em qualquer
lugar, com a ansiedade da língua entre os dentes. Mas o casal cresce e aprende
a amar no silêncio, na telepatia de uma música, no sofá da preguiça, na
companhia de um livro, na dança separada da rotina. O amor público e
escandaloso do início torna-se privado e constante. Não é pior nem melhor, é
uma fase necessária para seguir se conhecendo. Já convivem para saber o que é
certo e errado, o que deve ser dito ou não, o que causa confusão e o que traz
segurança. É a experiência de antever os problemas e procurar soluções antes do
choque. Suspira-se no lugar de gritar, afasta-se no lugar de implicar.
Pode sugerir que cansou e
que se acostumou, pode transparecer cedência, retração e anulação de
personalidade. Pois não se vê com o
mesmo vigor e intensidade de antes, com a mesma selvageria do desejo. Só que a
consolidação do namoro prevê exatamente a baixa da guarda e das defesas.
Quantos pares se separam
por acreditar que o relacionamento se amornou? E não é verdade, os laços estão
distintos, costurados em amizade e entendimento. A adrenalina da aventura é
agora o respeito às diferenças.
Temos a necessidade de
impor a paixão como demonstração de amor.
O amor fala por si, não
admite comparação. Envelhecer juntos requer a solidão a dois. Uma solidão feliz
e pacífica.
É quando o casamento não
divide apenas o espaço, divide o mais difícil de se repartir: o tempo.
Marcadores:
Fabrício Carpinejar
terça-feira, 22 de janeiro de 2019
o papel higiênico
Em 2005, publiquei uma
crônica sobre um episódio da minha infância. Estava na casa de uma colega de
aula. Lá pelas tantas, fui ao banheiro – só havia um. Horas depois, precisei ir
ao banheiro de novo, só que ele estava ocupado pelo irmão da minha colega. Foi
quando ela perguntou se eu me importaria de usar o banheiro da empregada.
Lógico que não. Corri pra lá, e foi então que vi. O papel higiênico da
empregada era diferente do usado pela família. Áspero. Parecia uma lixa. Muito
mais barato.
Era costume: comprava-se
um papel higiênico macio para os banheiros sociais e outro de pior qualidade
para os banheiros de serviço.
As relações entre
empregados e patrões continuam sendo uma maneira de flagrar preconceitos. Não é
por economia que se compra papel higiênico mais ralé para a empregada, ainda
que seja este o argumento. É para segmentar as castas. É para manter a
hierarquia. É pela manutenção do poder.
Vale para a exigência do
uniforme também. O nome já diz: o objetivo dele é unificar - caso do uso em
alguns espaços públicos e coletivos, como escolas e fábricas. Já no caso dos
empregados domésticos e particulares, a imposição do uso é para desunificar, ou
seja, lembrar “quem é quem”.
Em 1993, morei alguns
meses no Chile e minha funcionária aceitou ir junto (trabalha comigo há 27
anos). Ela nunca usou uniforme e, chegando lá, se deparou com um quadro
incomum: não se via uma única empregada sem usar um guarda-pó. Nem no prédio em
que morávamos, nem nas pracinhas, nem no super. Um dia, me pediu para comprar
um pra ela. Queria fazer amizade. As parceiras estavam achando ela meio besta.
Falamos tanto em acabar
com as injustiças sociais e às vezes não conseguimos mudar regras dentro da
própria casa. Todos nós temos um potencial revolucionário que pode se
manifestar através de pequenos gestos. Só uma elite conservadora e cafona
depende de empregados até nos fins de semana, uniformizados como se estivessem
no palácio de Buckingham e tendo que atender aos caprichos de adolescentes que
não levantam do sofá para fazer o próprio sanduíche.
O assunto é bem mais
sério e abrangente, mas permeia este aspecto também: o quanto, achando que
somos senhorios, não passamos de escravos de uma pretensa superioridade. Pobres
de nós e pobre de quem se submete aos nossos delírios de grandeza, quando tudo
poderia ser mais simples: eu preciso da sua ajuda e você precisa de trabalho –
ninguém é mais importante que ninguém por causa disso. E o papel higiênico tem
que ser o mesmo para todos. Essa reivindicação, simbólica, segue valendo 13
anos depois daquela crônica. Aliás, 130 anos depois.
Marcadores:
Martha Medeiros
segunda-feira, 21 de janeiro de 2019
em cima do muro
Todo espelho, mais cedo
ou mais tarde, não responde o que a gente quer. O relógio biológico não para,
antes que a gente aja, age a vida.
E apesar de termos certeza da atemporalidade que nos habita, a gente ainda se assusta com essa coisa tão simples.
E apesar de termos certeza da atemporalidade que nos habita, a gente ainda se assusta com essa coisa tão simples.
Triste quem faz uma escolha errada e a ela fica aprisionado.
Triste a falta de compromisso e interesse de quem escolhe passar a vida em cima do muro, porque de lá, a visão é a das possibilidades, acha-se então que se conhece uma e outra realidade, mas é só ilusão.
De cima do muro a vida não passa de uma promessa.
E promessas são intangíveis.
Viver tem que ser hoje.
A dúvida é uma queda diária no abismo que fica entre o sim e o não.
(Solange Maia)
os amigos estão morrendo
Quando o meu pai me disse
“todos os meus amigos estão morrendo”, a partir do seu desabafo, passei a
imaginar o que seria da minha vida sem os meus escudeiros. Sem o Zé. Sem o
Corso. Sem o Paulo Scott. Sem o Vinicius. Sem o Everton. Sem o Dudu. Sem
Francesca.
Quem eu procuraria para
contar as novidades e reclamar das dificuldades? Para quem desabafaria? Para
quem pediria socorro?
Não sei se resistiria.
O que é se despedir de
todos o que amamos gradualmente? O que é se ver longe do amigo do boteco, do
futebol, do entardecer, dos padrinhos de casamento e de nossas crianças? O que
é enterrar na gaveta um por um dos porta-retratos prediletos?
Pois a velhice assassina
os álbuns inteiros de fotografias de casa. Vão desaparecendo os companheiros de
nossas principais memórias, vão sumindo partes importantes de nossa
personalidade, fragmentos e lugares de nossos suspiros.
Há risadas que existem
apenas com alguns, há histórias que apenas podem ser contadas por alguns. Um
punhado de alguns que formam o nosso patrimônio da resiliência.
Meu pai evita ler
obituários do jornal, para não começar o dia em luto por alguém que conheceu ou
conversou.
Uma vez por mês, está preso
a um velório, a um enterro. A agenda nunca é certa e definitiva, abertas e
rompantes e marchas fúnebres. Seu terno preto nunca esteve tão gasto.
O pai experimenta uma
pungente solidão geracional. Uma solidão sem parâmetros. Uma solidão que lembra
um despejo com aviso prévio.
Ele anda mais calado do
que o costume, porque não tem mais para quem ligar. Sinto que metade do seu
idioma ficou parado, sem uso. Mal mexe em sua caderneta marrom de telefones.
A dor é maior para os que
ficam. Afora o medo que se instala na perda de um integrante da turma, afora a
desconfiança de reparar entre os presentes de cabelos grisalhos e perguntar
para si, em pensamento: quem será o próximo?
Os filhos precisam ser,
além de filhos, amigos dos pais, cúmplices das façanhas e das piadas, do tempo
e das espirais das repetições. Que dobrem os seus esforços diante dos dobres
dos sinos. Para atenuar um pouco a saudade cruel que os velhos amargam dos seus
contemporâneos.
Marcadores:
Fabrício Carpinejar
sexta-feira, 18 de janeiro de 2019
“paixão emagrece, amor engorda”
“No início, a paixão
emagrece. Ainda que o exercício seja só desfolhar o malmequer, ou apertar o
celular com força, o coração dispara tanto que qualquer coisinha vale por 10
aeróbicas. E a verdade é que paixão recém-nascida é melhor que qualquer comida.
Seu apetite só pode ser
saciado por coisas que não engordam: pele roçando na pele, mão esbarrando na
mão, olhares que dizem tudo, beijos suspensos nos lábios. Muitas dúvidas - será
que é paixão correspondida? Estará mesmo livre aquele coração?
O sono diminui, a
adrenalina corre proporcionando reflexos rápidos, os olhos brilham. Dançar,
cantar, dar risada, tudo o que é bom fica fácil. E o corpinho? Afina. Cada
suspiro consome 100 calorias.
Até que, de repente, o
desejo se realiza. Bem-me-quer, bem-me-quer! As bocas recheadas de beijos, a
vida uma roda-gigante, comer para quê se o bom é amar, amar, amar? Noites
movimentadas e dias à espera das noites: desnecessário também dormir. O sonho
já virou vida e a vida virou estar junto. O resto se ajeita entre um encontro e
outro, um telefonema e outro. Se não me engano foi Freud quem disse: paixão são
dois náufragos agarrados na mesma tábua. Magros.
Aí, passado algum tempo,
a paixão começa a se transformar em amor. Nossos náufragos chegam à segurança
da ilha e resolvem cuidar juntos da vida, construir uma cabana e arranjar
coisas para... comer. Afinal, eles merecem! Conquistaram o coração um do outro,
isso não acontece todo dia, e tome celebração. É café na cama aqui, almoço ali,
ceia acolá, uma viagem de férias cheia de comidas típicas, bebidas deliciosas,
sobremesas fartas, e o prazer da intimidade matinal se prolonga até mais tarde,
abrindo o apetite para novidades. Que a novidade já não é o outro, mas tudo o
que se faz junto, tudo o que se gosta, tudo o que se adora. E pode haver algo
mais adorável, excitante e gratificante do que descobrir que se gosta da mesma
comida?
O amor come, o amor
cozinha. O amor chama o amor de minha doçura e dá chocolates caros de presente.
Compra vinhos, queijos e outras delícias. Comemora na mesa os sucessos da cama
e o passar dos dias, dos meses, do ano - já um ano? Então, festa! Alegria,
alegria! E assim o amor engorda.
O amor que engorda põe um
olho no espelho e outro no outro, pra ver se engordaram os dois. Bingo.
Bochechinhas, pneuzinhos, a cintura apertada pedindo discretamente para
desabotoar o jeans... E aí, de duas, uma: ou vão ambos malhar na academia ou
começam a chegar com umas roupinhas novas, larguinhas, mais confortáveis para
ficar em casa, grudadinhos, vendo filmes e comendo pipoca.
Os da academia renovam a
vida, se animam para um spa, resolvem caminhar de manhã e pedalar aos domingos;
conhecem pessoas novas e de repente até se apaixonam de novo um pelo outro. Ou
por outros.
Os das roupinhas largas,
cada vez mais largas, em breve vão precisar de afrodisíacos. Ostras, lagostas,
caviar, fígado, rins, testículos e miolos têm reputação de dar muita energia sexual.
Temperos como pimenta, canela, noz-moscada, cravo, açafrão, baunilha e gengibre
estimulam a circulação, portanto podem auxiliar o sangue a chegar mais
abundantemente às zonas prazerosas. Champanhe tem fama de liberar a libido mais
do que qualquer outro vinho, e alguns alimentos são tidos como realmente
excitantes: aspargo, aipo e alho-poró por causa da forma, faisão e pombo pelo
arroubo amoroso.
Um menu afrodisíaco
citado pelo Larousse Gastronomique, a quem interessar possa: sopa de tartaruga
com âmbar gris, linguado à moda normanda, filé de rena com creme de leite,
pombo jovem assado, aspargos ao molho holandês, salada de agrião, pudim de
tutano, vinhos do Porto e bordeaux, e finalmente café.
Se funciona, não se sabe;
mas que engorda, engorda.”
[Trecho do livro de Sonia Hirsch]
Marcadores:
Filmes/livros/tv
quinta-feira, 17 de janeiro de 2019
das dificuldades da vida
Não é difícil para mim,
acordar cedo e ir trabalhar. Não é
difícil para mim, resolver conflitos, orientar pessoas, receber clientes e
ajudá-los a resolver seus problemas.
Também não é difícil para mim, chegar
cansada em casa e ainda arrumar o jantar. O prazer de ver a família reunida,
jantando, supera qualquer cansaço. E assim, movidos pelo amor às pessoas e às
nossas causas, não é difícil viver.
Não é difícil viver
sozinho e não é difícil criar uma família. São propósitos de vida, portanto
imagino que não sejam difíceis para quem
se propõe vivê-los.
Não é difícil ser um
cidadão comum. Pegar fila, esperar a minha vez ou falar a mesma coisa muitas
vezes nas repartições públicas. Enquanto cidadão, valho tanto como qualquer
outro e isto é bom. Me põe no meu verdadeiro lugar.
Não é difícil cuidar dos
nossos pais, tampouco dos nossos filhos. Por mais que haja dificuldades, é
tanto amor envolvido que tudo se ajeita.
Difícil é suportar os
entraves, disfarçados de pessoas, que surgem. Isso é difícil! Gente mal educada,
que atravanca os processos, que nasceu para complicar o que já estava
resolvido, isso é difícil! Difícil é ter que dar satisfação da sua vida para
quem não foi convidado para fazer parte dela. Difícil é ter que conviver com
pessoas que “não suportam” a nossa felicidade. Difícil é ter que “pisar em
ovos” com pessoas dispostas a explodir a qualquer momento. Ah como é difícil!
Difícil é suportar
pessoas que só tem olhos para seu próprio umbigo. Só enxergam a si mesmas. Seus
problemas, suas causas, seus atributos, suas escolhas. Essas são insuportáveis.
Difícil é ter que conviver com quem não sabe ganhar, nem tampouco perder.
Quando ganham são sarcásticas, quando perdem são céticos.
Difícil mesmo é conviver
com essas pessoas e enxergar o lado bom delas. Isto é o mais difícil de tudo! É
transcender as fraquezas do indivíduo e chegar a um lugar que ninguém conhece
(ainda). Como assim, se eu ainda não transcendi nem as minhas próprias
fraquezas?
Difícil é amanhecer
disposto a fazer a sua parte e esbarrar nestas pessoas. Difícil é saber
conduzir nossas vidas e não permitir que essas pessoas nos roubem nossa
energia, nem nossa alegria de viver. Isso é evolução da espécie humana. E
talvez explique a existência de todas essas pessoas em nossas vidas. Só se evolui
com provações! Aí estão elas!
Marcadores:
Leila Rodrigues
terça-feira, 15 de janeiro de 2019
Tive um pequeno
apartamento que vendi mobiliado, mas me aconselharam a retirar ao menos o
lustre, já que era uma peça que parecia rara. Então, lá fui eu retirar do teto
um lustre enorme e empoeirado, e até hoje ele anda pra lá e pra cá no bagageiro
do meu carro, pois não encontro tempo para ir a um antiquário. Cada vez que
abro o porta-malas, onde costumo transportar as sacolas do supermercado, me
deparo com o espaço ocupado pelo lustre e me pergunto: por que não o deixei para
o novo morador? Ganância, senhores.
Essa é uma pequena
história sobre arrependimento. Igual a essa tenho dezenas, todas tão
desimportantes quanto. Convites que não deveria ter aceitado, desabafos que eu
não precisava ter feito, e-mails escritos depois de três cálices de vinho, esse
tipo de coisa, bobeiras contumazes que não estragam nossa vida, apenas fazem
com que a gente se envergonhe por uns dias e acabe aprendendo mais sobre si
mesmo. Os poucos remorsos sérios têm a ver com relações afetivas e familiares
(a velha culpa: onde eu estava que não vi isso, não percebi aquilo?), mas,
ainda, tudo dentro da cota permitida de vacilos.
Arrependimentos nos
amadurecem e nos ajudam na correção de rota. Só se tornam um problema quando a
rota terminou, quando falta apenas meia-dúzia de curvas para a estrada chegar
ao fim.
Ninguém simpatiza com a
velhice avançada e motivos não faltam: doenças, falta de memória, perda da
autossuficiência e outros enguiços comuns a quem rodou bastante. Ainda assim,
doloroso mesmo é chegar tão longe e descobrir que entre os arrependimentos há
um, ou dois, ou vários que não foram desimportantes e, sim, cruciais.
Excetuando as pessoas que
confiam na vida eterna, para todas as outras, que acreditam apenas na vida
antes da morte, nada pode ser mais triste do que, no balanço final, descobrir
que abriu mão de um amor por causa de conveniências, que não foi amigo dos
filhos porque só pensava em si mesmo, que não realizou projetos pessoais por
causa de preguiça, que nunca arriscou uma guinada por causa de medos que agora
parecem sem sentido, que gastou seu tempo com gente idiota e hábitos herdados
de uma sociedade fútil, que não se permitiu conviver com pessoas diferentes por
preconceito.
Esse é o arrependimento
que não é uma bobeira contumaz, pois resulta numa secreta tragédia pessoal: o
desperdício de uma vida que poderia ter sido mais bem preenchida, mais
estimulante e com mais oportunidades de expansão.
Tem boa notícia no final
do texto? Tem. É sobre aquela meia dúzia de curvas que restam. Pode parecer
pouco, mas é o que se tem para hoje, e hoje é tudo o que importa.
Marcadores:
Martha Medeiros
Assinar:
Postagens (Atom)