quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017
29 de fevereiro
Inventaram um mês mais curto e um dia extra em certos fevereiros para alinhar o calendário gregoriano com o lunar, ou coisa parecida, numa versão cósmica do jeitinho
Jaguar é o mais famoso bissextino que existe, pelo menos para
seus amigos e admiradores. Fiz uma pesquisa e descobri que, além do Jaguar,
nasceram em 29 de fevereiro de 1932 só mais três pessoas que mereceram ser
citadas pelo Google: Gene Golub, matemático, já falecido; Masten Gregory,
automobilista, já falecido; e Reri Grist, soprano, ainda viva, todos os três
americanos.
Posso estar cometendo uma grande injustiça e apenas mostrando
minha completa ignorância do mundo dos matemáticos, dos automobilistas e das
sopranos, mas nunca ouvi falar de nenhum deles. (Cartas de protesto para a
redação). Já o Jaguar está lá: cartunista, brasileiro, vivo e conhecido.
Ser bissexto tem suas desvantagens — menos presentes de
aniversário — e suas vantagens: só se fica mais velho de quatro em quatro anos.
Inventaram um mês mais curto e um dia extra em certos fevereiros para alinhar o
calendário gregoriano com o calendário lunar, ou coisa parecida, numa versão
cósmica do jeitinho.
Pessoas nascidas em 29 de fevereiro teriam poderes especiais
ou características próprias, no caso do Jaguar, seu talento incomum. Mas
imagino que dois dias a menos e um eventual dia a mais em fevereiro devem
causar problemas, por exemplo, para os astrólogos, que precisam encaixar os
dias a menos e a mais em mapas astrais que não têm nada a ver com os volúveis
calendários terrestres.
Já contei várias vezes que uma das coisas que eu fazia quando
comecei no jornalismo era o horóscopo. Como era um iniciante numa redação sem
muitos recursos, me botaram a fazer de tudo, inclusive astrologia amadora.
Depois de um dia fazendo de tudo, ainda precisava me concentrar em prever o
futuro e orientar a vida profissional e sentimental das pessoas.
Tinha pouco tempo e escrevia o que me vinha à cabeça, quase
sempre apelando para o humor, e muitas vezes apenas trocando meus conselhos de
um signo para outro, aproveitando para sagitário o que no dia anterior servira
para leão, por exemplo.
Na inocente suposição que cada leitor só lê o que diz seu
próprio signo. Mas todo o mundo lê todo o horóscopo todos os dias. Aquele
astrólogo metido a engraçadinho não podia durar muito tempo. Foi uma carreira
curta.
Quer dizer: sei por experiência própria a confusão que os
homens provocam entre os astros.
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Luis Fernando Veríssimo
terça-feira, 21 de fevereiro de 2017
cansada
Da esquina escura, o azulejo gelado, a janela com grades, a
rua vazia
Do bar lotado e a casa desabitada
Da fome que chega para o homem na calçada
Do bueiro sujo e as ruas alagadas
Do restaurante lotado e o pedinte com as mãos estendidas
Da arvore devastada e os móveis brilhantes
Da criança que chora pelo abandono dos pais
Da violência gratuita que rifa inocentes
Do aprisionamento da liberdade
Do retrocesso dos direitos
Da falta de compaixão, da desumanização,
Da doutrinação ao ódio, à intolerância, ao preconceito
Do conteúdo violento, das injustiças
Dos vasilhames humanos cheios de conceitos descartáveis
Dos prontuários literários dizendo que basta a força de carpe
diem para o momento oportuno
Do Maktub, traduzindo a fatalidade, para justificar a merda
que está por vir.
Parece que não adianta pensar em verde, pois a terra não mais
florescerá
Agora, o caos tem carta branca.
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Ita Portugal
domingo, 19 de fevereiro de 2017
no gabinete de Deus...
Eu nunca me comprometi em ser bem comportada, no sentido de plácida em relação às opiniões, posicionamentos, sentimentos e emoções que a vida requer de mim.
Também não me comprometi jamais em ser agradável em todos os
momentos. Isso seria transgredir meus descontentamentos internos ou externos
que, como todo mundo, possuo, mas, como poucos, exponho, sem dó e sem medo.
Acredito em Deus sobre todas as coisas, mas, não fico
chateando-o com medidas que eu mesma devo tomar.
Tenho muita parcimônia para incomodar Deus.
Tantos doentes, tanta miséria, tanta insanidade. Enfim, o
gabinete celestial anda bombando!
Mas, também faço a minha fézinha. Não inha no tamanho, mas,
humilde no pedir.
Possuo certa angústia quando vejo o nome de Papai do Céu
sendo usado como se fora receita de bolo de chocolate.
Respeito é bom e todo mundo gosta.
E Deus merece!
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Cláudia Dornelles,
USQ
dor de fevereiro
Eu acordo magra.
Acordo alta e fina. Não que eu durma baixinha e gorda, mas sempre acordo menos
cheia da que foi deitar-se para esta manhã. Ontem, fui dormir com trinta e oito
anos pela última vez. Gostei deles mas queria ter brincado mais. Eu gosto quando
não acaba a brincadeira.
Amanheceu um domingo azul. Recortado pelo verde das montanhas parece até encomenda. O mar também veio com seus escândalos de anil... Só minha mãe não compareceu ao calendário de hoje. Todos os anos ligava e era o mesmo ritual: Filha? Feliz aniversário. Você está quase nascendo. Já estou sentindo as contrações. E gargalhava na brincadeira materna. Me lembro, filha, que era domingo. Eu estava passando batom para ir ver os blocos, o desfile, quando senti a primeira contração. E depois a outra e mais outra... Larguei batom e seu pai me levou direto para a maternidade. Fiquei lá lendo umas revistas que seu pai comprou pra mim. Cê acredita?
Sim, porque foi chegar lá pra neném não dar sinal mais de nascer. Só foi nascer ao meio-dia, a danadinha. Linda! Não é por ser minha filha não, mas nasceu linda. Duas pedrinhas azuis no lugar dos olhos. Ai, parece que estou vendo. Depois é que seus olhos ficaram verdes. Seu pai com você no colo se exibindo pros amigos médicos e enfermeiras. Todo bobo seu pai. E você era a cara dele. O homem chegava tá mole. E eu feliz que só vendo.
Você saiu sem me doer. Quando decidiu, veio. Saiu sem me sacrificar. Lá fora a gente só ouvia a banda da janela, os mascarados à tarde, a gente via. Feliz aniversário, filha!
A poesia de minha mãe era essa. Cotidiana. Costurada por dentro da palavra conversa e da palavra dia. Eu adorava ouvir essa história do meu nascimento pela voz dela e ia a cada ano descobrindo um novo detalhe dentro da narrativa. Aquela voz no meu ouvido a me contar que tinha cheiro vermelho de rouge, parecia um peito bom na minha cara e no meu ouvido.
Hoje é domingo azul de sol e carnaval outra vez. Nem sempre é domingo e carnaval e aniversário acontecem juntos. É só de vez em quando. Hoje é uma dessa vez. E passo batom em mim. Essa bandinha de bairro, bandinha de pracinha com esses senhores tocando “Cidade Maravilhosa” tem um jeito especial de encher meus olhos de lágrimas e ao mesmo tempo partir-me o peito. Vem na boca o gosto de toda a folia na adolescência em Jacaraípe com serpentinas pontuando a história.
Vou pintando os olhos vestindo a fantasia. Aquela conversa de minha mãe era uma
bandinha de carnaval no meu ouvido. Hoje é domingo e aniversário. Minha mãe não
ligou. No meu peito a clarineta, o tarol, o sax, o bumbo, toda a banda inteira
do meu peito toca “Mamãe eu quero.”
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Elisa Lucinda
sábado, 18 de fevereiro de 2017
entre flores e adubos
Se a gente cultiva o bom, o belo, o amoroso – dentro do
possível –, do resto, nestes dias, o país e o mundo se encarregam. Escrevi
aqui, postei no Face, acredito nisso, e me esforço. Mas, vamos admitir, difícil
não dar bola para o noticiário cada dia mais espantoso. Não que a mídia seja
isso, como diria o Trump, ao contrário; percebo jornalistas quase engasgados ou
suspirando ao dar uma lista de loucuras que nos ameaçam, talvez mais do que nós
mesmos supomos.
Mas alienação demais me causaria culpa, este é um momento
esquisito mesmo: calor sufocante, inesperadamente nuvens cor de chumbo fazendo
carrancas no céu, trovoada, chuvarada, ventania e... dourado e azul de novo
rindo de nós. Talvez a mãe natureza também esteja rangendo os dentes. Talvez
isso venha ocorrendo a cada tantos milhares ou milhões de anos, pois sabemos
que as eras glaciais e infernais se alternaram no planeta desde que planeta ele
é. Não me crucifiquem os ambientalistas: sim, eu acredito que nós, predadores e
alienados, atualmente estejamos influindo nisso.
Seja como for, não quero desfiar a ladainha de horrores
políticos que nos afrontam.
(...)
O problema é que crise, empobrecimento, insegurança, cabeças decapitadas, conhecidos assaltados ou mortos logo ali, por exemplo, são coisas muito, muito humanas.
(...)
O problema é que crise, empobrecimento, insegurança, cabeças decapitadas, conhecidos assaltados ou mortos logo ali, por exemplo, são coisas muito, muito humanas.
Desemprego? Humano demais. Pior é que a tudo isso se acrescenta
uma paulatina, cada vez mais evidente, apatia. (...)
Onde a indignação? Onde os panelaços? Onde ruas cheias de manifestantes? Onde o entusiasmo na esperança de conseguirmos mudar alguma coisa?
Onde a indignação? Onde os panelaços? Onde ruas cheias de manifestantes? Onde o entusiasmo na esperança de conseguirmos mudar alguma coisa?
E isso, gente, é o mais triste: a sensação de que não
adianta. Porque perdeu-se aqui no Brasil o mais precioso bem, talvez, da
espécie humana, por mais louca que ela ande: o pudor. A vergonha. Políticos ou
outras autoridades que cometessem alguma gafe séria, ou apresentassem propostas
escandalosas, quase criminosas, costumavam sumir por algum tempo, até que, já
que temos curta memória, voltavam ao cenário lampeiros e faceiros. Agora,
ninguém parece se constranger nem das coisas mais loucas.
Acusados, investigados, delatados, denunciados, presos, ou
que deviam estar presos, se apresentam, esbravejam, repetem incansavelmente que
não sabem de nada, são inocentes, é tudo maldade alheia (ainda não acusam a
mídia como o Trump, mas nunca se sabe quando vão começar). E assim, teimando em
curtir e cultivar o belo, o bom, o amoroso que existem na natureza, na arte e
nas pessoas (não todas, claro), ainda resisto à descrença total que ronda meus
calcanhares, bafeja irônica e sarcástica, rosnando que eu deixe de ser boba,
deixe de postar flores e borboletas e de escrever frases clara ou vagamente
otimistas.
Resisto mais ou menos, entre ânimo e desolação, porque num canteiro
prefiro as flores ao adubo... Mas que está tudo muito esquisito, ah, isso está.
em época de Big Brother todo mundo se torna intelectualmente
avantajado.
Ninguém assiste. Ninguém comenta.
Ninguém jamais sequer, em tempo algum, parou pra ver.
Eu?
Nunca! Você? Jamais!
Estranhamente, muitas pessoas que não admitem sua curiosidade
pela vida alheia praticam a mais absoluta tirania na vida cotidiana: falam da
vida dos outros, trapaceiam, mentem, blefam, mandam pro paredão e o pior, nem
estão concorrendo a 1 milhão e meio.
Melhor fingir demência!
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Cláudia Dornelles
quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017
Peço a Deus um mundo cheio de paz
Peço a Deus que alcance os seus ideais
Peço a Deus que a inveja jamais
Peço a Deus pra sermos todos iguais
Peço a Deus pra te livrar da maldade
Peço a Deus que me dê felicidade
Peço a Deus que se propague a bondade
Peço a Deus amor e prosperidade
De mãos dadas, peito aberto, rumo certo para o bem
Pra lutar contra a maldade que este nosso mundo tem
(...)
cantadas musicais
Nunca fui boa de paquera. Sendo tímida quando garota, não
conseguia sustentar um contato visual. Se olhavam para mim, virava o rosto,
constrangida. E mesmo quando a conversa se iniciava, era uma travação só. A meu
favor, digo que os garotos não eram muito melhores de papo. Falar sobre si
mesmo, quando se é adolescente, equivale a um parto a fórceps. Como dizer abertamente
quem somos, como narrar para alguém o nosso universo privado? Era preciso um
truque, um subterfúgio.
O meu era gravar fitas K-7 (recorram ao Google, crianças) com
minhas músicas preferidas e então dá-las de presente, torcendo para que não
precisasse explicar mais nada: através delas, meu futuro príncipe (sempre
romântica) descobriria por onde passava minha emoção, em que tom eu me
comunicava com meus demônios internos, o que fazia minha imaginação voar, qual
era a trilha sonora da minha intimidade – aquela intimidade que eu estava
disposta a repartir.
Um dólar pelos seus pensamentos. Você também fazia isso?
Pode-se tentar o mesmo tipo de conexão emprestando livros, é
também uma forma de dizer quem somos, mas selecionar pessoalmente cada música,
fazer uma playlist especial para os ouvidos de uma única pessoa costuma ser um
strip-tease bem eficiente – e encabula menos. Tanto funciona, que crescemos e
mantemos o estratagema. Meu ex-marido me seduziu com seu espetacular gosto
musical. A parte mais sofrida da separação foi a divisão dos discos (“pode
ficar com o apartamento, o carro, as filhas, mas os álbuns são meus!”). Acabou
deixando o mais importante comigo, sua amizade. Ainda trocamos dicas e curtimos
o mesmo jazz.
Mas nem sempre tive essa sorte. Se eu não fosse perseverante,
alguns romances não teriam prosperado. Um namorado foi viajar e retornou com um
CD, o primeiro que eu receberia dele. Abri o pacote com o coração aos pulos:
enfim, descobriria o que o comovia. O disco era do Dudu Nobre. Inúmeras mulheres
teriam vibrado, mas, pela cara que fiz, ele tomou a decisão certa: passei a
ganhar flores, o que garantiu a longevidade da relação.
Não faz muito tempo gravei um CD para alguém com quem
começava a sair. Escolhi a dedo alguns blues de Buddy Guy, John Lee Hooker e
outros nomes que combinam com uma noite regada a vinho tinto, mas a reação dele
foi morna como um copo de leite. A pá de cal: dias depois ele me recomendou um
cantor de bolero boliviano. Como é triste o fim de um amor.
Não é obrigatório ter o mesmo gosto musical, mas um
relacionamento que se pretenda sintonizado ganha muito quando ambos conseguem
escutar o que o outro está sentindo.
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Martha Medeiros
Me fez lembrar de
Rubem Alves:
“Para isso existem as escolas: não para ensinar as respostas,
mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra
firme. Mas somente as perguntas nos permitem entrar pelo mar desconhecido.”
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Armandinho,
Rubem Alves,
Tirinhas
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017
coração fixo dos pais
Quando você perde o celular ou ele estraga, entra em pânico.
Não lembra de nenhum número de cor. Você apenas preserva os telefones no
aparelho e não explora mais o raciocínio. A última vez que decorou algo com
devoção foi a tabuada na infância.
Não tem mais a necessidade de anotar na palma suada da mão e
passar a limpo com a ansiedade dos olhos. Não há rascunhos dos códigos.
O que você conhece da vida de seu amor e de sua família está
alojada na pastinha dos contatos. Mesmo o celular da sua esposa e dos seus
filhos estão lá. Vendemos a nossa memória para as operadoras. Recobraremos
alguns números, mas não a ordem exata. Nossos melhores amigos encontram-se
presos no chip. De um instante para o outro, o universo de referências
desaparece e somos combinações de trotes e enganos.
Não existe como solicitar socorro e avisar que ficou sem
comunicação. Mentaliza o desespero dos seus familiares buscando ligar
freneticamente, e o seu celular mortinho. E a sua memória morta junto.
E se dará conta de que o único número que recordará será o
fixo da casa dos pais. Exatamente o número telefônico que nunca mudou em sua
história. Telefonará aos pais para o resgate afetivo de suas raízes.
– Mãe? Mãe? Que bom que está em casa, pode avisar a minha
mulher que estou sem celular.
Engraçado que a mãe sempre está em casa quando você precisa.
É a intuição materna provando a sua força.
Por mais que amadureçamos e nos tornemos independentes,
jamais esqueceremos os pais. É para eles que regressamos quando precisamos de
verdade. É para eles que reivindicaremos cuidados na amnésia e nos recomeços.
Os pais são para sempre, mesmo que a relação seja fundada em brigas. No momento
decisivo, os desentendimentos somem.
O único telefone que lembraremos é o da residência primeira,
a residência onde prometemos um dia não voltar tarde.
O telefone fixo dos pais forma o escapulário nas lembranças
que nos protege do mundo. Impossível de ser apagado ou de ser removido. Nenhuma
tecnologia destrói a voz dos pais ensinando como discar para o endereço.
Lembro nitidamente o número …333411… assim como lembro que
sempre que caía um botão na minha infância, a mãe não pedia para entregar a
roupa. Ela buscava a sua almofada negra de agulhas, sentava em um banquinho em
minha frente e consertava a camisa na hora. Recriava o ventre por alguns
minutos. Eu sentia a linha ziguezagueando próxima da pele. Acho que, no fim,
ela costurou o número do seu telefone em meu corpo para que eu fosse devolvido
são e salvo.
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Fabrício Carpinejar
quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017
táticas para ser visto pelo garçom
Garçom no Rio de Janeiro é como sogro: a princípio, não gosta
de você. Diferentemente de outras cidades onde você senta e é logo visto, lá
você senta e desaparece. Precisa fazer coreografias desesperadas para ser
atendido. Receber o cardápio pode significar a sua morte.
O abandono na mesa trará letal desprestígio. Costuma
significar o fim precoce de um namoro, de um negócio em potencial, de uma
amizade no nascedouro. É uma humilhação levantar a mão inúmeras vezes e jamais
ganhar atenção.
Demorei a compreender a aristocracia do garçom carioca. Ele
não é garçom, nasce maître.
Em todas as minhas experiências botequeiras, apelava para
querido ou amigo, e nada. Não vinha em minha direção. Ele me ignorava. Não
havia como pedir um prato ou uma bebida. Ou seja, não tinha como existir, pois
comer e beber são os gatilhos de qualquer papo.
Até que descobri a santa estratégia: garçom apenas atende bem
quando chamado pelo nome. Perda de tempo assoviar e gritar ei, oi, ui – ele lhe
tratará com capricho ao ser identificado. Descobrir o nome do garçom é o kit de
sobrevivência na noite.
Foi o que fiz na semana passada quando levei Beatriz a um bar
no Leblon. Logo no início, quando ele me alcançou o menu, perguntei quem era e
esbanjei o poder de persuasão.
Devo ter chamado o Alberto mais vezes do que pronunciei o
nome de minha mulher naquela noite. Estava ficando chato, porém a receita
vingou perfeitamente. A cada nova necessidade, assumia uma postura redentora,
de São João Batista a sempre batizar o sujeito no Rio Jordão do meu chope:
– Por favor, Alberto!
– Alberto?
– Gentileza, Alberto?
Ele tornou-se o meu Messias dos bolinhos de bacalhau e da
porção de fritas. Entre falar o seu nome e fazer o pedido, não demorava nem 10
segundos. Ele corria entre as mesas com larga vantagem entre os seus colegas,
um verdadeiro Usain Bolt das bandejas.
Já comemorava o êxito da fórmula, já imaginava escrevendo um
livro de autoajuda revelando a chave do sucesso da boemia, já me via na lista
dos mais vendidos da revista Veja, mas chegou a conta e tratei de bancar o
canastrão diante do 10% opcional:
– É obrigatório, Alberto, pelo seu excelente atendimento.
– Obrigado, senhor, só que meu nome é Roberto.
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Fabrício Carpinejar
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017
sobre taças e cálices. Ou: o que o casamento me ensinou sobre o amor
Sempre que me convidam a opinar sobre casamento,
inevitavelmente me vem à cabeça taças de champanhe e cálices de vinho. Essas
taças e cálices são os que ganhamos, no dia do nosso casamento. Na lista de
casamento, as taças e os cálices são os meus preferidos. Claro que geladeiras,
são um presentão. E que presentinhos como Tupperwares não são incríveis no
quesito originalidade mas são práticos, necessários e bem vindos. Mas quem dá
taças e cálices não está se preocupando com a vida prática. Está, na verdade, investindo
na comemoração, na alegria, no momento especial, no tintim.
Eles despertam, usaram os lençóis, presentes da vovó. Tomam
café, xícaras, presente de uma das sogras. Tem um longo dia de trabalho. Voltam
pensando o que fazer como o bendito fondue que ganharam da tia. Ao chegar,
tomam banho, com as toalhas presente de um dos sogros. Jantam (usam as
travessas da cunhada), colocam um CD (que era de um deles antes do casamento),
acendem um incenso (presente que ela tinha desde que namorava outro cara) e
bebem vinho.
Finalmente, dão atenção um ao outro, chegando a si e ao
outro. Pois é neste instante, breve, se pensarmos nas muitas horas do dia, que
o casal está convivendo com o presente de um grande amigo do peito: os cálices.
Se o vinho e o papo forem bons, provavelmente os lençóis, presente da vovó,
serão bem utilizados em seguida. E o ciclo, no próximo dia, se repetirá, até um
novo momento de paz, este, quem sabe, com champagne e outro presente de uma
grande amiga do peito: as taças.
Taças e cálices são o que faz um casamento, não ser, argh, um
matrimônio. Nem a mulher ser, argh, uma esposa.
Mas se você está pensando, que o casamento me faz pensar em
taças e cálices porque acredito que uma vida a dois não resiste sem doses de
carinho, sem momentos de delicadeza, sem intervalos amorosos. Isso é verdade.
Mas não é toda a verdade.
O casamento também me faz pensar em taças e cálices porque os
casamentos duram, duram, duram, e... um dia, essas taças e cálices começam a
quebrar. Sim, quebra um em um jantar à luz de velas, outra em uma festa ,
quebra outro, quando os dois, meio bebados se caminham até o quarto, outro, por
descuido na pia. E outros vários quando chegam os filhos. Assim, a gente vê,
ali, no armário, a passagem do tempo. Nossa coleção de copos vai sofrendo
dramáticas e terríveis baixas. (As fotos também ficam desbotadas a cada dia.) E
ali, em frente ao armário, a gente se pega perguntando: apenas as taças e
cálices não resistirão à longevidade do casamento? Nosso frágil amor resistirá?
Quebramos, nós também, eu um cálice, ela uma taça? Será que um homem, devido ao
tempo, implacável, exige que para continuar cônjuge, seja resistente e opaco
feito tupperware? E que a mulher seja forte e fria como uma geladeira?
Não.
Sinceramente, acho que não.
Taças e cálices ensinam que a fragilidade é bem-vinda. E mais
do que bem-vinda: é fundamental. É bom que, com o tempo as coisas quebrem mesmo
que sejam coisas muito queridas por nós. Cacos, são didáticos.
As pessoas costumam dizer que perdem as ilusões a medida que
o tempo passa. E falam isso, como se fosse ruim se desiludir. Perder ilusões é
sabedoria. Ilusão é truque. É dolo. É mentira. Não acredita? Olhe no
dicionário. Ou... para a vida. Amor é amor quando você prefere mais o seu homem
(bronzeado) do que um sonho (dourado). E é isso que o casamento ensina sobre o
amor. Ou ao amor. Quando você perde ilusões, ganha na vida real. Em vez de
perseguir uma quimera, descobre, que há tempo, chegou a um bom lugar: A sua
própria casa.
Por isso, o tema casamento, me remete a taças e cálices.
Esses copos cheram a nossa vida em um dia de celebração. Depois, se tornaram
parceiros, sempre que a celebração, não importando o dia, voltava a tomar conta
das nossas vidas. E então, esses sábios copos, despediram-se na hora certa, a
tempo de deixar bem claro que a celebração, afinal, não estava neles. Mas em
nós, marido e mulher. A ponto, de hoje em dia, marido e mulher estarem
completamente convencidos de que é preciso comprar taças e cálices novos para a
casa. Os deuses estão exigindo novos sacrifícos desse casal. Precisamos fazer
novos brindes, quebrar novas taças, estraçalhar novos cálices. Copos, tremei!
E como casamento remete a taças e cálices, casamento acaba me
remetendo a transparências. Faz sentido! Quanto mais tempo duas pessoas vivem,
convivem, mais elas ficam transparentes uma para a outra. E isso não é ruim.
Isso é amor!
(Marcelo Pires)
A mãe aflitíssima estava.
Ela cuidava de todos:
Lavava, passava e cozinhava
para todos.
Porém à noite a mãe ainda encontrava
uma horinha para seu violino.
Ela tocava para nós Vivaldi.
E a gente ficava pendurado em lágrimas.
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Manoel de Barros
terça-feira, 7 de fevereiro de 2017
ensaio sobre a amizade
“Que qualidade primeira a gente deve esperar de alguém com
quem pretende um relacionamento? Perguntou-me o jovem jornalista, e lhe
respondi: aquelas que se esperaria do melhor amigo. O resto, é claro, seriam os
ingredientes da paixão, que vão além da amizade. Mas a base estaria ali: na
confiança, na alegria de estar junto, no respeito, na admiração. Na
tranqüilidade. Em não poder imaginar a vida sem aquela pessoa. Em algo além de
todos os nossos limites e desastres.
Talvez seja um bom critério. Não digo de escolha, pois amor é
instinto e intuição, mas uma dessas opções mais profundas, arcaicas, que a
gente faz até sem saber, para ser feliz ou para se destruir. Eu não quereria
como parceiro de vida quem não pudesse querer como amigo. E amigos fazem parte
de meus alicerces emocionais: são um dos ganhos que a passagem do tempo me
concedeu. Falo daquela pessoa para quem posso telefonar, não importa onde ela
esteja nem a hora do dia ou da madrugada, e dizer: ‘Estou mal, preciso de
você’. E ele ou ela estará comigo pegando um carro, um avião, correndo alguns
quarteirões a pé, ou simplesmente ficando ao telefone o tempo necessário para
que eu me recupere, me reencontre, me reaprume, não me mate, seja lá o que for.
Mais reservada do que expansiva num primeiro momento, mais
para tímida, tive sempre muitos conhecidos e poucas, mas reais, amizades de
verdade, dessas que formam, com a família, o chão sobre o qual a gente sabe que
pode caminhar. Sem elas, eu provavelmente nem estaria aqui. Falo daquelas
amizades para as quais eu sou apenas eu, uma pessoa com manias e brincadeiras,
eventuais tristezas, erros e acertos, os anos de chumbo e uma generosa parte de
ganhos nesta vida. Para eles não sou escritora, muito menos conhecida de
público algum: sou gente.
A amizade é um meio-amor, sem algumas das vantagens dele mas
sem o ônus do ciúme – o que é, cá entre nós, uma bela vantagem. Ser amigo é rir
junto, é dar o ombro para chorar, é poder criticar (com carinho, por favor), é
poder apresentar namorado ou namorada, é poder aparecer de chinelo de dedo ou
roupão, é poder até brigar e voltar um minuto depois, sem ter de dar explicação
nenhuma. Amiga é aquela a quem se pode ligar quando a gente está com febre e
não quer sair para pegar as crianças na chuva: a amiga vai, e pega junto com as
dela ou até mesmo se nem tem criança naquele colégio.
Amigo é aquele a quem a gente recorre quando se angustia
demais, e ele chega confortando, chamando de “minha gatona” mesmo que a gente
esteja um trapo. Amigo, amiga, é um dom incrível, isso eu soube desde cedo, e
não viveria sem eles. Conheci uma senhora que se vangloriava de não precisar de
amigos: ‘Tenho meu marido e meus filhos, e isso me basta’. O marido morreu, os
filhos seguiram sua vida, e ela ficou num deserto sem oásis, injuriada como se o
destino tivesse lhe pregado uma peça. Mais de uma vez se queixou, e nunca tive
coragem de lhe dizer, àquela altura, que a vida é uma construção, também a vida
afetiva. E que amigos não nascem do nada como frutos do acaso: são cultivados
com… amizade. Sem esforço, sem adubos especiais, sem método nem aflição:
crescendo como crescem as árvores e as crianças quando não lhes faltam nem luz
nem espaço nem afeto.
Quando em certo período o destino havia aparentemente tirado
de baixo de mim todos os tapetes e perdi o prumo, o rumo, o sentido de tudo,
foram amigos, amigas, e meus filhos, jovens adultos já revelados amigos, que
seguraram as pontas. E eram pontas ásperas aquelas. Aguentei, persisti, e
continuei amando a vida, as pessoas e a mim mesma (como meu amado amigo Érico
Veríssimo, ‘eu me amo, mas não me admiro’) o suficiente para não ficar amarga.
Pois, além de acreditar no mistério de tudo o que nos acontece, eu tinha
aqueles amigos. Com eles, sem grandes conversas nem palavras explícitas,
aprendi solidariedade, simplicidade, honestidade, e carinho.
Nesta página, hoje, sem razão especial nem data marcada, estou homenageando aqueles, aquelas, que têm estado comigo seja como for, para o que der e vier, mesmo quando estou cansada, estou burra, estou irritada ou desatinada, pois às vezes eu sou tudo isso, ah!, sim. E o bom mesmo é que na amizade, se verdadeira, a gente não precisa se sacrificar nem compreender nem perdoar nem fazer malabarismos sexuais nem inventar desculpas nem esconder rugas ou tristezas. A gente pode simplesmente ser: que alívio, neste mundo complicado e desanimador, deslumbrante e terrível, fantástico e cansativo. Pois o verdadeiro amigo é confiável e estimulante, engraçado e grave, às vezes irritante; pode se afastar, mas sabemos que retorna; ele nos aguenta e nos chama, nos dá impulso e abrigo, e nos faz ser melhores: como o verdadeiro amor.”
Nesta página, hoje, sem razão especial nem data marcada, estou homenageando aqueles, aquelas, que têm estado comigo seja como for, para o que der e vier, mesmo quando estou cansada, estou burra, estou irritada ou desatinada, pois às vezes eu sou tudo isso, ah!, sim. E o bom mesmo é que na amizade, se verdadeira, a gente não precisa se sacrificar nem compreender nem perdoar nem fazer malabarismos sexuais nem inventar desculpas nem esconder rugas ou tristezas. A gente pode simplesmente ser: que alívio, neste mundo complicado e desanimador, deslumbrante e terrível, fantástico e cansativo. Pois o verdadeiro amigo é confiável e estimulante, engraçado e grave, às vezes irritante; pode se afastar, mas sabemos que retorna; ele nos aguenta e nos chama, nos dá impulso e abrigo, e nos faz ser melhores: como o verdadeiro amor.”
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