"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



domingo, 30 de maio de 2021

foice pingando lágrimas

 



O assunto parece mais do que esgotado, mas seguidamente ainda nos perguntamos: como será a humanidade depois da pandemia que se arrasta e se alastra? Não sei. Acho que ninguém sabe. Alguém quer saber ou melhor nem pensar?


Pois a pandemia, a grande Peste do século, ainda está em plena atividade ceifando centenas de milhares de vidas humanas com sua grande foice, nada dourada, mas pingando sangue e lágrimas. Alguém me diz: Só na tua cabeça de romancista, um quadro tão horrível”.


Pois é, talvez acabemos indiferentes a tudo isso enquanto não atingir alguém próximo, pai, mãe, filho, amigo ou colega. Porque, em quantidades tão espantosas, vamos ficando calejados, o que é trágico e triste.


A Senhora Morte vai se banalizar?


Lembro minha infância encantada numa cidade do Interior, onde os sinos da igreja anunciavam para a comunidade que algum deles tinha morrido.


A impressionante memória me segue e comove até hoje quando penso: batidas espaçadas, lentas em tom grave, foi-se um adulto. Som triste e melodioso, quase musical, foi-se uma criança. E naturalmente na comunidade todos se perguntavam, telefonavam, se entristeciam.


Eu mais me impressionava com a ideia da morte de uma criança.Foi brincar nas nuvens com os anjinhos, me consolavam. Éramos felizes acreditando em anjinhos fazendo cambalhotas sobre as nuvens brancas e fofas.


Não há nenhum encanto na carnificina atual, que parece que nem mesmo um país bem mais civilizado do que esta nossa pátria amada resolveu inteiramente. E estaremos ficando escaldados? Ou brincamos por negação e medo, o que é mais provável? Outro dia comentei que não aguentava mais nas tevês as imagens de agulhas enfiadas em braços. Alguém se escandalizou:Estão salvando vidas!”.


Tinham razão, fiquei meio constrangida. Então viva a agulhas e braços,melhor que bundas”, comentou ainda um gaiato na sala. Ah sim, graças a Deus.


Então, às vezes, sobrecarregados de preocupação e ansiedade, brincamos com o horror da doença, do despreparo, da politicagem, das disputas, da incompetência e impotência ou desinteresse. E morre gente, e morre gente. Fora os sequelados, e as famílias, onde a dor se multiplica. Pois família é para isso também: dobradas alegrias, dobrados desgostos, dobradas preocupações, e intrigas, e amores, e bondades e pequenas maldades - porque somos tão humanos.


Talvez, voltando ao assunto inicial, vamos acabar: mais duros, frios, xenófobos e egoístas. Ou - quero ser otimista - mais cuidadosos, mais atentos, mais amigos, mais amorosos? Cuidando mais de nós mesmos, por um bom tempo ainda máscara, álcool-gel, sabonete, nada de aglomeração e apertos grupais? Medo: será que ele já teve a doença? Já foi vacinado? Mas temos vergonha de perguntar. Quanto bom afeto desperdiçado.


Esse deverá ser, talvez, o pior legado da Peste, além de mortes e sequelas: o afastamento entre pessoas que poderiam se amar.


Será assim? Nem ideia. Chato e preocupante, cansativo, e uma crônica em que não sei bem o que dizer.


Alguém sabe???


 


Uso a palavra para compor meus silêncios.

Não gosto das palavras

fatigadas de informar.

Dou mais respeito

às que vivem de barriga no chão

tipo água pedra sapo.

Entendo bem o sotaque das águas

Dou respeito às coisas desimportantes

e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões.

Prezo a velocidade

das tartarugas mais que a dos mísseis.

Tenho em mim um atraso de nascença.

Eu fui aparelhado

para gostar de passarinhos.

Tenho abundância de ser feliz por isso.

Meu quintal é maior do que o mundo.

Sou um apanhador de desperdícios:

Amo os restos

como as boas moscas.

Queria que a minha voz tivesse um formato

de canto.

Porque eu não sou da informática:

eu sou da invencionática.

Só uso a palavra para compor meus silêncios.



 

 


Certamente a tua bondade

e o teu amor

ficarão comigo enquanto eu viver.

E na tua casa, ó SENHOR,

morarei todos os dias da minha vida.


Salmos 23:6 / NTLH

sábado, 29 de maio de 2021

 


Te desejo mais que um dia feliz. Desejo saúde, porque sem saúde a vida se sacrifica.

Te desejo sorte, porque sem intuição, a sorte nos abandona. Te desejo amparo, porque sem colo a vida torna-se hostil e dolorosa.

Te desejo lealdade, porque, sem ela, a fraternidade é enfeitada por enganos.

Te desejo boas escolhas, porque, sem elas, não se recuperam renúncias intencionais.

Te desejo bons amigos, porque, sem eles, os conselhos tornam-se duvidosos.

Te desejo amor verdadeiro, porque, sem ele, qualquer afago compra até afeto travestido de consolo.

Te desejo, por fim, mas não por último, Deus, porque, sem Ele, a cabeça pifa, o dinheiro míngua e a dignidade nos abandona.


Marina, hoje todos os parabéns são pra você.

Feliz aniversário!


 


Uns chamam depedra no caminho; já eu entendo isso como uma resposta da vida, dizendo: - Pausa, respira, reflete melhor sobre as tuas escolhas, pondera. 

Aprende, moça: a pedra é só uma desculpa que o caminho encontrou de chamar a tua atenção.

 

Bibiana Benites


 

 


Amada, tenho pedido a Deus que você vá bem em tudo e que esteja com boa saúde, assim como está bem espiritualmente.


3 João 1:2 / NTLH


quinta-feira, 27 de maio de 2021




A gente tem sentido tanta saudade

Das coisas simples

Dos almoços em família

Dos abraços apertados

Dos encontros inusitados

Das conversas com as amigas

que nos rendem boas histórias e inacreditáveis ressacas

A gente tem sentido tanta saudade

Das coisas leves

De viajar sem rumo

De navegar sem prumo

De organizar menos, improvisar mais

De esperar o Uber com uma cerveja no colo e o sapato na mão

A gente tem sentido tanta saudade

De não se sentir louca

De não se indignar

De não xingar o poder

De não dizernão é possível

umas dez vezes por dia

A gente tem sentido tanta saudade

De não chorar vendo jornal

De não ficar tão triste

De não se sentir incapaz

diante de tanto absurdo e descaso

A gente tem sentido tanta saudade

De não ter medo

De não ter neura

De não passar mal de ansiedade

De não passar álcool em tudo e sempre achar que está assintomático.

A gente tem sentido tanta saudade

de viver do jeito que já foi...

A gente tem sentido saudade...

Tanta! O tempo todo.


(Que dias melhores cheguem, em breve).



voo livre

 


Não queiram que eu escreva só coisas românticas, poéticas, docezinhas. Minha alma de momento está em fúria, em conflito, bradando por paz, saúde, algum conforto nesta fase em que tantos sofrem, morrem, são atropelados pelo que chamo Doença do Diabo, enquanto outros conseguem manter suas vidas normais, praia, festa, viagens. Ou sossego. Quero algum horizonte.


Sei que é culpa de ninguém essa espécie de apocalipse que trava o mundo e mata gente. Isso é um lamento meu, talvez porque depois de um ano de isolamento quase total, vendo pouco a família, saindo quase nunca de casa a não ser para me transportar, mascarada ealcoolizada, da casa de Porto Alegre para a casinha de Gramado, estou, como todos, me cansando. Sem ver luz no fim do túnel, ou um vaga-lume débil, ou, como diz alguém menos otimista, o que se enxerga é a luz de um trem que vem vindo.


O que será de nós depois de acalmada essa onda de doença e morte no mundo, com países civilizados seguidamente tão desamparados como nós, os do rabinho da civilização, por geografia e cultura?


Ninguém sabe. Há quem diga que todos vamos melhorar, mais solidários, mais amigos, mais generosos. Tenho minhas dúvidas. O horror ao diferente cresce, com o medo do que o outro possa me transmitir. Seremos então mais xenófobos? Muito possível. Mais fragilizados, mais pobres, mais raivosos, em geral. Penso assim. Claro que os bons, individualmente, talvez se tornem melhores pela compaixão, pelo sofrimento, e os maus se tornem piores pela raiva, sentimento de injustiça, por que eu, por que eu? - esquecendo que sofre o planeta.


Não tenho nenhuma ilusão de que tudo ficará bem, ounormal, em algum tipo de novo normal que inventaremos atabalhoadamente, sem receita, sem comando, sem clareza de visão. Sem projeto. Ou sim? Teremos de construir um novo modo de ser e pensar, de viver e conviver suportável, menos apavorado, menos nervoso, e mais responsável - porque muitos ainda não assumem responsabilidade alguma, e vivem como se tudo fosse praia, balada, o que é ruim apenas sendo maldade dos ricos, invenção da imprensa, coisas assim.


Quando estou escrevendo esta coluna sem muita alegria nem graça, mais uma notícia me chega: morre, pela Doença do Diabo chamada Covid, mais uma amiga linda, generosa, alegre, que fará muitíssima falta à família e às amizades. Sofrimento duro, semanas de hospital, aparentemente um contágio que atingiu a família inteira, ela escolhida pelo Destino para não aguentar, e partir. Quantos mais virão?


Antes de assumir esta coluna, eu tinha acabado de traduzir um trechinho do livro de Hermann Hesse que devo terminar em breve, onde ele fala da morte do pai, a quem contemplava na antiga casa paterna, vendo-o tão calmo, impassível, ausente: A cordinha se rompeu, e o pássaro voou, livre”.


Na literatura tudo é bem bonito. Na verdade, corta o coração, que sangra... às vezes para sempre.


 


Faz forte ao cansado e multiplica as forças ao que não tem nenhum vigor.

 

Isaías 40:29


segunda-feira, 24 de maio de 2021


#dia do café


 

Se nos lembrássemos

todos os dias

que podemos

perder alguém subitamente,

nós amaríamos

mais intensamente e livremente,

e seriamos mais tolerantes e compreensivos. 

Ninguém pode afirmar que não há nada a perder porque tudo pode ser sempre perdido.


Madre Teresa de Calcutá


cafezinho

 


Café é emoção. Café é a lembrança dos melhores dias da convivência com os pais e irmãos, é herdar hábitos, é carregar princípios. Os dias mais duros de qualquer vida tiveram o consolo de um café. Os dias mais alegres de qualquer vida tiveram a recompensa de um café.

 

No gole de um café, existe uma correnteza de cenas de amizade, de ternura, de conselhos, de apoio e de juramentos.

 

Café lembra receber visita, casa cheia, sobremesa.  Café estende o tempo para um pouquinho mais tarde.

 

Café engana os horários, os prazos, os compromissos. Ainda mais se é um cafezinho. Ele se faz de pequeno e inofensivo para deixar as emoções ainda maiores.

 

Ninguém é capaz de negar um cafezinho. A oferta, o carinho, a amizade de um cafezinho. O cafezinho é como um abraço, é como um aperto de mão, não se diz não. É um crime dizer não. É uma ofensa dizer não. Oferecer cafezinho é avisar: eu gosto de você. Oferecer cafezinho é avisar: eu fui com a sua cara.

 

O cafezinho é sempre sinal de que a conversa vai continuar, de que o almoço não acabou, de que ainda é cedo para se despedir. O cafezinho é a saideira dos amigos à luz do sol, a saideira dos sóbrios.

 

Já a cafeteira faz barulho porque chama a fome. Tem o apito de uma chaleira dentro de si para chamar a fome. O café chama bolacha-maria. Quem não fui criança para mergulhar a imensa bolacha no café? O café chama pão aquecido. Quem não foi adolescente para sujar a asa da xícara com manteiga? O café chama chocolate. Quem não se apaixonou para dar o pequeno acompanhamento para a sua namorada, mesmo louco para comer?

 

O primeiro encontro não será um chopp, um cinema, uma balada, um jantar, mas um café:Vamos tomar um café?O convite é despretensioso e não assusta, é um convite entre a amizade e a sedução, entre a educação e o envolvimento.

 

Tudo pode acontecer quando se toma um café junto: casamento começa com o café, filhos tem a sua linha de tempo iniciada com o café.

 

O café é a porta das primeiras palavras. É a janela das primeiras juras. É o primeiro passo da boca para o beijo. Quantos firmaram uma relação com o sabor de café nos lábios? Não o sabor de quem está sonhando, o sabor de quem finalmente acordou para a vida de alguém.

 

A intimidade surge ao descobrir o modo que cada um pede o seu café. Com leite, curto, longo, forte, fraco. É a primeira informação que se descobre do outro e que se prolonga pela vida inteira.

 

Casais que se amam medem o tempo de convivência por colherinhas. Um sabe do outro exatamente quantas colheres de açúcar precisa. Ou quantas gotas de adoçante.

 

Eu reverencio o amor quando a esposa serve o marido e o marido serve a esposa e ambos não perguntam quantas colheres ou gotas pôr. Conhecem de cor.

 

Eu reverencio a rotina, que nunca é repetir o que não se gosta, mas repetir todo o dia o que se gosta muito.


#dia nacional do café

 


Senhor, tem misericórdia de nós; pois em ti esperamos!

Sê tu a nossa força cada manhã, nossa salvação na hora do perigo.

 

Isaías 33:2


segunda-feira, 17 de maio de 2021


 

#dia internacional contra a homofobia


é gay? não é gay?

 



Dezessete de maio é o Dia Internacional da Luta Contra a Homofobia. Em 1990, neste dia, a homossexualidade deixou de ser considerada doença pela Organização Mundial de Saúde. Bravo! Trinta e um anos atrás nos tornamos menos ignaros. O que será que celebraremos nos próximos 30?


Exercício de futurologia: acho que até mesmo antes de 2050, nosso vocabulário irá mudar. Não sei você, mas eu já começo a achar obsoleto designar alguém como gay. Nada contra usar a expressão como um adjetivo divertido (esta camisa é muito gay), mas não acredito que continuará classificando a sexualidade de uma pessoa, diferenciando-a de outras.


Sei de mulheres que foram casadas com homens, tiveram filhos, se separaram, aí namoraram uma mulher, separaram de novo, e por ora estão muito bem sozinhas, até a próxima paixão. Sei de garotos que ficaram com outros garotos e hoje estão casados com mulheres. Conheço mulheres héteros que já se envolveram com outra mulher em alguma ocasião furtiva, mas continuam preferindo viver com homens. Parágrafo muito promíscuo? Nem tanto, caso se esteja disposto a enxergar e reconhecer o que acontece ao redor.


Os exemplos acima não são de pessoas sem Deus no coração. Entre eles, pode estar o médico que atende seu pai, pode estar a engenheira que está construindo sua casa, pode estar a vizinha que reza ao seu lado na missa, pode estar sua prima do interior - ela mesma, tão quietinha. Uma pena não termos o costume de conversar mais sobre sexo.


Minha experiência, até aqui, é exclusivamente hétero, mas observo a vida. Leitura, teatro, cinema, viagens, nada disso é entretenimento, apenas, e sim o combustível que expande nossa mente, que traz compreensão sobre a existência humana. E me parece cada dia mais claro que nascemos todos bissexuais. Poderíamos sentir prazer transando tanto com homens quanto com mulheres, mesmo estando bem satisfeitos em atender apenas nossa atração predominante.


Trago o assunto à reflexão, sem certeza de nada, mas aberta aos movimentos do mundo. Nunca considerei a homossexualidade uma escolha, e sim uma condição genética que envolvia diversos fatores - porém, hoje, penso que a escolha pode ser também um desses fatores, no sentido de opção pela liberdade dos sentimentos, venham de onde vierem. Sendo assim, será que continuaremos rotulando alguém como sendo exclusivamente isso ou aquilo? Quem sabe, por fim, cada um cuidará da própria vida afetiva e sexual, sem dedicar-se à patrulha, agressão e discriminação dos demais?


Essa sou eu imaginando a sociedade daqui a 30 anos, com pouca probabilidade de confirmar in loco se acertarei nos prognósticos. Mal sei se escapo viva desse perverso 2021.


 



Faz da tua casa uma festa!

Ouve música, canta, dança...


Faz da tua casa um templo!

Reza, ora, medita, pede, agradece...


Faz da tua casa uma escola!

Lê, escreve, desenha, pinta, estuda, aprende, ensina...


Faz da tua casa uma loja!

Limpa, arruma, organiza, decora, muda de lugar, separa para doar...


Faz da tua casa um restaurante!

Cozinha, prova, cria, cultiva, planta...


Enfim...

Faz da tua casa

Um local criativo de amor.


 


Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre um monte.

 

Mateus 5:14

domingo, 16 de maio de 2021

em tempos de crise

 


Em tempos como este, de várias crises sobrepostas, predominando agora mundialmente a covid, e no Brasil tantas mais, política, econômica, não tenho, não temos nós, colunistas, em geral, escrito coisas muito róseas.


Vai daí que uma velha amiga, dos tempos de colégio, me liga carinhosamente pedindo que eu escrevacoisas mais alegres, para animar as pessoas, pois estamos todos muito pra baixo”.


Concordo com estarmos pra baixo, ou por baixo, ou de baixo-astral, porque as notícias gerais, e experiências pessoais, não estão para cantar em roda de samba como certo prefeito (não o nosso) em dias recentes, sem máscara. Depois pediu desculpas, o que começa a ser rotina, a gente faz uma besteira e se desculpa.


Estamos, pra variar, em dois campos opostos: nem de esquerda e direita (ou sim, isso está incluído?), mas pró e contra vacina, confirmando ou negando covid, enquanto a Peste assola o mundo e nos leva aos bandos, manadas, para o lado de lá - que espero seja melhorzinho, quero acreditar, porque hoje tenho mais pessoas amadas naqueles pagos, e talvez sem muita demora também ande por lá.


De modo que, queridíssima amiga e ex-colega de escola, não escrevo nada muito alegre porque acho que, se temos voz, nós que escrevemos e publicamos, temos também o “dever” nada agradável de alertar. Se cuide, se vacine, use máscara, não aglomere... mesmo que autoridades, máximas e mínimas, façam tudo isso com a maior naturalidade.


Devo dizer que aos poucos não aguento mais palavras como aglomeração, máscara, álcool-gel. Estamos em dias de luto, preocupação, cansaço, fadiga mesmo, por exemplo quem como eu, que, considerada de altíssimo risco, sonho com família reunida, beijos, abraços, risadas, alegria, ou almoço com amigas no lugar preferido. Há mais de ano, raramente saio de casa, mascarada, entro no elevador, entro no meu carro (lá tem garrafinha de álcool) e dirijo até nossa casinha de Gramado, bem afastada da cidade, condomínio com muita natureza, onde parece que moramos no mato mesmo.


Um amigo certa vez me falou daqueles diasem que até sair da cama e escovar os dentes é um ato heróico”. Ele falava de um momento pessoal trágico, mas de modo geral é mais ou menos isso, vontade de cobrir a cabeça com o lençol e esperar que alguém abra a porta sem bater, quase gritando,passou! passou! não tem mais pandemia!!”. E teremos de reaprender a ser gente, a ser amigo e amante, a conviver, a abraçar, a curtir a vida.


No meu caso particular, seriam aqueles dias em que eu adoraria ficar escondida entre os lençóis, até que meu filho perdido batesse na porta e chamasse com seu vozeirão, que é isso, dona Lya, levanta e vem tomar café comigo! Cheguei do outro lado do mundo pra te abraçar!”.


Como isso não acontece, a gente levanta, toma café com o marido, ou os filhos se ainda estão em casa, e tenta animar o dia de todos - sem muita palhaçada por favor, e sem ainda ver as notícias. Sim, está chato, está triste, mas aqui e ali os amores se manifestam, as amizades são quase amorosas, porque todos estamos carentes, e a gente, na frente da janela, respira fundo e pensa, ainda estamos vivos, ainda não estamos doentes, vamos curtir aquela formação de nuvens gordinhas e brancas inocentes... ou curtir o horizonte escuro, se, como eu, amamos uma boa tempestade.




 

 


Ser sensível nesse mundo requer muita coragem. Muita. Todo dia. Esse jeito de ouvir além dos olhos, de ver além dos ouvidos, de sentir a textura do sentimento alheio tão clara no próprio coração e tantas vezes até doer ou sorrir junto com toda sinceridade. Essa sensação, de vez em quando, de ser estrangeiro e não saber falar o idioma local, de ser uma espécie de sobrevivente de uma civilização extinta. Essa intensidade toda em tempo de ternura minguada. Esse amor tão vívido em terra em que a maioria parece se assustar mais com o afeto do que com a indelicadeza. Esse cuidado espontâneo com os outros. Essa vontade tão pura de que ninguém sofra por nada. Esse melindre de ferir por saber, com nitidez, como dói se sentir ferido.


Ser sensível nesse mundo requer muita coragem. Muita. Todo dia. Essa saudade, que faz a alma marejar, de um lugar que não se sabe onde é, mas que existe, é claro que existe. Essa possibilidade de se experimentar a dor, quando a dor chega, com a mesma verdade com que se experimenta a alegria. Essa incapacidade de não se admirar com o encanto grandioso que também mora na sutileza. Essa vontade de espalhar buquês de sorrisos por aí, porque os sensíveis, por mais que chorem de vez em quando, não deixam adormecer a ideia de um mundo que possa acordar sorrindo. Pra toda gente. Pra todo ser. Pra toda vida.


 


Feliz é o homem que persevera na provação, porque depois de aprovado receberá a coroa da vida que Deus prometeu aos que o amam”.

 

(Tiago 1:12)

sábado, 15 de maio de 2021


#dia da família
 

parente e família

 


Sempre me emociono quando reparo o quanto filhos adotivos passam a se parecer com os seus responsáveis. Ninguém diz que foram adotados: o mesmo olhar, o mesmo andar, a mesma forma de soletrar a respiração. Há um DNA da ternura mais intenso do que o próprio DNA. Os traços mudam conforme o amor a uma voz ou de acordo com o aconchego de um abraço.

 

Não subestimo a força da convivência. Família é feita de presença mais do que de registro. Há pais ausentes que nunca serão pais, há padrastos atentos que sempre serão pais.

 

Não existem pai e mãe por decreto, representam conquistas sucessivas. Não existem pai e mãe vitalícios. A paternidade e a maternidade significam favoritismo, só que não se ganha uma partida por antecipação. É preciso jogar dia por dia, rodada por rodada. Já perdi os meus filhos por distração, já os reconquistei por insistência e esforço.

 

Família é uma coisa, ser parente é outra. Identifico uma diferença fundamental. Amigos podem ser mais irmãos do que os irmãos ou mais mães do que as mães.

 

Família vem de laços espirituais; parente se caracteriza por laços sanguíneos. As pessoas que mais amo no decorrer da minha existência formarão a minha família, mesmo que não tenham nada a ver com o meu sobrenome.

 

Família é chegada, não origem. Família se descobre na velhice, não no berço. Família é afinidade, não determinação biológica. Família é quem ficou ao lado nas dificuldades enquanto a maioria desapareceu. Família é uma turma de sobreviventes, de eleitos, que enfrentam o mundo em nossa trincheira e jamais mudam de lado.

 

Já parentes são fatalidades, um lance de sorte ou azar. Nascemos tão somente ao lado deles, que têm a chance natural de se tornarem família, mas nem todos aproveitam.

 

Árvore genealógica é o início do ciclo, jamais o seu apogeu. Importante também pousar, frequentar os galhos, cuidar das folhagens, abastecer as raízes: trabalho feito pelas aves genealógicas de nossas vidas, os nossos verdadeiros familiares e cúmplices de segredos e desafios.

 

Dividir o teto não garante proximidade, o que assegura a afeição é dividir o destino.


 


Filho meu, não te esqueças dos meus ensinos, e o teu coração guarde os meus mandamentos; porque eles aumentarão os teus dias e te acrescentarão anos de vida e paz.

 

Provérbios 3:1-2