Essa é uma manifestação típica do
nosso tempo, contagiosa e difícil de curar porque se alimenta da nossa
fragilidade, do quanto somos impressionáveis, e da força do espírito de rebanho
que nos condiciona a seguir os outros. Eu tenho de fazer o que se espera de
mim. Tenho de ambicionar esses bens, esse status, esse modo de viver – ou serei
diferente, e estarei fora.
Temos muito mais opções agora do que
alguns anos atrás, as possibilidades que se abrem são incríveis, mas escolher é
difícil: temos de realizar tantas coisas, são tantos os compromissos, que nos
falta o tempo para uma análise tranquila, uma decisão sensata, um prazer
saboreado.
A gente tem de ser, como escrevi
tantas vezes, belo, jovem, desejado, bom de cama (e de computador). Ou a gente
tem de ser o pior, o mais relaxado, ou o mais drogado, o chefe da gangue, a
mais sedutora, a mais produzida. Outra possibilidade é ter de ser o melhor pai,
o melhor chefe, a melhor mãe, a melhor aluna; seja o que for, temos de estar
entre os melhores, fingindo não ter falhas nem limitações. Ninguém pode se
contentar em ser como pode: temos de ser muito mais que isso, temos de fazer o
impossível, o desnecessário, até o absurdo, o que não nos agrada – ou estamos fora.
A gente tem de rir dos outros,
rebaixar ou denegrir nem que seja o mais simples parceiro de trabalho ou o
colega de escola com alguma deficiência ou dificuldade maior. A gente tem de aproveitar o mais que puder, e
isso muitos pais incutem nos filhos: case tarde, aproveite antes! (O que
significa isso?) A gente tem de beber em preparação para a balada, beijar o
maio número possível de bocas a cada noite, a gente tem de.
A propaganda nos atordoa: temos de
ser grandes bebedores (daquela marca de bebida, naturalmente), comprar o carro
mais incrível, obter empréstimos com menores juros, fazer a viagem maravilhosa,
ter a pele perfeita, mostrar os músculos mais fortes, usar o mais moderno
celular, ir ao resort mais sofisticado.
Até no luto temos de assumir novas
posturas: sofrer vai ficando fora de moda.
Contrariando a mais elementar
psicologia, mal perdemos uma pessoa amada, todos nos instigam a passar por
cima. “Não chore, reaja”, é o que mais ouvimos. “Limpe a mesa dele, tire tudo
do armário dela, troque os móveis, roupas de cama, mude de casa.” Tristeza e
recolhimento ofendem nossa paisagem de papelão colorido. Saímos do velório e
esperam que se vá depressa pegar a maquilagem, correr para a academia, tomar o
antidepressivo, depressa, depressa, pois os outros não aguentam mais, quem quer
saber da minha dor?
O “ter de” nos faz correr por aí com
algemas nos tornozelos, mas talvez a gente só quisesse ser um pouco mais
tranquilo, mais enraizado, mais amado, com algum tempo para curtir as coisas
pequenas e refletir. Porém temos de estar à frente, ainda que na fila do SUS.
Se pensar bem, verei que não preciso
ser magro nem atlético nem um modelo de funcionário, não preciso ter muito
dinheiro ou conhecer Paris, não preciso nem mesmo ser importante ou
bem-sucedido. Precisaria, sim, ser um sujeito decente, encontrar alguma
harmonia comigo mesmo, com os outros, e com a natureza na qual fervilha a vida
e a morte é apaziguadora.
Em lugar disso, porém, abraçamos a
frustração, e com ela a culpa.
A culpa, disse um personagem de um
filme, “e como uma mochila cheia de tijolos. Você carrega de um lado para o
outro, até o fim da vida. Só tem um jeito: jogá-la fora”. Mas ela tem raízes
fundas em religiões e crenças, em ditames da família, numa educação pelo
excessivo controle ou na deseducação pela indiferença, na competitividade no
trabalho e na pressão de nosso grupo, que cobra coisas demais.
Dizem que devemos nos informar
melhor, mas quanto mais informação, mais dúvidas; quanto mais abertura, mais
opções; quanto mais olhamos, mais se expande a tela onde se projetam nosso
desejos.
Nessa rede de complexidades, seria
bom resistir à máquina da propaganda e buscar a simplicidade, não sucumbir ao
impulso da manada que corre cegamente em frente. Com sorte, vamos até enganar o
tempo sendo sempre jovens, sendo quem sabe imortais com nariz diminuto, boca
ginecológica e olhar fatigado num rosto inexpressivo. Não nos faltam recursos:
a medicina, a farmácia, a academia, a ilusão, nos estendem ofertas que incluem
músculos artificiais, novos peitos, pele de porcelana, e grandes espelhos,
espelho, espelho meu. Mas a gente nem sabe direito onde está se metendo, e toca
a correr porque ainda não vimos tudo, não fizemos nem a metade, quase nada
entendemos. Somos eternos devedores.
Ordens aqui e ali, alguém sopra as
falas, outro desenha os gestos, vai sair tudo bem: nada depressivo nem
negativo, tudo tem de parecer uma festa, noite de estreia com adrenalina a
aplausos ao final.