“As mãos, com o tempo,
aprendem a plantar melhor porque sabem exatamente o que querem colher.”
________Rachel Carvalho
Ela tem algo em torno de
70 anos, mas parece menos, como é comum hoje em dia. Dinâmica, é daquelas
mulheres de personalidade que sabem conduzir uma boa conversa. No entanto,
passei a reparar que suas opiniões, outrora expressadas de forma elegante,
entraram no estágio “faca na bota”.
Ela mesma deu a pista
sobre o que estava acontecendo, depois de ter feito um comentário certeiro,
porém bastante duro a respeito de uma amiga: “Agora eu falo mesmo, tenho idade
pra isso”.
Esse episódio me voltou à
lembrança quando li recentemente a notícia de que o ator Gerard Depardieu não
acatou o pedido de uma comissária de bordo para que ele aguardasse a decolagem
antes de ir ao banheiro: ele simplesmente urinou no corredor da aeronave,
diante de outros passageiros.
Se estava tão apertado,
deveria ter entrado no banheiro mesmo assim, ninguém iria segurá-lo à força,
mas partir para a provocação me pareceu arrogante, a mesma arrogância que tenho
percebido em pessoas que, diante da maturidade mais que estabelecida, julgam-se
acima do bem e do mal.
Conheço pessoas de 85 e
até de 90 anos que, se não esbanjam saúde, seguem firmes e fortes sobre as
próprias pernas e com a cabeça igualmente funcionando bem. Aquela caricatura
dos avós de cabelo branco, com as costas arqueadas, arrastando os pés e
extremamente rabugentos é apenas isso, uma caricatura. Vovós, hoje, estão tendo
que apresentar a carteira de identidade no caixa do banco para provar que têm
direito a fila especial.
Ainda assim, a idade
manda recado. Os joelhos já não reagem como se espera, a memória fica difusa,
as chances de ser olhado com algum desejo pelo sexo oposto caem drasticamente e
o futuro, bem, o futuro não é mais representado por uma infinita highway, e sim
por uma estradinha de tiro curto e com placas avisando: atenção, curva
perigosa.
O maior benefício de ter
vivido tanto é, de fato, a sabedoria acumulada. Só que alguns optam por jogá-la
na cara dos outros com as palavras mais afiadas que encontram, como se a
sabedoria fosse um instrumento de desforra.
O caso do ator francês é
diferente, não há sabedoria nenhuma na sua transgressão, mas é outra amostragem
do “dane-se” que acomete muita gente madura. Ao alcançar uma idade avançada,
parece que a elegância deixa de ser essencial para o convívio. Depois de ter
passado a vida obedecendo regras e sendo cordato, o sujeito sente-se autorizado
a fazer a macaquice que quiser – como faria o adolescente que ele já foi.
De minha parte, não me
vejo na iminência de rodar a baiana por direito adquirido com a idade, mas vá
saber daqui a alguns anos. De boa moça a bruxa azeda, a transformação pode se
dar do dia pra noite. Basta um convite para confrontar-se com a própria
finitude.
“Recado para os cansados:
ainda dá tempo.
Para os desiludidos:
ainda dá tempo.
Para os frustrados: ainda
dá tempo.
Para os desistentes:
tente um pouco mais.
Você respira? Então ainda
dá.”
Uma leitora me pede que
escreva sobre envelhecer. Já escrevi sobre isso tantas vezes, em artigos,
crônicas, romances e poemas, que pareço me repetir sempre, mas o tema parece
eterno, então vamos lá.
Considero o processo de
envelhecimento, isto é, a passagem do tempo, como um processo natural. Nunca
tive medo de ser adulta, ao contrário, em criança achava que eram os adultos os
interessantes, felizes, sábios. Nunca tive medo de envelhecer, pois a
alternativa, como todos sabem, é a morte. Vi outro dia a frase “velho é o jovem
que deu certo”. Sim. Tem seu preço? Tudo tem sem preço.
Uma das questões é não
ter medo de rugas, de flacidez, e com isso realizar mais e mais cirurgias, que,
depois daquela inicial que embeleza, e renova, acabam por deformar e despertar
piedade. Estética acima do bem-estar interior? Que desperdício.
O jeito melhor é se
ocupar: pintura, escrita, aulas de qualquer coisa, muita leitura, caminhadas se
corpo e saúde permitirem, amizades boas. Claro que agora, nesta fase de
pandemia, tudo fica muito difícil, eu mesma estou em casa há mais de 10 meses,
como tantas pessoas mais pelo mundo afora. Mas podemos nos comunicar, e
distrair, e ver bons filmes, belos documentários, seja o que for que nos faça
bem. Não basta, não é a mesma coisa, falta a sagrada liberdade, estamos todos,
pelo mundo afora, meio deprimidos, cansados, impacientes, desanimados. Eu me
incluo nessa turma.
Difícil, frustrante,
triste? Mas é porque estamos numa situação ruim, especial. Velhice não é isso.
Normalmente não é isolamento e afastamento de pessoas amadas. É mudança. Para
aceitar com naturalidade, ou ficamos chatos. Doença? Ah, sim, o corpo não é o
de anos atrás, mas vamos lembrar que jovens adoecem, jovens se matam, jovens
têm perdas. Talvez as perdas agora sejam o pior, ao menos pra mim: amizades que
se vão, seja por doença, seja por algum acidente, seja porque afinal a Velha
Senhora é irremediável visita. Dói muito deletar os nomes no nosso celular. É pesado,
sim. Porque o coração nada deleta.
Porém, o tempo não se
importa com nada disso, não importamos para ele, é um rio que corre, título de
um livro meu, soberano e tranquilo. E temos de nos adaptar, ou quebramos, ou
nos deprimimos, ou nos isolamos, ou nos matamos.
Já não tenho a força de
anos atrás: traduzia sem problema quatro, seis horas por dia, ou mais. Hoje,
três horas me cansam. Porque estou doente? Não, porque tenho 82 anos. Amizades,
sejam as fraternas, ou as amorosas, me importam muito mais: porque estou
carente? Não sei, talvez porque saiba mais o seu valor.
A dor da alma custa a
passar, precisa de mais colo, mais presença, mais carinho. Fora isso, estamos
sempre aí, na luta, guerreiros e guerreiras, feito São Jorge e Joana d?Arc, e é
preciso encontrar valor, alegria, contentamento, nisso que ainda podemos ser,
não importando a idade. Sendo queridos, apreciando as pessoas, e tentando fazer
o melhor. Tudo menos desistir choramingando, sermos amargurados ou medrosos:
isso é, sim, decreto de insuperável, triste, solidão.
“O tempo não existe, eu
decretei assim”, escrevi certa vez. E confirmo. Depende de nós.
Que somos animais
predadores com vernizinho de civilidade, ou de humanidade se quiserem, isso me
parece óbvio. Basta soltar as amarras num impulso de raiva, num momento de
ódio, num fanatismo qualquer, e lá vamos nós, nada bonzinhos, matando,
esquartejando, estuprando, aniquilando com mísseis ou espalhando morte e tripas
com algum homem-bomba. Lá vamos nós treinar menininhos para matar com fuzis
maiores do que eles. Lá vamos nós queimar prisioneiros vivos dentro de jaulas
aos olhos de uma multidão.
Onde, quando ouvi ou li
coisas parecidas? Foi no Holocausto? Está sendo em tantos holocaustos atuais?
Foi Nero, que mandou matar a mãe, assassinou com pontapés na barriga sua mulher
grávida, mandava empalar cristãos cobertos de óleo em postes para queimarem iluminando
seus jardins? Nero, incompreensivelmente discípulo do meu amado filósofo
Sêneca, cujos pensamentos sábios, harmoniosos, nobres e tranquilizadores leio e
releio desde adolescente? Comentei com um de meus filhos, quando falávamos mais
uma vez sobre a violência no Brasil, e também aqui, que, lendo um bocado de
História, até acho que melhoramos muito. Não havia imprensa, não havia
organizações, não havia democracia que botasse limite na ferocidade humana.
Mas hoje, mesmo tendo
melhorado em relação às barbáries passadas, aqui nas nossas ruas não temos
sossego. A cada dia, alguém que conheço ou que é conhecido de algum amigo é
assaltado, e tudo termina com o suspiro de alívio: “Ainda bem que só levaram
minha carteira, meu carro, não minha vida, nem minha mulher ou meus filhos.
Tivemos sorte”.
Que vida é essa, que
pensamento funesto? Terrível atestado da nossa vergonha e conformidade, e da
incompetência de quem deveria administrar o país. O crime começa a compensar. O
criminoso nos controla. Saímos pouco à noite, e com receio. Não paramos o carro
nos sinais vermelhos altas horas, o que aliás nos foi há tempos sugerido por
uma autoridade de segurança, se não me engano. Em cidades como Rio, e lugares
do Norte e Nordeste, está vivo o espírito dos jagunços, tiroteios, mortes,
roubos de grandes quantias, bancos arrombados, cofres explodidos. Criminosos
fugidos, às vezes mortos eles e os policiais. Apesar da pandemia assassina,
essa loucura prossegue.
Meus filhos brincavam nos
terrenos baldios perto de casa, há algumas décadas, e ninguém se preocupava com
a possibilidade de tragédias hoje banais. Ao escurecer, a gente chegava na
esquina, chamava, “venham tomar banho e jantar!”. E vinham, suados, cansados e
felizes, os pais de nossos netos, que já não andam sozinhos nem até a escola.
Sei que é ingenuidade querer de volta aqueles tempos, mas podíamos estar mais
civilizados.
O consolo é que essa
humanidade sedenta de sangue também produz milagres como as obras de arte e
seus autores. Van Gogh, Monet, Mozart e Bach, Shakespeare e Pessoa, os
sublimes: os artistas. Mas também os mais cotidianos gestos dos jovens alegres
e saudáveis, das crianças carinhosas, dos pais maravilhados, tudo o que nos faz
acreditar que não produzimos só barbárie e repulsa, mas claridade, beleza, e -
apesar de tudo - esperança. Muito necessária nestes tempos da Peste do século.
Que nos assusta, nos intimida, e nem sempre nos faz escolher a melhor opção,
além de cuidados: Vacina.
“O apelido de Maria
Tereza, para Norberto, era ‘Quequinha’. Depois do casamento, sempre que queria
contar para os outros uma de sua mulher, o Norberto pegava na sua mão,
carinhosamente, e começava:
- Pois a Quequinha...
E a Quequinha, dengosa,
protestava:
-Ora, Beto!
Com o passar do tempo o
Norberto deixou de chamar a Maria Tereza de Quequinha. Se ela estivesse ao seu
lado e ele quisesse se referir a ela, dizia:
- A mulher aqui...
Ou, às vezes:
- Esta mulherzinha...
Mas nunca mais Quequinha.
(O tempo, o tempo. O amor
tem mil inimigos, mas o pior deles é o tempo. O tempo ataca o silêncio. O tempo
usa armas químicas.)
Com o tempo, Norberto
passou a tratar a mulher por Ela.
- Ela odeia o Charles
Bronson.
- Ah, não gosto mesmo.
Deve-se dizer que o
Norberto, a esta altura, embora a chama-se de Ela, ainda usava um vago gesto de
mão para indicá-la. Pior foi quando passou a dizer ‘essa aí’ e a apontava com o
queixo.
- Essa aí...
E apontava com o queixo,
até curvando a boca com um certo desdém.
(O tempo, o tempo. Tempo
captura o amor e não o mata na hora. Vai tirando uma asa, depois cura.)
Hoje, quando quer contar
alguma coisa da mulher, o Norberto nem olha na direção. Faz um meneio de lado
com a cabeça e diz:
- Aquilo...
o perigo da perversidade
é que ela é muito sutil. um ser perverso jamais te atacará diretamente. ele vai
saborear cada silêncio calculado para despertar sua agonia. ele vai tentar
tolher seus lugares íntimos até que não reste qualquer espaço para manobras.
ele vai te seduzir de maneira irresistível e depois te tratar com um descaso
inexplicável, como se algo de errado tivesse acontecido, mas sem te dar
quaisquer indícios do que possa ter sido.
ele será carismático com
os outros, mas demonstrará impaciência em responder à sua mais simples
pergunta. ele vai oscilar entre o tesão e a indiferença. você se sentirá
desejada e, repentinamente, rejeitada quando o desejo demonstrado tiver se
esvaído nos primeiros suspiros da manhã. e o dia seguinte se tornará um longo e
agonizante ano. ele parecerá espirituoso, depois irônico, mas estará sendo
crítico e sarcástico. e te deixará tão confusa que você, por momentos, não
saberá identificar a crueldade que há neste tipo de comportamento.
os perversos são viciados
em jogos de poder e controle. simplesmente, eles precisam tentar te destituir
da sua autoconfiança e autoestima até que você se torne refém, dependente,
desesperada. é muito difícil identificar um ser perverso e, depois se livrar
dele. ele te tratará com uma instabilidade emocional absoluta. e quando tudo
parecer perdido, quando você tiver decidido de maneira explícita pelo
afastamento ou desligamento da relação, ele te rondará da maneira mais amorosa possível
tentando te convencer de que a falta de sintonia anterior era um problema seu.
o perigo da perversidade
é porque ela é muito sutil. e o único antídoto para se curar de uma relação
doentia como esta é reunir toda a coragem que você jamais imaginou ter e partir
com toda a convicção de que você não precisa continuar neste campo minado. você
pode escolher um lugar de paz. você pode não ser presa de um predador voraz.
você não precisa se vestir de sangue para alimentar estes vampiros.
esteja atenta. o perverso sempre parecerá um ser inofensivo e carismático. apenas com os outros. e isto te deixará com uma imensa vontade de conquistar aquilo que ele fará questão de demonstrar que não está disponível para você.
Na vida, essa estranha
máquina que nos carrega, nos transforma, nos faz felizes ou solitários,
passamos uns pelos outros, rapidamente, demoradamente, ou em uniões e amizades
permanentes, essas que resistem ao tempo e nos confortam quando mandamos um
recado, um olhar, um whatsapp, um e-mail, ou até um pedido silencioso, preciso
ombro, escuta, resposta, ah, a importância das respostas.
E assim vamos de amado em
amado, amigo em amigo, grupo em grupo, como crianças em ciranda (ainda se faz
isso?) trocando de mãos, de lado, estando no centro ou fora do círculo. Não
controlamos a maior parte desses acontecimentos que nos exaltam ou nos deixam
de coração partido, por dias, meses, anos ou... sempre.
Lembro de na infância só
conseguir dormir tranquila, de verdade, quando o carro de meu pai entrava pelo
portão, passava debaixo da minha janela, entrava na garagem: meu mundo ficava
em ordem. Alguém um dia me diria: quando você está aí, meu mundo fica em ordem.
Há uma beleza comovente
nessas ligações, mas há também uma imensa fragilidade naquele que está mais
ligado, precisado, talvez encantado do que o outro. O que inevitavelmente
acontece, nas melhores relações, amizades, amores.
Não há defesa contra esse
sofrimento, que pode ser muito sutil, mas lá está. Inevitável vida, insuperável
condição humana, todos no fundo uns pobres coitados, assustados, carentes, ou
enganosamente prepotentes.
Há décadas escrevo sobre
isso, de alguma forma: a incomunicabilidade causando dor, os mal-entendidos
separando, a falta de coragem para falar isolando, quando queríamos união,
bem-estar e segurança pelo afeto do outro. Alguma forma de presença boa, ainda
que virtual. Que, aliás, em geral ele também queria dar. Mas a humana condição
nem sempre permite. O medo, medo de assustar, de ferir, de ser ferido.
Esse assunto, sobre o
qual tanto escrevi e escrevo, me cansa um pouco. Por que não podemos ser mais
felizes? Ou ser felizes por um pouquinho mais de tempo? Seja lá o que isso
signifique para cada um.
Neste momento, uma grande
mancha, uma sombra escura e pegajosa se espalha sobre o planeta e atinge a
todos nós, os que tivemos, teremos ou nos salvaremos da Peste moderna chamada
covid, em que vários ainda não acreditam. Morrem centenas de milhares, e ainda
há quem ache trama de impérios ávidos, de políticos assassinos, subserviência
de povos ignorantes e miseráveis.
Seja como for, há
desencontros por causa disso, por incrível que pareça: nos zangamos com quem
acredita no vírus, nos irritamos com quem não acredita no vírus. Se não for
política, agora a enfermidade, ou a possibilidade dela, provoca discordâncias,
xingamentos, hostilidades.
Botam à prova nossa
humanidade melhor, a que quer amar e ser amada, seja com que forma de afeto
for, amizade, desejo, amor, não importa. Parceria. E, assim, o vírus não só
mata pessoas, mas relações: que pena, que pena, que absurdo beirando o
ridículo, se não fosse tantas vezes trágico.
“E eu tenho esta vida que
é toda minha, absolutamente sob minha responsabilidade. E quando eu erro, às
vezes, acabo acertando, às vezes termino arrependida, mas eu tento, sempre
tento. E avanço mesmo quando isto significa dar uma pausa e esperar, pois o tempo
certo é o tempo do tempo mesmo e o que é melhor nem sempre é o que se anseia
avidamente.
Felicidade é uma bestagem
dessas: matar saudade, matar a fome com aquilo que se tem vontade, perder o
medo, conquistar um amigo, encontrar um amor, mas estar totalmente inteiro no
lugar que se escolheu. E querer bem: a si, ao Outro, ao Mundo. Um bem-querer
que inunda tudo. E sossegar nossas paixões para, quando tivermos de lançar mão
delas, nos mover com voracidade em direção àquilo que se quer, porque é justo e
merecido.
Felicidade é receber uma
boa notícia: um bocado de alegria inusitada que só poderia ser minha porque eu
tenho esta vida onde eu vivo inteira. Esta é minha riqueza e quem cuida dela
sou eu: me decepciono, me iludo, me machuco, erro, acerto, amo demasiado, tenho
ímpetos de fúria, fomes de solitude, vontades insaciáveis de mato, água doce e
salgada, sol e chuva. Eu tenho apetite de sonhos novos...
Eu vivo em pleno estado
de Gratidão.”
Jesus
olhou e viu os ricos colocando suas contribuições nas caixas de ofertas. Viu
também uma viúva pobre colocar duas pequeninas moedas de cobre. E disse:
“Afirmo-lhes que esta viúva pobre colocou mais do que todos os outros. Todos
esses deram do que lhes sobrava; mas ela, da sua pobreza, deu tudo o que
possuía para viver”.
Lucas
21:1-4
O médico J.J. Camargo
conta que, às vezes, passa oito horas debruçado sobre um paciente, na sala de
cirurgia. Mantém-se, durante aquele período, com a mão firme e o cérebro
atento, concentrado ao extremo, empregando os conhecimentos que adquiriu na
academia, em congressos e seminários, e nas décadas de experiência na
profissão, sabedor de que um movimento hesitante corresponde ao desarmador de
explosivos cortar o fio de cor errada.
É muita responsabilidade.
Então, ele termina o
trabalho, suspira, lava-se e vai ter com a família do operado.
- Foi tudo bem! -
comunica, exultante.
E os parentes do paciente
exclamam: - Graças a Deus!
Camargo, nesse momento,
suspira outra vez. Tudo bem, Deus até pode ter ajudado, mas e o trabalho DELE,
cirurgião?
Essa anedota Camargo a
contou numa entrevista que deu ao Potter, publicada em podcast. O tema era uma
questão simples de ser respondida: “Deus existe?”. É ainda o podcast de maior
sucesso do Potter, com mais de 720 mil acessos, e ele é um profícuo produtor de
podcasts, um dos pioneiros do Brasil no formato.
Ou seja: Deus ainda é um
sucesso. O que não deixa de ser uma surpresa, porque hoje está na moda ser
ateu, pelo menos no meio intelectual. Você dizer que acredita em Deus é visto
como algo meio brega, uma espécie de superstição que não se sustenta nas
profundas reflexões do intelecto humano.
Bem. Vou confessar algo
só para você, meu amigo: eu acredito. Não no Deus colérico do Velho Testamento,
o Deus vingativo, que anuncia:
“Eu sou um Deus ciumento”.
Não.
Tampouco no Deus mágico,
que desvia a bola do gol do seu time no último átimo ou que troca um sacrifício
por uma graça.
Nada disso. O meu Deus é
mais spinoziano, e estou falando do filósofo Baruch Spinoza, não do técnico
Valdir. O Deus de Spinoza é delicado e sutil, imanente e, ao mesmo tempo,
transcendente. Quer dizer: está em tudo, como ensinava Heráclito há 25 séculos.
Heráclito, que era
chamado de “O Obscuro”, por ser de difícil compreensão, foi quem disse que é
impossível a um homem entrar no mesmo rio duas vezes, porque, na segunda
entrada, ele e o rio já não serão como eram. Tudo muda, enfatizava Heráclito, e
tudo faz parte do todo. Tudo é uma coisa só em constante e inexorável
transformação.
Se você pensa assim, você
compreende que, se fizer mal a uma parte do todo, estará fazendo mal a si
próprio. É uma automutilação. Nada a ver com a tal lei de retribuição do
universo, essa bobagem. O universo não castiga nem recompensa. Mas todos os
atos humanos têm consequências.
É aí que se reúnem todos, Heráclito, Spinoza, Kant e os ateus que acreditam em horóscopo ou em “energias” boas ou más. E eu, inclusive, por que não? Afinal, também sou filho de Deus.
#ai de mim se não fosse Deus!
“As pessoas infelizes se
ocupam o tempo todo da vida dos outros. Deduzem, supõem e inventam. Esquecem,
no meio da sua infelicidade, de cuidar da própria vida e não percebem que isso
gera um ciclo, no qual elas se tornam cada vez mais infelizes. E frustradas
pela inveja que sentem de quem cuida da própria vida e acaba colhendo momentos
de felicidade. Porque a vida não é só dor, nem só alegria. A vida é um composto
de momentos bons e ruins, os quais nos constroem e noz fazem evoluir.
Quem cuida da própria vida,
busca saídas, soluções, prospera. Atrai para si coisas e pessoas boas que
acabam contribuindo para seu crescimento e aprendizado. Os infelizes, não.
Atraem para si apenas o que são: pessoas mesquinhas e medíocres. E colhem os
frutos de suas ações. Enquanto estão ocupados cuidando da vida dos outros,
fofocando, conspirando, suas vidas desandam. Se engana quem pensa que não.
Parafraseando uma frase
que todos já conhecem: O universo conspira a favor de quem não conspira contra
ninguém.”
É difícil, mas essa hora
sempre chega: a de abandonar, deixar partir. Quando começa, confiamos que tudo
será cristalino e empolgante. Fazemos o nosso melhor e acreditamos que nada,
nenhum outro irá superá-lo. As ideias deslizam, o olhar brilha, mal controlamos
o sorriso no rosto: está dando certo. Está funcionando. Você não sabe direito
aonde irá chegar, mas já sente o imenso prazer em debulhar suas emoções sem
pudor, dividir suas reflexões, abusar da argúcia, do humor, e se congratula:
está correndo melhor do que o esperado.
Aí acontece.
De uma hora para outra, a
magia embesta de falhar. Acho que foi quando você se levantou para buscar um
copo d´água na cozinha. Ou talvez você não devesse ter tido o ímpeto de
interromper o que está fazendo para descer até a garagem, só porque havia
esquecido a máscara no console do carro. Você volta para o apartamento e ele
não parece mais o mesmo. Como é que uma impressão muda tão rápido? Você não
deveria ter se mexido, saído do lugar, mas ninguém pode ficar refém de uma atenção
plena. Telefones tocam, uma amiga chama, alguém distrai você com outro assunto,
e quando você tenta retomar de onde estava, ele já não se parece com o jeito
que era.
A noite cai e você vai
dormir, descansar. É provável que tenha sido apenas um pressentimento que
sumirá ao amanhecer.
Mas o dia amanhece, e a
realidade se sobrepõe às ilusões. Nada se mantém com o frescor do início, você
já deveria saber. É mais uma relação que, como todas, dará trabalho. Você usará
uma palavra que não caiu bem e terá que voltar atrás. Você insistirá, teimosa,
numa ideia que não será bem compreendida. Você se sentirá desestimulada e
cogitará não levar a história adiante, pensa em começar algo totalmente
diferente, mas depois repensa: já chegou até aqui, investiu tanto tempo, vai
dar tudo certo no final. E insiste mais um pouco.
Você gostaria que fosse
perfeito, mas a perfeição é uma medida só almejada pelos tolos, você sabe
perfeitamente disso, você, inclusive, declara isso aos sete ventos, por que
então essa insistência em tentar corrigir até os detalhes insignificantes? Ele
se tornou quem é, por mais que você ainda tente mudá-lo. E ele precisa ir ao
encontro de outros olhos, você não pode mais retê-lo. Acabou. Aceite. Deixe-o
partir.
É mais ou menos assim,
caro leitor, que me relaciono com cada texto que escrevo. Chega a hora em que é
preciso abandoná-lo, ou perderei o prazo de entrega para o jornal. Não é fácil,
sempre fica no ar a sensação de que eu poderia ter me esforçado mais. E só no
fim de semana seguinte, quando o reencontro alheio a mim, em meio a outros, é
que descubro onde foi que eu errei.
Valorizar o que se tem
não é só uma questão de gratidão, é uma questão de inteligência. Valorizar o
que se tem abrange explicitar o quanto aquilo ou aquela pessoa agrega valor à
sua vida, ao seu cotidiano, ao seu crescimento. Significa estar feliz com a
própria conquista e não desdenhar qual criança mimada que se desinteressou pelo
presente porque ele não está mais na dimensão do inalcançável.
Valorizar o que se tem é
uma questão de se valorizar também. De saber que é precioso poder desfrutar do
que é possível e real e merecido, não apenas idealizar, alimentar ilusões e
fantasiar. É saudável ambicionar coisas novas e prosperidade sem diminuir o que
já foi conquistado. Tudo, absolutamente tudo possui um valor essencial dentro
do contexto no qual estamos inseridos.
VALORIZE (se)