domingo, 29 de novembro de 2015
coisas do saco do bom velhinho
Ho Ho Ho. Nesta época de uvas, perus, presentes e lojas lotadas, eu tenho visto muitas coisas. Feias, para falar a verdade. Nos últimos dias a minha caixa de e-mails anda atrolhada de mensagens denegrindo a imagem do Seu Noel. Que maldade, minha gente.
Eu, como toda criança, acreditava em Papai Noel. Escrevia cartinha para ele e quando dezembro começava eu imediatamente melhorava o meu comportamento. De menina-sardenta-demônia eu passava a menina-sardenta-anja. Num piscar de olhos. Ou de dezembro, como queira. No dia vinte e quatro eu era uma flor vestida de gente. Amável, educada e agradável. Até beijava sorridente aquelas tias velhas que têm pintas enormes peludas no queixo, do tipo que quando você chega perto, espeta. Sabia que à noite o Papai Noel vinha. Um dia o meu mundo se desfez. Vi que o Papai Noel era mais precisamente o Papai Paulo, meu pai. Era ele quem colocava os presentes perto da árvore, auxiliado pela minha mãe. Que decepção. A mesma coisa foi com o Coelhinho da Páscoa. Ele deixava pegadas pela casa, sabia? As marcas das patinhas dele ficavam pelo corredor e por tudo. Até que o meu mundo se desfez de novo e novamente e mais uma vez, pois descobri que o coelho era uma farsa. Era o Coelhinho Paulo. E as pegadas eram de farinha. Mas isso tudo eu deixo para contar em abril.
O fato é que a imagem do Papai
Noel, para mim, é algo puro e fofo. Não gosto que falem mal dele. Ele é que nem
a Xuxa: fez parte da minha infância e, bem ou mal, nutro um carinho eterno por
certos personagens que foram importantes na minha vida. Tá certo que eu gostava
da Xuxa antes do silicone, antes da Xaxa, antes do Xafir, antes de ouvir boatos
que ela tem um caso com a Xivete Xangalo. Eu gostava da Xuxa na época do Praga,
Dengue, eu queria ser paquita! Xou da Xuxa, Xu xu xu xá xá xá, aquela nave, o
meu sonho era entrar ali!
Sim, é quase Natal e estou num momento saudosista. Eu chorava quando a nave subia e a Xuxa ia embora. Prefiro deixar aquela imagem da Rainha dos Baixinhos. A Xuxa de hoje é outra. Mas gente, por favor, o Papai Noel de ontem é o mesmo de hoje e vai ser o mesmo de amanhã e o mesmo de sempre. Vestido de vermelho, barba branca, óculos, barrigudinho, cara de meigo, sorriso querido. Ele pega as crianças no colo, ho ho ho, dá pirulito e faz um carinho nos cabelinhos delas com as mãos envolvidas pelas luvas brancas.
No mundo atual isso tudo pode ser perigoso, eu sei. Tempos de pedofilia. O Papai Noel pode estar disfarçado, ho ho ho e sentar as criancinhas no colinho para fazer sabe-se lá. Sabe-se lá. Mas o meu mundo, desculpa aí, não é o atual. Sou lá de trás.
Por gentileza, não me mandem coisas feias, chatas e bobas do Papai Noel. Tem gente que é devotinho, tem vó que é beatinha. Para mim, o Papai Noel é que nem a Virgem Maria. Que nem o Santo Antônio. Que nem o Menino Jesus. O Papai Noel foi, durante muito tempo, o meu Salvador. Por causa dele eu acreditava que o mundo podia ser mais aconchegante, bonito, gentil. Depois que descobri a verdade sobre o bom velhinho, sei lá, criei um mundo no qual as coisas ainda podem ser aconchegantes, bonitas, gentis. Um mundo que só entra quem é convidado. Um mundo que me protege, abriga, ampara. Ho ho ho. Em épocas como a nossa, qualquer refúgio é válido, qualquer porto-seguro é aceito. Faça o seu. E, por favor, neste Natal não dê só presentes, cartões e abraços molengos. Dê amor. Sorrisos de verdade. Abraços com vontade. Dê mais amor. Mais sorrisos. Mais abraços. E nunca, nunca deixe de acreditar no seu próprio Papai Noel.
Sim, é quase Natal e estou num momento saudosista. Eu chorava quando a nave subia e a Xuxa ia embora. Prefiro deixar aquela imagem da Rainha dos Baixinhos. A Xuxa de hoje é outra. Mas gente, por favor, o Papai Noel de ontem é o mesmo de hoje e vai ser o mesmo de amanhã e o mesmo de sempre. Vestido de vermelho, barba branca, óculos, barrigudinho, cara de meigo, sorriso querido. Ele pega as crianças no colo, ho ho ho, dá pirulito e faz um carinho nos cabelinhos delas com as mãos envolvidas pelas luvas brancas.
No mundo atual isso tudo pode ser perigoso, eu sei. Tempos de pedofilia. O Papai Noel pode estar disfarçado, ho ho ho e sentar as criancinhas no colinho para fazer sabe-se lá. Sabe-se lá. Mas o meu mundo, desculpa aí, não é o atual. Sou lá de trás.
Por gentileza, não me mandem coisas feias, chatas e bobas do Papai Noel. Tem gente que é devotinho, tem vó que é beatinha. Para mim, o Papai Noel é que nem a Virgem Maria. Que nem o Santo Antônio. Que nem o Menino Jesus. O Papai Noel foi, durante muito tempo, o meu Salvador. Por causa dele eu acreditava que o mundo podia ser mais aconchegante, bonito, gentil. Depois que descobri a verdade sobre o bom velhinho, sei lá, criei um mundo no qual as coisas ainda podem ser aconchegantes, bonitas, gentis. Um mundo que só entra quem é convidado. Um mundo que me protege, abriga, ampara. Ho ho ho. Em épocas como a nossa, qualquer refúgio é válido, qualquer porto-seguro é aceito. Faça o seu. E, por favor, neste Natal não dê só presentes, cartões e abraços molengos. Dê amor. Sorrisos de verdade. Abraços com vontade. Dê mais amor. Mais sorrisos. Mais abraços. E nunca, nunca deixe de acreditar no seu próprio Papai Noel.
“Papai Noel”, antes, trazia presentes; agora, rouba helicóptero...
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Clarissa Corrêa
sábado, 28 de novembro de 2015
Ela me contou que morou durante toda a infância bem no centro da cidade, num apartamento pequeno de uma grande avenida, e cresceu escutando as conversas e gritos dos transeuntes lá embaixo, os motores dos ônibus, as portas do comércio abrindo e fechando, as brigas entre os camelôs, e nem à noite esse zumzumzum sossegava, pois havia os cinemas, as boates, os botecos, as prostitutas, um quartel com ininterrupto entra e sai de soldados e uma igreja ao lado cujo sino não conhecia descanso. Se dava para dormir? Feito um anjo. Cada barulho específico da zona central era como se fosse um instrumento musical, e juntos eles compuseram sua cantiga de ninar. A tudo se acostuma.
Até que ela virou mulher, casou e foi morar num bairro tão distante do centro que era praticamente uma granja, e quem dizia que conseguia dormir? O silêncio, ali, era barulhento além da conta.
Um cachorro latindo ao longe, no meio da madrugada, bastava para lhe despertar. O farfalhar das folhas ao vento, numa árvore próxima à janela, a deixava em estado de alerta. Podia até ouvir uma estrela cadente se prestasse bem atenção. Como pegar no sono estando envolvida por tantas quietudes secretas, por tanta discrição?
Não foi bem com essas palavras que ela me contou sobre essa situação invertida, mas foi desse jeito que a escutei, com essa prosa e poesia, e também com algum espanto. Se barulho virou silêncio através do costume, e se silêncio virou barulho pelo mesmo motivo, então está tudo mesmo de cabeça para baixo?
O que mais era pra ser que não é?
A pessoa muito calada, com um sorriso fixo no rosto, pacienciosa com todos em volta, relaxada num corpo em repouso, estará mesmo calma? Pode ser que por baixo de sua pele o barulho seja infernal, a dor lateje, o coração grite e ela apenas esteja inerte para não chacoalhar ainda mais o desespero que leva dentro. Enquanto que aquela pessoa que dança, corre, abraça, ama, gargalha, viaja e se joga na vida é o quê? Budista.
A pessoa que anda sumida é uma ermitã ou será que está muito bem acompanhada por si mesma? E quem não desgruda de grupos será mesmo sociável ou carente ao extremo?
Acho que eu gostava mais da vida quando ela era como era, exata, e não como é agora, quando traz em si o seu contrário, nos obrigando a ler nas entrelinhas, entender os subentendidos, perceber o abstrato e desprezar o concreto – eu preferia o óbvio a tanta charada, eu preferia o cristalino ao lusco-fusco, eu gostava quando era mais fácil e as coisas e as pessoas cumpriam o prometido.
Quando foi isso?
Nunca. Nunca foi como eu queria. Sempre foi o inverso.
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Martha Medeiros
sexta-feira, 27 de novembro de 2015
quinta-feira, 26 de novembro de 2015
Às vezes a distância é a melhor coisa que
pode acontecer.
Períodos de recuo são essenciais. Ou simplesmente
acontecem, atropelando nossa vontade - mesmo assim continuam sendo
estarrecedoramente úteis. Eles nos forçam a enxergar a situação com mais frieza
e, por isso mesmo, de forma mais acertada e isenta de erros de julgamento que a
intensidade e a bile nos levam a cometer (o significado do ditado chinês “o
lugar mais escuro é sempre debaixo da lâmpada” tornou-se, de repente, tão claro
para mim como areia em dia de sol).
O grande barato de, vez por outra, nos distanciarmos do que nos importa é
sentir o que esse redimensionamento nos causa. E, seja ele qual for, a retomada
nunca é insípida: ou nos faz enxergar a placa de “rua sem saída” que teimávamos
em não ver ou devolve o brilho ao que o tempo havia enegrecido. Talvez por isso
alguns casais só se entendam depois de uma separação: a dor, a sensação de
ficar sem centro gravitacional, não ter mais ali ao lado quem se ama pode
provocar verdadeiros milagres na dinâmica de uma vida em comum (e na solo). Mas
não podemos contar com milagres, precisamos da razão. O problema é que nossa
suposta sapiência tende a subavaliar o que se tem ou (talvez seja pior)
exagerar na importância e, se quisermos ser felizes, é inútil proclamar
independência emocional ou tornar-se escravo das paixões. Qualquer extremismo
nos isola. Só compreendemos o valor do que nos rodeia e mora dentro de nós
quando mergulhamos na solidão.
Depois de sofrer feito o cão por encarar tudo na base do oito ou oitenta, fiz
um pacto comigo mesma: jamais levaria coisa alguma a ferro e fogo porque nada
importa tanto. Absolutamente nada é imprescindível. Nem ninguém. Esse não um
discurso de auto-suficiência, pelo contrário, é uma reflexão de alguém que
aprendeu na porrada (ou, melhor, no choro) que só relativizando, tornando a
existência e o coração mais leves é que se pode ser feliz e, então, ser feliz
com alguém. Pare de arrastar correntes, levar tudo tão a sério: a única coisa
que vai conseguir é uma úlcera. Cuide de quem ama, mas não faça disso o
objetivo da sua vida, por que ficará inevitavelmente frustrado quando não tiver
dele o que você acha que ele deveria devolver. Não existe prêmio para quem doa
amor. Por isso, distanciar-se deveria ser uma tarefa cotidiana: evitaria que
fôssemos sugados pelo redemoinho que sempre começa logo ali a nossos pés, mas estamos
ocupados demais para ver. Evitaria que exercêssemos de forma tão eficaz, e
perigosamente despercebida, nossos piores defeitos.
Quando algo começar a te enlouquecer, infernizar ou te fazer surtar, use a
técnica dos grandes admiradores de arte: recue diante da tela, mude de ângulo,
observe as cores, os traços e os detalhes que, na correria, sempre passaram
despercebidos. Então notará que ela é muito mais do que aquele ponto preto que
ficava, insistentemente, diante dos seus olhos.
Ser feliz, no final das contas, não é questão de sorte ou azar. É questão de
perspectiva.
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Ailin Aleixo
A casa da gente é uma metáfora da nossa vida, é a representação exata e fiel do nosso mundo interior. Li essa frase outro dia e achei perfeito.
Poucas coisas traduzem tão bem nosso jeito de ser como nosso
jeito de morar. Tudo pode ser revelador: se deixamos a comida estragar na
geladeira, se temos a mania de deixar as janelas sempre fechadas, se há coisas
para consertar. Isso também é estilo de vida.
Há casas em que tudo o que é aparenta está em ordem, mas
reina confusão dentro dos armários. Há casas tão limpas, tão lindas, tão
perfeitas que parecem cenários: faz falta um cheiro de comida e um som vindo lá
do quarto.
Há casas escuras. Há casas feias por fora e bonitas por
dentro. Há casas pequenas onde cabem toda a família e os amigos, há casas com
lareira que se mantêm frias, há casas prontas para receber visitas e impróprias
para receber a vida.
Pode parecer apenas o lugar onde a gente dorme, come e vê
televisão, mas nossa casa é muito mais que isso. É a nossa caverna, o nosso
castelo, o esconderijo secreto, onde coabitamos com nossos defeitos e virtudes.
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Martha Medeiros
“Portanto, quando você der esmola, não anuncie isso com
trombetas, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, a fim de serem
honrados pelos outros. Eu lhes garanto que eles já receberam sua plena
recompensa.
Mas quando você der esmola, que a sua mão esquerda não saiba
o que está fazendo a direita, de forma que você preste a sua ajuda em segredo.
E seu Pai, que vê o que é feito em segredo, o recompensará”.
Mateus 6:2-4
quinta-feira, 19 de novembro de 2015
portas abertas
Nesses últimos dias, diante de um mundo ameaçado pelo terror,
deu pra extrair algo de bom. Na sexta-feira, poucas horas depois dos primeiros
tiroteios, ninguém ainda sabia se os atentados haviam cessado, onde estavam os
terroristas e qual era a soma das vítimas, mas já havia cartazes nos prédios
comunicando: Porte ouverte, que em português significa “porta aberta”. Os
moradores da capital francesa, sabendo que muitas ruas estavam sendo fechadas e
que não haveria como turistas e transeuntes voltarem a seus hotéis e moradias,
colocavam-se à disposição para hospedar desconhecidos aquela noite fatídica.
Diante disso, importa quem é ateu, quem é católico, quem é
muçulmano?
Religião serve para confortar diante da finitude e para
atenuar angústias, culpas e faltas. Precisam de religião os que não se
contentam em recorrer unicamente à razão e que se sentem menos inseguros
compartilhando seu destino com alguma entidade superior, ainda que etérea.
Muitos precisam de religião e não há nada de errado em se amparar nela
emocionalmente. Mas o sagrado se apresenta de várias outras maneiras.
Generosidade é uma atitude laica. Solidariedade, idem. Boa
vontade, amizade, sensibilidade, ternura, comoção. Nada disso está relacionado
à conversão a uma doutrina. Não precisamos de líderes, de mártires, de messias
para sermos gente direita. Pais, mães, tios, avós e professores geralmente dão
bons guias no início da nossa jornada e nem precisam ser santos.
A religião começa a dar defeito quando deixa de ser um
consolo pessoal para ser usada politicamente – como a história demonstra. Gire
o globo e para onde seu dedo apontar haverá conflitos religiosos insuflados
pelo poder que certos grupos radicais se outorgam. Conflito: o revés da paz e
da bondade que deveriam ser intrínsecos à vida espiritual.
Morremos todos os dias por bala perdida, negligência,
delinquência – terror também –, mas morrer por divergências religiosas nos
deixa ainda mais em choque por sua contradição: o divino nunca deveria se
atrelar à covardia e à brutalidade.
Enfim, porta aberta para aqueles que não consideram profanos
o prazer e a alegria. Porta aberta para quem reza para o Deus que quiser, sem
tentar subjugar a vida alheia a seus preceitos particulares. Porta aberta a
quem faz o bem, com ou sem religião. Porta aberta para quem precisa de um copo
d`água, um abraço, um sofá – e não de discurso, sermão.
As igrejas são, em tese, grandes templos onde as portas são
mantidas abertas para todos. A sexta-feira 13 parisiense mostrou que por trás
de cada porta da cidade pode haver outro tipo de igreja, sem altares, sem
confessionários, sem imagens, sem dogmas. Apenas aquele bom e velho amor ao
próximo em seu conceito mais espontâneo e simplificado, que se manifesta quando
vem desapegado de crenças sobre-humanas.
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Martha Medeiros
quarta-feira, 18 de novembro de 2015
vida resolvida
Conversávamos sobre um amigo que ainda reluta sobre o que
gostaria de ser quando crescer quando a velha senhora liquidou o assunto: Pouca
vergonha. No meu tempo, aos 35 anos as pessoas já estavam com a vida resolvida.
O jovem rapaz em questão tem exatamente 35 anos, casou e se
separou, não tem filhos e está pensando em fazer outro curso na universidade,
já que não se adaptou à primeira profissão que escolheu. De fato, ele não está
com a vida resolvida.
Até pouco tempo atrás era assim, tínhamos um norte a seguir:
escolhíamos um par e um trabalho e, dali por diante, seríamos sensatos se não
trocássemos mais de rumo, gozando a aposentadoria dos desejos. Nunca mais se
preocupar com nada, apenas aproveitar a tal vida resolvida.
Havia quem simulasse direitinho a acomodação, mas se já
naquela época o apaziguamento não era tão bem resolvido assim, imagine hoje.
Hoje, minha senhora, a vida resolvida fica para depois que o
vivente bater as botas. Aí, sim, estará tudo resolvido, bem resolvido, três
palmos abaixo da terra. Antes, tem nada resolvido. Nada.
No fluir dos dias deste século 21, deixamos de ser
adolescentes indecisos para nos tornar adultos indecisos, mas vamos tateando,
vamos experimentando, que a palavra experiência é que tem justificado todas as
atitudes: a experiência de um hobby, de uma viagem, de um amor, de outro amor,
e de outro mais. A experiência de trabalhar com fotografia e depois trocar pela
experiência de trabalhar como professor de violoncelo, e então dirigir um
documentário sobre uma orquestra mirim. E depois abrir um restaurante
vietnamita, que logo fechará porque surgiu a oportunidade de viver uma
experiência botânica num parque no interior de Goiás. Sonhos prestes a se
realizarem até que outros sonhos chamem e novas experiências se descortinem: a
palavra movimento também está muito em uso, vale lembrar.
Experiência e movimento, dupla dinâmica – dinâmica mesmo –
que veio substituir casamento, família e profissão, o trio que amarrava o
cristão numa vida resolvida.
Bem vertiginosos, esses novos tempos em que é permitido
querer tudo e querer mais, em que ser considerado uma pessoa de confiança não
implica em criar raízes numa única cidade, e tampouco em ter uma única mulher
ou um único marido para sempre, mas alguns ao longo de uma vida longa. Filhos
do primeiro casamento, do segundo – e no terceiro, aleluia, a lua de mel
merecida, com os netos visitando de vez em quando. Inventam-se atividades
conforme a demanda: ainda haverá cursos profissionalizantes daqui a alguns
anos? A conclusão de uma faculdade será requisito fundamental para garantir um
futuro? Ainda existirá futuro ou o tempo se resumirá a um eterno presente,
renovável a cada segunda-feira?
Experiência, movimento.
A vida resolvida era segura, mas muito parada.
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Martha Medeiros
domingo, 15 de novembro de 2015
o rio que era doce
Morreu o lugar que eu nasci,
Morreu meu cavalo
Meu cachorro e minha história;
O que eu tinha de mais bonito,
Agora, é só memória.
O peixe virou cimento;
E a igreja, e a escola?
Nem sino, nem movimento!
Sobrou nada da plantação!
Nenhum quadro na parede;
Nada prova que sou José,
nada diz que sou João;
Enlameados documentos,
Soterrados com crianças
e gente grande sem esperança;
Acabou-se a minha Bento;
Chorou Elvira, retratando o fato,
que cortou seu coração
Mas choro não limpa o rio,
Nem devolve a vida ao chão...
Correu longe o leito de morte
Uma lama sem distinção,
Cobrindo os sonhos de todos
Matando a paz e a mansidão
E o Rio, que era doce até então,
Hoje, Vale nada não!
(Moema de Castro Leite)
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Armandinho,
Outros,
Tirinhas
homens que investem
Se essa frase parece ter saído da boca de um esquimó,
reconsidere. Não há nada de glacial na afirmação. Filho é, realmente, uma
espécie de plano de previdência. Resta saber se você é bom investidor.
Algumas pessoas pensam em ter filhos por razões pragmáticas.
A mais comum delas: “quem cuidará de mim no futuro?” Para muitos, o que importa
é evitar ser abandonado numa casa de repouso. Só não sei onde essa gente
descola bola de cristal para ser assim tão profética.
Filho é um investimento, sim, mas em outro sentido.
Filho é uma aplicação rentável no quesito emoção. Quando
bebês, são uns fofos, apesar de exigirem um preparo físico de campeão de UFC.
Tudo bem, papai é atlético o suficiente para engatinhar com seu filhote, rolar
pelo chão, segurar no colo, levar nos ombros, carregar nas costas. Até que os
fofos entram na adolescência.
Tudo bem, também.
Viram uns purgantes, mas pode ser animado. Eles lotarão a
casa de amigos, desde clones deles mesmos até aqueles moleques estranhos que
tocam guitarra, têm o cabelo vermelho e os olhos idem. Eles explicarão para
você que Tóquio é muito mais radical que Paris. Deixarão o quarto bagunçado,
mas um dia arrumarão, confie: até o próximo Natal aquele muquifo estará um brinco,
e se você disser essa gíria na frente deles – um brinco – pediu: nada lhes dá
mais prazer do que debochar do seu vocabulário vintage.
Eles fingirão que não sentem orgulho de você, mas
conforme-se, faz parte do sigilo do negócio. Eles se meterão em encrencas, e
você vai chamá-los para aquela necessária conversa que sempre começa com
gritaria e termina em comoção. Eles ajudarão você a manejar o computador, o
smartphone e o Netflix. Eles falarão mal das suas roupas, mas numa noite
emergencial pedirão emprestado aquele casaco preto que custou uma fortuna e que
você emprestará mesmo assim. Algum sacrifício? Caramba, nenhum, são seus
filhos.
E eles virarão adultos, e o investimento será ainda mais
recompensador. Eles farão coisas que você nunca teve coragem de fazer – e bem
que quis. Eles terão ideias liberais demais até pra você, que sempre se julgou
um revolucionário. Eles não compartilharão alguns segredos cabeludos, mas
quando o problema for sério mesmo, irá ouvir; “pai, estou precisando de você”.
E esta confiança é um lucro impossível de ser medido em cifras.
Hoje é domingo, dia calmo e propício para dar uma analisada
nos extratos e avaliar se valeu a pena tanta preocupação, se não foi um preço
muito alto ter aberto mão de um pedaço da sua liberdade, se a relação custo
benefício compensou.
Ora. Fechando as contas, ninguém pode dizer que
não sai dessa aventura mais rico.
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Martha Medeiros
sábado, 14 de novembro de 2015
A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim...
Vai com Deus, Celinho!
“Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar”
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Mário Quintana
Todos os dias, da
manhã até o cair da noite, Jacob Simen não fazia outra coisa senão maldizer a
sorte ingrata. Blasfemava contra o destino que o forçava a viver naquela
insuportável e torturante penúria. A casa em que morava era pequena, incômoda e
sem conforto: não dispunha senão de dois quartos para os pequenos e de uma sala
minúscula com duas janelas, onde mal podia receber, nos dias de festa, meia
dúzia de amigos e vizinhos.
A paciente Sorele não concordava com as queixas e revoltas do marido. A vida para eles não era, por certo, invejável. Lá isso não era! Podia, porém, ser pior, muito pior…
- “Pior do que
isso, mulher, nunca”!, clamava Jacob, arrepelando-se, irritado.
- “Repara na
apertura e no desconforto em que vivemos! Não cabemos nesta casa e não vejo
como nem quando será possível arranjar outra melhor”.
Um dia, afinal, a cidade foi visitada por um sábio famoso que o povo apelidara Baal Schem.
Sorele sugeriu,
cheia de confiança, ao esposo:
- “Por que não
vais ouvir o velho Baal Schem? Dizem que ele tem feito espantosos milagres.
Possivelmente poderá auxiliar-nos”.
Tal lembrança parecia traduzir uma providência fácil, acertada e feliz. Nesse mesmo dia, Jacob Simon foi ter à presença do santo rabi e desafiou o rosário interminável de suas queixas e misérias: que vivia num casebre triste e miserável e seu maior sonho era possuir uma casa ampla e espaçosa.
- “Meu filho”, ponderou o sábio, cheio de paciência e bondade, “posso, realmente, com a valiosa proteção dos guias invisíveis, realizarem prodigioso milagre em teu benefício. Serei capaz de transformar a tua casa, pobre e acanhada, em um lugar amplo, claro e confortável. Para tanto torna-se indispensável que pronuncies, agora mesmo, um juramento: vais ter que jurar, pelo nome sagrado de Moisés, e pela memória de todos os profetas, que seguirás fielmente todas as minhas determinações”.
- “Juro”!, Declarou Jacob com voz firme e inabalável sinceridade.
- “Muito bem.
Agora uma pergunta: Tens uma vaca, não é verdade”?
- “Sim, com
efeito. Tenho uma vaca”.
- “Leva, então,
hoje mesmo, a vaca pra dentro da tua casa”!
- “A vaca para
dentro de casa”!?
- “Senhor! Na casa
em que moro mal cabem os meus filhos. Onde colocarei a vaca”?
- “Lembra-te,
amigo, de teu juramento! Põe a vaca dentro de casa”.
Não houve remédio. Era preciso obedecer cegamente ao milagroso conselheiro. Aquela vaca, sob o teto de seu lar representava uma tortura constante. O monstruoso animal quebrava, destruía e sujava tudo. Para que os vizinhos não envolvessem o caso com os impiedosos comentários ditados pelo ridículo, a delicada Solere conservava as janelas e portas cuidadosamente fechadas durante o dia.
Decorridos três dias, voltou Jacob, a alma vencida pelo desespero, à presença do Baal Schem.
Era preciso pôr
termo, o mais depressa possível, àquela situação torturante!
- “Tens uma cabra”? Indagou o sacerdote, à meia voz.
- “Sim”.
- “Leva também a
cabra para dentro de tua casa”! Ordenou, sem hesitar, o prudente rabi.
A nova determinação do milagroso guia deixou Jacob sucumbido pelo desalento. A vaca, por si só, tornava a vida, dentro da casa, insuportável. A cabra e a vaca, juntas seriam umas calamidades! Que horror!
Antes de terminar a primeira semana, Jacob receando que o desespero o levasse à loucura, voltou a implorar o auxílio do santo e virtuoso conselheiro. Sentia-se esgotado; na sua casa não havia mais sossego; as crianças sofriam. Ele preferia morrer a continuar a viver daquela maneira miserável e anti-humana.
Disse, então, o santo milagroso:
- “Retira, então
hoje a cabra. Amanhã, logo que o sol nascer, farás a mesma coisa com a vaca.
Procederás, a seguir, a uma cuidadosa limpeza em tua casa, arrumando os móveis
como se achavam. Ao cair da tarde irei visitar-te para ver realizado o
milagre”!
No dia seguinte, o sábio encontrou o judeu risonho e satisfeito. Sentia-se perfeitamente feliz em companhia da meiga Solere e de seus quatro filhos.
- “Que tal”?, Indagou Baal Schem.
- “Eis a verdade,
ó Rabi! Livre da vaca e livre também da cabra, a nossa casa é uma delícia!
Sinto-me bem dentro dela. Já podemos respirar e viver! Há até lugar de sobra
para as crianças”!
Estava feito o prodigioso milagre.
Baal Schem
transformara, numa casa ampla e confortável, o mísero casebre do judeu!
[ Conto israelita citado em “Lendas do povo de Deus”, de Malba Tahan ]
sexta-feira, 13 de novembro de 2015
a arte de ser gentil
Recebi um livro chamado “A arte de ser gentil”,
com o dispensável subtítulo “A bondade como chave para o sucesso”, que, a meu
ver, descredibiliza um pouco o autor, o sueco Stefan Einhorn, já que ser gentil
deveria ser uma atitude para facilitar as relações humanas, e não uma meta para
o sucesso. Que sucesso, o quê. Agora tudo o que a gente faz tem que visar o
sucesso?
O texto da contracapa diz que uma pessoa
gentil terá mais oportunidades de se tornar feliz, rica, bem-sucedida e
realizada, e que o livro fornecerá soluções imediatas e de longo prazo para os
interessados em se tornarem seres humanos melhores. Foi tudo que li até agora,
a contracapa, e não vou adiante. Primeiro, porque tenho uma pilha de outros
livros me aguardando, e em segundo lugar, porque já sou gentil. Nem sabia que
sendo gentil eu poderia ficar rica, feliz, bem-sucedida e essa coisa toda. Sou
gentil simplesmente porque acho mais fácil do que ser grosseira. Despende menos
energia. E também porque não vejo graça em magoar as pessoas. Até aí, estou no padrão.
O que ninguém nos ensina é que gentileza demais pode, por incrível que pareça,
também ser um defeito, e dos graves.
Óbvio que não se deve ser rude com amigos,
parentes, colegas de trabalho, vizinhos, comerciários, mas ser exageradamente
gentil com todo mundo pode colocar a nossa vida em risco. Por exemplo: o que
você faz se, ao chamar o elevador de um prédio estranho, à noite, a porta se
abrir e lá dentro estiver um sósia do Curinga, com uma cicatriz perturbadora na
face e vestindo um sobretudo enorme que poderia muito bem esconder duas
pistolas, três granadas e um rifle? Você certamente teria uma vontade súbita de
descer pela escada e sumiria de vista. Pois eu entraria no elevador toda
faceira, daria boa noite e faria comentários sobre o clima, pois deus que me
livre de ele achar que eu sou preconceituosa e que sua aparência me fez pensar
que ele pudesse ser um esquartejador de mulheres. Por que ele não pode ser um
pai de família como outro qualquer?
Se eu pego um táxi e o motorista demonstra
não ter o menor senso de direção, arranha marchas, não usa o pisca-pisca e tira
um fino dos outros carros, eu é que não vou mandá-lo de volta para a
autoescola. Se ele correr a 200km/h, tampouco solto os cachorros, vá saber o
dia horroroso que ele está descontando no acelerador, coitado. Neste caso eu
simplesmente “me lembro” de que o endereço onde pretendo ir fica na próxima
esquina, e não três bairros adiante, e saio pedindo desculpas pelo meu
equívoco.
Se um garçom se aproximar perigosamente de
mim com uma panela cheia de óleo fervente, eu não dou um pio, imagina se vou
pedir para ele se afastar. Ele vai me considerar uma elitista estúpida – não
basta ter pedido um fondue caríssimo, ainda vou ser grossa? Nada disso, uma
queimadura no braço não mata ninguém. E se eu estou caminhando por uma rua
escura e, na direção contrária, vem um adolescente com um gorro enterrado até o
nariz e as duas mãos enfiadas numa jaqueta, eu começo a rezar, mas não troco de
calçada, imagina o trauma que posso causar no menino: vai ver é até um amigo da
minha filha.
Se você tem mais de nove anos de idade, já
sabe reconhecer uma ironia e entendeu meu recado: seja gentil, mas não a ponto
de perder o tino. Se tiver que ferir suscetibilidades para salvar sua pele,
paciência. Atravesse a rua. Desça pela escada. Dê no pé. Sucesso é chegar em
casa com vida.
13/11 - dia mundial da gentileza
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Martha Medeiros
quinta-feira, 12 de novembro de 2015
Não preciso que ninguém pague a conta do
restaurante: trabalho desde os 20 anos e posso muito bem arcar com o preço da
minha almôndega.
Não preciso que ninguém puxe a cadeira para
que eu sente: tenho braços e o mínimo de coordenação motora para realizar a
tarefa.
Não preciso que ninguém abra a porta do carro
para eu entrar: consigo usar minhas mãos pra isso. E, bônus, sem cair de cara
no meio-fio.
Realmente posso fazer tudo isso sozinha. Mas adoro quando um homem faz por mim.
Cavalheiros são uma raça superior; e mulheres que sabem receber essas delicadezas sem chiliques, também. Nada mais ridículo do que uma feminista ensandecida que interpreta uma simples gentileza masculina (chamar o garçom para servir o vinho, por exemplo) como uma ameaça devoradora à sua independência. Parece que ele está querendo extirpar o clitóris da cidadã. Ah, vá se catar! Beba o vinho e cala a boca: deixe o cara ser homem e cuidar.
Adoro mimos masculinos. Quanto mais flores chegarem ao meu trabalho, melhor. Curto que cedam a passagem para mim na escada rolante. Se ele quiser ficar do lado da rua enquanto andamos na calçada, tudo bem: não sinto minha liberdade ameaçada porque ele prefere que eu não seja atropelada.
É uma tremenda mentira dizer que afagos cavalheirísticos não fazem falta nestes tempos de tantas obrigações, deveres infindáveis. Para que me privar de coisas tão boas quanto ter uma jaqueta colocada sobre as minhas costas numa noite de vento frio? Aceito ser a parte mais “fraca” se isso significa ser cuidada com carinho.
Mas homem cavalheiro é um troço difícil de achar. E a culpa é, em boa parte, das mulheres: se parássemos de reclamar da falta de modos e galanteios dos machos e nos tornássemos melhores professoras (seja como fêmeas, seja como mães), todas estaríamos mais satisfeitas. No final das contas, eles são frutos da nossa educação. Se a maioria tem o grau de gentileza de um hooligan é porque deixamos de mostrar que ser zeloso não é sinônimo de ser veadinho e que ser carinhoso não broxa; nos omitimos na hora de apontar a trilha certa e só saímos da moita no momento de dar bronca porque eles enfiaram o pé no estrume. Daí já é meio tarde: a merda está feita.
PS: Da mesma maneira que as mulheres deixaram de admitir e achar natural serem subjugadas, está na hora de reivindicar sermos tratadas com gentileza. E tratar da mesma forma. Porque, pra mim, ser gentil não está associado a querer traçar alguém; apenas acho que o mundo, com um pouco mais de tato, se tornaria um lugar mais agradável para passar a vida. E como é o único lugar que todos temos…
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Ailin Aleixo
Encontrar o amor é alívio. É ter a certeza que os dias não serão mais solitários.
É saber que no começo, no meio e no fim vai ter alguém ao seu lado.
Não um alguém qualquer, mas o seu amor.
Aquele que vai estar ao seu lado até o último capítulo.
Por mais longos que sejam os intervalos comerciais.
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Clarissa Corrêa
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