"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



sábado, 31 de outubro de 2020


 

a paciência de Jô

 


Jossylmara nasceu detestando seu nome. Soletrou a vida toda, enfrentou bullying na lista de chamada da escola e, por fim, dia após dia, chegou aos 23 anos sem conseguir responder por qual ódio especial à vida seus pais tinham lhe dado aquele nome. Assumiu-se Jô. Evitava a vogal aberta porque tinha ojeriza a uma vizinha que adotara o Jó como apelido.


Jô tinha crescido infeliz. Era uma insatisfação geral consigo e com o mundo. Tudo era desmedido para ela; ou era pouco (pouca renda, pouca estatura) ou muito (muito trem e ônibus, muita barriga). Seguiu a vida esperada e conseguiu concluir o Ensino Médio. Jô ouvira do pastor que precisava ter a paciência que seu nome indicava na Bíblia. Ela duvidou que houvesse alguma profetisa com o nome que a incomodava.Deus dá e Deus tira, bendito seja o nome do Senhor”, citou o líder religioso. Amarga, Jô voltava para casa retrucando: De mim, só tirou”.


A corte celeste está reunida. Satanás chegou sem convite diante do Todo Poderoso. Vangloriou-se dos seus muitos seguidores pelo mundo e anunciou novos planos de expansão de mercado. Deus mostrou-lhe um poço no qual se via Jô voltando para casa e reclamando. Você consegue derrubar o mais elevado sonho e desgastar a fé mais robusta. Já imaginou tentar fazer feliz essa mulher?”. O demônio gostava de desafios. Tinha ouvido no RH do Inferno que precisava sairda caixinha, que estava muito acomodado nos últimos 40 mil anos no mesmo lugar. Por tédio ou para irritar o Arcanjo Miguel que se postava ao lado do Pai, aceitou. Jô seria uma mulher feliz.


Resmungando como de hábito, Jô desceu do ônibus e, sem perceber, uma mão diabólica a empurrou na frente de um carro de luxo. Calma, queridas leitoras e estimados leitores. O diabo escreve errado por linhas retas. O carro bateu de leve na infeliz e ela caiu. O motorista era um jovem afortunado e, algo raro, recolheu a jovem e a levou ao hospital particular mais próximo. O pai do rapaz era candidato a prefeito e achou que o caso poderia ser um obstáculo à pretensão política. Quando Jô despertou no leito de um quarto privado, viu-se cercada de flores e afetos. Dr. Diogo, o zeloso candidato, tinha pedido que aproveitassem a inconsciência da jovem para restaurar os dentes que ele supunha quebrados no acidente. Na verdade, eram ruins antes, mas Jô foi aceitando sem questionar. A comida do hospital era balanceada e a paciente perdeu bastante peso com fisioterapia. Tinha saído do hospital com uma boca nova e com corpo muito melhor do que entrara. A família do político ofereceu uma pensão e uma viagem para ela descansar do incidente. Supunham que ela processaria a todos. Jô ia aceitando tudo, dizendo obrigados, sem saber que a mão do demônio estava ali, arranjando aquela ventura.


A viagem de Jô foi um impacto. Pela primeira vez ela pegou um avião e viu o mundo. A rotina da pobreza era um torpor, e ela tinha despertado. Descobriu-se ávida de saber. Tinha sido aluna indolente. Era, agora, um prodígio de leitura. O peso perdido no hospital virou uma meta de vida. Treinava diariamente correndo. Os museus foram visitados com sofreguidão. Os cremes do hotel tinham revelado uma pele excelente que apenas se ressentia de um histórico de ausência de cuidados. Voltou ao Brasil dois meses depois. Era uma nova mulher. Como a situação política do segundo turno ainda não tinha se definido, a família do candidato ofereceu a ela um flat nos jardins e uma renda. Tudo era para calar a nova e radiosa boca da vítima. Para selar a felicidade de sua nova protégée, o Diabo inspirou aos advogados do candidato que a situação era delicada e a oferta deveria ser maior.


Meses após o empurrão diante do carro de luxo, ela era outra pessoa. Quem a visse selecionando um vinho nunca imaginaria, magra e sorridente, a moça infeliz de há pouco. O seu mentor infernal não cansava de contar vantagem nas reuniões da firma celeste. Na convenção do fim do ano, o Demônio apresentou o case de Jô com um power point maravilhoso. Foi aplaudido de pé até por Santo Antônio. Deus, CEO de tudo, sorria com certa ironia quase cansada.


A jovem explodia de felicidade. Desejava mais viagens. O corpo estava ótimo, porém poderia melhorar. Tinha conseguido um emprego ótimo. Já nem precisaria da mesada do candidato. Ao deitar a cabeça na fronha de mil fios, Jô começara a imaginar a vida passada. Insinuou-se uma dor: “E se eu voltar a ser pobre e feia de novo?”. Afastou a ideia e tentou conciliar o sono... que não veio. Sabia o horror de ganhar o suficiente para chegar ao fim do mês. Trabalhar sem parar e obter o mínimo. Olhou no espelho do banheiro e viu seu novo rosto com dentes perfeitos e se lembrou de tudo. Aquilo era uma máscara. Seu rosto antigo continuava lá sob todos os disfarces. Foi a primeira vez que ela notou que a felicidade tinha sido rápida demais e que o risco de tudo retroceder era real. Chorou muito, como nunca tinha chorado. Era infeliz antes do acidente, porém, sem muita consciência. Agora, era desesperadamente infeliz. Tinha experimentado tudo o que desejava e o medo explodira com a nova fase. Entrou em crise. Desenvolveu síndrome de pânico. Não conseguia mais sair à rua com medo de perder o que tinha conseguido. Temia a velha aparência que dormia sob a capa dourada da nova.


Jossylmara renasceu deprimida. Olhando, invisível, Satanás também estava intrigado. Ele ajudara em tudo. Sondava os anseios dela e atendia. Era bom nisso. Estava tão absorto na análise da depressão de Jô que não percebeu que Deus tinha vindo ao quarto. Eles aceitam tudo, meu caro, menos a felicidade. Venho tentando desde o Éden...”. O Diabo concordou. Voltou a fazer o mal que era algo mais natural e bem aceito. Possuiu mais pessoas, afastou casais e levou muita gente ao vício. Era temido, e todos achavam aquilo natural. Os irmãos de Jô a retiraram do quarto do flat em crítico estado depressivo. Ao retornar ao casebre, ela sorriu pela primeira vez em semanas.Deus dá e Deus tira, bendito seja o nome do Senhor”, sussurrou. É preciso ter a paciência e a esperança do Jó bíblico para as agruras deste mundo...





Não gosto da vida em banho-maria, gosto de fogo, pimenta, alho, ervas, por um triz não sou uma bruxa.


#Halloween

 

#dia nacional da poesia



A data, que passou a ser conhecida como Dia D – Dia Drummond –, criado pelo Instituto Moreira Salles em 2011, é comemorada no Brasil e em Portugal. Além de homenagear o grande escritor, o marco tem por objetivo estimular escolas, centros culturais, bibliotecas e livrarias a organizar eventos inspirados na obra de um dos maiores nomes da literatura brasileira.



 João 11:40

@biblia.verso

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

sublinhados



Eu não parava de elogiar o livro. Afirmei que havia sido uma de minhas leituras mais desconcertantes, que vários trechos haviam mexido demais comigo, e minha amiga ali, de boca aberta, testemunhando meu entusiasmo. Eu estava de fato empolgada, tanto que, quando percebi a bobagem que estava fazendo, era tarde demais.Me empresta?, ela perguntou.

Não que ela fosse do tipo que some com os livros da gente. É ajuizada, devolve. Mas aquele exemplar específico estava todo sublinhado. Eu havia destacado longos parágrafos, distribuído pontos de exclamação nas margens, feito anotações próprias acerca das ideias do autor. Ou seja, eu não havia lido o livro, eu havia me relacionado com ele. Intimamente. E isso iria parar nas mãos de uma pessoa com quem eu não tinha a mesma intimidade.

O vínculo que estabeleço com meus livros está longe de ser solene. Eu não só sublinho bastante (à caneta!), como dobro as pontas das páginas e anoto, no reverso branco das capas, coisas aleatórias que me passam pela cabeça durante a leitura: lembranças de sonhos, números de telefone, listas de tarefas, enfim, sou uma herege completa. Meus livros, minhas regras.

Empresto-os, fazer o quê, mas não é uma situação confortável. Se um nude meu vazasse, não me sentiria tão exposta.

Estou exagerando? Muito, é um cacoete. Sei que nada disso é uma tragédia. Foi o que eu disse a uma amiga, na vez em que a indiscreta fui eu: pedi emprestado um livro dela, sem saber que tínhamos o mesmo hábito. O livro revelava sua alma atormentada, marcada a esferográfica vermelha.

Tentei convencê-la:fique tranquila, você acha que prestarei atenção no que você sublinhou? Claro que prestei atenção nos sublinhados dela, ora. Fiz conjecturas. Especulações. Por que, santo Cristo, uma passagem violenta havia calado fundo em seu coração? Perdi a concentração na história, de tão envolvida que fiquei com os impactos que ela teve durante o decorrer da narrativa. Era justo com a pobrezinha?

Ter tido acesso a seus sublinhados foi um voyeurismo culposo, sem intenção de futricar, mas aconteceu, acidentalmente. É sempre acidental, o que não deixa de ser invasivo. Portanto, vida longa aos sebos. O primeiro proprietário do livro, se também era dado a rabiscos, terá seu anonimato protegido, o que é bem diferente de emprestar o livro para um conhecido e, ao recebê-lo de volta, ter que enfrentar aquele olhar cúmplice de quem gostaria de dizer, mas não diz:eu sei o que perturbou você”.

Por essas e outras, está lançada a campanha #compreseusproprioslivros. Ou, ainda mais importante: #frequentebibliotecas.

Assim, você fará a suprema gentileza de não se intrometer na mais fechada relação a dois.


#dia nacional do livro

 


A ideia é que a gente sinta alegria, mesmo que experimente também tristeza por todo o sofrimento que existe nesse mundo. Que os melhores sorrisos aconteçam com dadivosa frequência. Que a convivência com nós mesmos seja prazerosa. Que a gente não demore muito a descobrir o quanto é valioso servir.


A ideia é que a gente descubra que a cura também acontece quando de diferentes maneiras nós ajudamos a curar. Que a gente descubra jeitos mais leves de existir. Que ouvir o próprio coração se torne um alimento. Que a gente descubra as próprias razões para estar aqui agora. Que viver seja, principalmente, uma experiência amorosa.


A ideia é que tenha luz, um bocado de alma e significado.



 


 

Salmos 91:11

@biblia.verso


quarta-feira, 28 de outubro de 2020


 

#dia do funcionário público


terça-feira, 27 de outubro de 2020

 


Eu queria fazer um texto sobre autoestima. Sempre me julguei apta a incentivar mulheres a se amarem mais, afinal, sempre me amei bastante.


Será? Quando resolvi que ia postar a foto acima, resolvi quase inconscientemente também tentar dar uma disfarçada na minha barriga nela.


E o fiz. Para quem não tem nenhuma experiência com esses aplicativos, acho que o resultado até foi satisfatório.


No entanto, como postar um texto sobre autoestima com uma foto modificada? Como eu poderia dizer para vocês aceitarem suas belezas (e suas carecas, se esse for o caso) se eu mesma não podia aceitar uma barriga.


Sim, eu tinha 26 anos nessa foto, estava passando por tudo que a quimioterapia traz e mesmo assim, era incapaz de me orgulhar do corpo que eu carregava.


Isso me mostra o quão refém ainda sou dos padrões e o quanto ainda preciso trabalhar dentro de mim mesma.


Pode parecer incompreensível para algumas pessoas, mas para mim, naquele momento, era muito mais fácil estar careca do que fora do peso.


E conversando com outras mulheres que passaram por isso, vejo que não estava sozinha.


Já perdi alguns quilos desde que o tratamento acabou, mas meu corpo está longe de voltar a ser o que era. Talvez nunca volte e eu ainda não sei como aceitar isso.


Essa publicação vem no intuito de incentivar uma reflexão. Quando estaremos genuinamente dispostas a perdoar nossasfalhasou amar nossasimperfeições? Até quando precisaremos da aprovação do outro? Até quando estaremos fazendo discursos de auto ajuda na internet e precisando de ajuda por dentro?

A vida não é justa, ninguém é feliz o tempo todo e nenhum corpo é perfeito.

O que significa ser uma jovem adulta da Geração Pugliesi? O que esse padrão inatingível gera na maioria das mulheres é sofrido demais.


Sei que existe um movimento sobreame suas imperfeiçõespelo qual eu tenho respeito e me identifico.


Porém meu questionamento aqui é exatamente o quanto ele é vivido e não apenas falado. Como assumir e aceitar nossos defeitos, não só da boca pra fora mas do coração pra dentro. De nada adianta sorrir no Instagram e chorar no banheiro.


Um exercício diário, vamos juntas?


narrar-se


Sou fã de psicanálise, de livros de psicanálise, de filmes sobre psicanálise e não pretendo desgrudar o olho da nova série do GNT, Sessão de Terapia¹, dirigida por Selton Mello. Algum voyeurismo nisso? Total. Quem não gostaria de ter acesso ao raio-x emocional dos outros? Somos todos bem resolvidos na hora de falar sobre nós mesmos num bar, num almoço em família, até escrevendo crônicas. Mas, em colóquio secreto e confidencial com um terapeuta, nossas fraquezas é que protagonizam a conversa.

Por 50 minutos, despejamos nossas dúvidas, traumas, desejos, sem temer passar por egocêntricos. É a hora de abrir-se profundamente para uma pessoa que não está ali para condenar ou absolver, e sim para estimular que você escute atentamente a si mesmo e assim consiga exorcizar seus fantasmas e viver de forma mais desestressada. Alguns pacientes desaparecem do consultório logo após o início das sessões não estão preparados para esse enfrentamento.

Outros levam anos até receber alta. E há os que nem quando recebem vão embora, tal é o prazer de se autoconhecer, um processo que não termina nunca. Desconfio que será o meu caso. Minha psicanalista um dia terá que correr comigo e colocar um rottweiler na recepção para impedir que eu volte. Já estou bolando umas neuroses bem cabeludas para o caso de ela tentar me dispensar.

Analisar-se é aprender a narrar a si mesmo. Parece fácil, mas muitas pessoas não conseguem falar de si, não sabem dizer o que sentem. Para mim não é tão difícil, já que escrever ajuda muito no exercício de expor-se. Quem escreve está sempre se delatando, seja de forma direta ou camuflada. E como temos inquietações parecidas, os leitores se identificam:Parece que você lê meus pensamentos”. Não raro, eles levam textos de seus autores preferidos para as consultas com o analista, a fim de que aqueles escritos ajudem a elaborar sua própria narrativa.

Meus pensamentos também são provocados por diversos outros escritores, e ainda por músicos, jornalistas, cineastas. Esse intercâmbio de palavras e sentimentos ajuda de maneira significativa na nossa própria narração interna. Escutando o outro, lendo o outro, se emocionando com o outro, vamos escrevendo vários capítulos da nossa própria história e tornando-nos cada vez mais íntimos do personagem principal – você sabe quem.

Selton Mello, em entrevista, disse que para algumas pessoas o programa pode parecer chato, pois é todo baseado no diálogo entre terapeuta e paciente, e isso é algo incomum na televisão, que vive de muita ação e gritaria. De minha parte, terá audiência cativa até o último episódio, pois, mesmo não vivenciando os problemas específicos que a série apresenta, todos nós aprendemos com os dramas que acontecem na porta ao lado, é um bem-vindo convite a valorizar o humano que há em cada um. A introspecção não costuma atingir muitos pontos no ibope, mas é a partir dela que se constrói uma vida que merece ser contada.

Texto escrito em 07 de outubro de 2012, para a Revista O Globo


¹Sessão de Terapia é uma série de televisão brasileira produzida e exibida originalmente pelo GNT entre 1 de outubro de 2012 e 19 de setembro de 2014, em 115 episódios divididos em três temporadas.
Após cinco anos, retornou pelo Globoplay em 30 de agosto de 2019.
É uma versão da série israelense BeTipul, criada em 2005 pelo psicanalista Hagai Levi, que gerou a versão estadunidense intitulada In Treatment, a mais conhecida internacionalmente.

Foi adaptada por Jaqueline Vargas, com roteiros de Cadu Machado, Ana Luiza Savassi, Luh Maza, Ricardo Inhan, Marilia Toledo e Emilio Boechat, sob direção de Selton Mello.


 


No céu, eu só tenho a ti.

E, se tenho a ti,

que mais poderia querer na terra?


Salmos 73:25 / NTLH

domingo, 25 de outubro de 2020

vida longa ao rei!

 


Sempre achei que o melhor professor de português do Brasil foi o Pelé. Quem o viu jogar ou hoje vê os seus teipes sabe que o Pelé jamais fez uma jogada que não fosse parte de uma progressão para o gol. O sentido de tudo que o Pelé escrevia com a bola no campo era o gol. O drible espetacular era apenas circunstancialmente, com perdão do longo advérbio, espetacular, porque ele existia em função do objetivo final.


A lição para escritores é: defina o seu gol e tente chegar lá como o Pelé chegaria, com poucos, mas definitivos toques, sem nunca deixar que os meios o desviem do fim. E se, no caminho para o gol, você fizer alguma coisa espetacular, esforce-se para dar a impressão de que foi apenas por obrigação.

 

O rei do futebol, Pelé, foi o oitentão mais falado da semana.


indolores

 


Feliz de quem não sente dor. Dor alguma. É o ponto de equilíbrio necessário para tudo o que fazemos na vida, vantagem prioritária diante de qualquer situação que se apresente. Nada se compara a este estado de plenitude, a esta sorte divina.


Caminhar sem sentir dor nas panturrilhas. Correr sem sentir dor no joelho. Dormir uma noite inteira sem ser despertado pelos incômodos da artrose. Percorrer sentada todo o trajeto do ônibus sem sentir dor nas costas. Ou viajar em pé, sem dor no ciático. Nem saber o que é ciático.


Comer algo bem gelado sem sentir dor de dente. Não arrancar com os dentes a pele em volta da unha. Não provocar feridas em si mesmo.


O ouvido não zunir. Não sentir dor de estômago. Não ficar enjoado em passeios de barco. Alguém por aí tem andado de barco? Nem sei se enjoo pode ser considerado dor. Dor é pedra no rim. Cálculo renal, o horror.


Tonturas, contraturas, queimaduras, fraturas: zero. Nem sinal. Há 300 dias sem quebrar um osso, sem encostar a mão no forno, sem prender o dedo na porta, sem ficar com a coluna torta.


Trabalhar sem sentir dor de cabeça. Assistir aos telejornais sem sentir dor de cabeça. Transar sem sentir dor de cabeça. Dor de cabeça nenhuma, nem como metáfora, nem como desculpa, nem de fato.


E tampouco sentir saudade, que machuca bastante também. Vontade de voltar para a rua é normal, mas a saudade de quem nunca voltará para nós é infernal (se não tiver grandes urgências lá fora, fique em casa só mais um pouquinho).


Não ser atacada por maus pensamentos. Não enxergar apenas o lado escuro da vida. Ter tido a bênção de nascer com a alma leve e despreocupada, mesmo tendo contas atrasadas para pagar e um futuro que amedronta. O destino é incerto, vá que no meio da estrada uma surpresa boa erga o braço e te peça uma carona.


Não estar profundamente triste. Nem desesperada.


Nenhum parente internado. Nenhuma briga em família. Nem mesmo um cisco no olho, um ombro enferrujado, um sonho perdido, uma angústia pelas manhãs, uns soluços à tardinha, nadinha, nadinha, e ainda por cima a conexão está funcionando direitinho, não tem caído, uma maravilha.


2020 se encaminha para o fim, e quem sobreviveu às estatísticas fatais não escapou de ser atropelado (ligeira ou drasticamente) pela excepcionalidade da situação. Alguém anotou a placa? Que pessoa afortunada a que estiver atravessando ilesa essa pandemia, sem sentir nenhuma espécie de dor, nenhum efeito psicossomático ou coisa que o valha. Ou tem um anjo da guarda danado de bom, ou ainda não entendeu nada.



 

#dia do dentista


#dia do macarrão


Provérbios 22:1
#diariocomdeus_

sábado, 24 de outubro de 2020


#eu e a Rua Livorno

casamento



De vez em quando o diabo me aparece e temos longas conversas.


Em nada se parece com o que dizem dele: rabo, chifres, patas de bode e cheiro de enxofre. Cavalheiro de voz mansa e racional, bem vestido, apreciador de desodorantes finos, me surpreende sempre pela lógica dos seus argumentos. Nada de futilidades. Só fala sobre o essencial, estilo que aprendeu com Deus, nos anos em que foi seu discípulo. Percebi que era ele quando notei que trazia na sua mão direita o martelo e, na esquerda, a bigorna. Pois esta é a sua missão: martelar as certezas, ferro contra ferro, para ver se sobrevivem ao teste.


Já se preparava para dar a primeira martelada quando o interrompi:

– Que é isto que você vai bater? Acho que vai se partir em mil pedaços…


A coisa que estava sobre a bigorna me parecia feita de louça, um bibelô delicado e frágil, e lamentei que o diabo fosse esmigalhá-la.

– Não tenho outra alternativa – ele me respondeu. – É parte de uma aposta que fiz com Deus. Este bibelô delicado é o casamento. E você pode estar certo: não resistirá ao ferro do meu martelo!


Fiquei indignado que ele estivesse maquinando coisa tão perversa e passei ao ataque.

– Não é à toa que os religiosos dizem que você é o anti-Deus. Deus junta. Você separa! A sua bigorna já destruiu muitos lares!


Ele não tinha pressa. Descansou o seu martelo e me falou com voz imperturbada:

– Já estou acostumado às calúnias. Mas não existe coisa alguma mais distante da verdade. Se há uma coisa que eu desejo é um casamento duradouro, até que a morte os separe. Se ponho o casamento na bigorna é justamente para provar que a receita do Criador não funciona. A minha é muito mais eficaz.


Como o meu silêncio indicasse minha disposição em ouvi-lo, ele continuou a falar:

– Todo mundo sabe que, no início, eu era a mão direita de Deus. Estávamos de acordo em tudo. Ele mandava, eu fazia. Foi por causa do casamento que nos separamos. Até então trabalhávamos juntos. Quando Deus disse que não era bom que o homem estivesse só, e melhor seria que ele tivesse uma mulher, eu concordei. Quando Deus disse que esta união teria de ser sem fim, até a morte, eu aplaudi. Mas aí apareceu o pomo da discórdia. Para colar o homem na mulher, Deus foi buscar uma bisnaguinha de amor. Protestei. Argumentei:

– Senhor! Amor é coisa muito fraca, de duração efêmera! Quem é colado com o amor logo se separa!

Citei o poeta:Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure!Amor é chama tênue, fogo de palha. Não pode ser imortal. No começo, aquele entusiasmo. Mas logo se apaga. Chama de vela, fraquinha, que se vai com qualquer ventinho… Amor é bibelô de louça. Todos os amantes sabem disso, mesmo os mais apaixonados. E não é por isso que sentem ciúmes? Ciúme é a consciência dolorosa de que o objeto amado não é posse: ele pode voar a qualquer momento. Por isto o amor é doloroso, está cheio de incertezas. Discreto tocar de dedos, suave encontro de olhares: coisa deliciosa, sem dúvida. E é por isso mesmo, por ser tão discreto, por ser tão suave, que o amor se recusa a segurar. Amar é ter um pássaro pousado no dedo. Quem tem um pássaro pousado no dedo sabe que, a qualquer momento, ele pode voar. Como construir uma relação duradoura com cola tão fraquinha? Por isto os casais se separam, por causa do amor, pela ilusão de um outro amor. Qualquer tolo sabe que o pássaro só fica se estiver na gaiola. O amor é cola fraca para produzir um casamento duradouro porque no amor vive o maior inimigo da estabilidade: a liberdade. É preciso que o pássaro aprenda que é inútil bater asas. Um casamento duradouro é aquele em que o homem e a mulher perderam as ilusões do amor.


– Foi aí que nos separamos – ele continuou.


– Não porque discordássemos que casamento deveria ser eterno. É isto que eu quero. Nos separamos porque não estávamos de acordo sobre o que é que junta um homem e uma mulher, eternamente. Deus é um romântico. Eu sou um realista.


– Qual foi então a sua proposta? Que cola deveria ser usada?- perguntei, perplexo.


– O ódio. – respondeu ele. – Enganam-se aqueles que dizem que o ódio separa. A verdade é que o ódio junta as pessoas. Como disse um jagunço do Guimarães Rosa, quem odeia o outro, leva o outro para a cama. Diferente do fogo da vela, o fogo do ódio é como um vulcão. Não se apaga nunca. Por fora pode parecer adormecido. No fundo, as chamas crepitam. A diferença entre os dois? O amor, por causa da liberdade, abre a mão e deixa o outro ir. No amor existe a permanente possibilidade de separação. Mas o ódio segura. Não tenha dúvidas. Os casamentos mais sólidos são baseados no ódio. E sabe por que o ódio não deixa ir? Porque ele não suporta a fantasia do outro, voando livre, feliz. O ódio constrói gaiolas, e ali dentro ficam os dois, moendo-se mutuamente numa máquina de moer carne que gira sem parar, cada um se nutrindo da infelicidade que pode causar no outro. As pessoas ficam juntas para se torturarem. Não menospreze o poder do sadismo. Ah! A suprema felicidade de fazer o outro infeliz!


Com estas palavras ele tomou do seu martelo e voltou ao seu trabalho:

– Tenho de provar que eu, e não Deus, sou quem sabe a receita do casamento que só a morte pode separar.


Eu me persignei três vezes e compreendi que o inferno está mais perto do que eu pensava.


 


Não se preocupem com nada, mas em todas as orações peçam a Deus o que vocês precisam e orem sempre com o coração agradecido. E a paz de Deus, que ninguém consegue entender, guardará o coração e a mente de vocês, pois vocês estão unidos com Cristo Jesus.


Filipenses 4:6-7 / NTLH

quinta-feira, 22 de outubro de 2020




Por onde quer que você vá, acenda sóis, sorria estrelas, espalhe amor, deixe o perfume bom da sua alma.
Por onde quer que você vá, semeie beleza, brinque à vontade, abrace grande, cantarole as músicas da sua trilha sonora.
Por onde quer que você vá, perdoe, destrone mágoas, cure o que foi ferido.
Por onde quer que você vá, renove-se, seja gentil, olhe demoradamente os olhos que brilham na sua direção.
Por onde quer que você vá, leve o seu coração.
É mais leve.


Gosto das cores, das flores, das estrelas, do verde das árvores, gosto de observar. 
A beleza da vida se esconde por ali, e por mais uma infinidade de lugares, basta saber, e principalmente, basta querer enxergar...

falta


Não é falta de saudade, é desapego... Não é falta de amor, é a certeza do tempo esgotado. Não é falta de interesse, é uma profunda ocupação com a minha própria vida. Não é mágoa, é indiferença. Não é exagero, é escolha!


 

Provérbios 16:9

quarta-feira, 21 de outubro de 2020


Minha lembrança me permite agradecer quem gosta de mim como sou.

Não sou grande coisa, porque não sou coisa.

Sou gente que sente!


as mulheres vão embora

 


Toda mulher tem um homem que se foi. Assim começa um poema que escrevi cerca de 20 anos atrás, reforçando a ideia de que eles saem para comprar cigarro e esquecem de voltar. A sociedade sempre aceitou como natural a figura do homem que um dia se enrabicha por outra e abandona a família, ou, dizendo de forma menos cafajeste, a do homem que deixa de amar a esposa e reconstrói sua vida. Pertencia só a eles a liberdade de ir e vir. Tinham dinheiro no bolso e eram donos de seus narizes: às mulheres restavam as lágrimas e uma pensão para os filhos, tivessem um bom advogado.


Hoje, as mulheres também vão embora. Não precisam alegar que irão comprar cigarro na esquina, a sinceridade é mais saudável: elas se vão porque a relação se desgastou, se vão para escapar de um parceiro agressivo, se vão porque se apaixonaram por outro, se vão porque evoluíram profissionalmente e novas oportunidades surgiram. Se vão porque assim decidiram.


Diante da secular hegemonia masculina, nossa independência ainda é uma novidade, nem todos se acostumaram. Mas homens esclarecidos e sagazes nos respeitam. Sofrem, como nós sofremos com a partida deles. Choram. A dor da perda é a mesma. Vez que outra, os mais inconsoláveis rogam praga: você vai ficar sozinha para o resto da vida!. Cuidado. Em vez de inibi-la, a ameaça pode entusiasmá-la: o que não falta é mulher sonhando em sair de uma relação para viver só para seus livros, filmes e amigos, livre como o vento soprando nas montanhas.


Pena que não há poesia na ignorância. Uma mulher que se vai, para muitos, é uma afronta. Homens mal preparados para a igualdade não sabem lidar com a rejeição. Em vez de buscarem uma terapia para ajudar, eles buscam a arma que escondem em cima do armário, buscam uma faca na gaveta da cozinha e aumentam os índices de feminicídio. É só ler os jornais, acompanhar as estatísticas. É sempre a mesma razão banal: matou porque ela teve a audácia de largá-lo.


Extra, extra! As mulheres vão embora. Ganham o próprio salário e vão embora. Leem, se informam, se unem, se reconhecem em outras mulheres e, se for necessário, vão embora. São mães e vão embora sem fugir de suas responsabilidades: estão protegendo os filhos de um ambiente hostil. Amaram seus homens, foram felizes com eles e, quando deixaram de ser, foram embora. Nada de novo, é o que os homens sempre fizeram. Novidade seria se eles fossem assassinados por causa disso.


Eduquemos bem nossos meninos de oito, de 10, de 15 anos: mulheres não são propriedade alheia, elas vão embora. Cientes dessa realidade, quando adultos eles se tornarão os melhores companheiros, os mais inteligentes, os mais amorosos, aqueles que darão a suas parceiras todos os motivos para ficar.



 

#pronto falei!



Isaías 43:1

terça-feira, 20 de outubro de 2020

a alma do outro


No relacionamento amoroso, familiar ou amigo acredito que partilhar a vida com alguém que valha a pena é enriquecê-la. Permanecer numa relação desgastada é suicídio emocional, é desperdício de vida

A alma do outro é uma floresta escura”, disse o poeta Rainer Maria Rilke, meu único autor de cabeceira.
A vida vai nos ensinando quanto isso é verdade. Pais e filhos, irmãos, amigos e amantes podem conviver décadas a fio, podem ter uma relação intensa, podem se divertir juntos e sofrer juntos, ter gostos parecidos ou complementares, ser interessantes uns para os outros, superar grandes conflitos – mas persiste o lado avesso, o atrás da máscara, que nunca se expõe nem se dissipa.

Nem todos os mal-entendidos, mágoas e brigas se dão porque somos maus, mas por problemas de comunicação. Porque até a morte nos conheceremos pouco, porque não sabemos como agir. Se nem sei direito quem sou, como conhecer melhor o outro, meu pai, meu filho, meu parceiro, meu amigo – e como agir direito?
(…)
Amor e amizade transitam entre esses dois eusque se relacionam em harmonia e conflito: afeto, generosidade, atenção, cuidados, desejo de partilhamento ou de vida em comum, vontade de fazer e ser um bem, e de obter do outro o que para a gente é um bem, o complicado respeito ao espaço do outro, formam um campo de batalha e uma ponte. Pontes podem ser precárias, estradas têm buracos, caminhos escondem armadilhas inconscientes que preparamos para nossos próprios passos em direção do outro. O que está mergulhado no inconsciente é nosso maior tesouro e o mais insidioso perigo.

Pensar sobre a incomunicabilidade ou esse espaço dela em todos os relacionamentos significa pensar no silêncio: a palavra que devia ter sido pronunciada, mas ficou fechada na garganta e era hora de falar; o silêncio que não foi erguido no momento exato – e era o momento de calar.

Mas, como escrevi várias vezes, a gente não sabia. É a incomunicabilidade, não por maldade ou jogo de poder, mas por alienação ou simples impossibilidade. Anos depois poderá vir a cobrança: por que naquela hora você não disse isso? Ou: por que naquele momento você disse aquilo?

Relacionar-se é uma aventura, fonte de alegria e risco de desgosto. Na relação defrontam-se personalidades, dialogam neuroses, esgrimem sonhos e reina o desejo de manipular disfarçado de delicadeza, necessidade ou até carinho. Difícil? Difícil sem dúvida, mas sem essa viagem emocional a existência é um deserto sem miragens. No relacionamento amoroso, familiar ou amigo acredito que partilhar a vida com alguém que valha a pena é enriquecê-la; permanecer numa relação desgastada é suicídio emocional, é desperdício de vida. Entre fixar e romper, o conflito e o medo do erro.

Somos todos pobres humanos, somos todos frágeis e aflitos, todos precisamos amar e ser amados, mas às vezes laços inconscientes enredam nossos passos e fecham nosso coração. A balança tem de ser acionada: prevalecem conflitos ásperos e a hostilidade, ou a ternura e aqueles conflitos que ajudam a crescer e amar melhor, a se conhecer melhor e melhor enxergar o outro? O olhar precisa ser atento: mais coisas negativas ou mais gestos positivos? Mais alegria ou mais sofrimento? Mais esperança ou mais resignação?
Cabe a cada um de nós decidir, e isso exige auto-exame, avaliação. Posso dizer que sempre vale a pena, sobretudo vale a pena apostar quando ainda existe afeto e interesse, quando o outro continua sendo um desafio em lugar de um tédio, e quando, entre pais e filhos, irmãos, amigos ou amantes, continua a disposição de descobrir mais e melhor quem é esse outro, o que deseja, de que precisa, o que pode – o que lhe é possível fazer.

Em certas fases, é preciso matar a cada dia um leão; em outras, estamos num oásis. Não há receitas a não ser abertura, sinceridade, humildade que não é rebaixamento. Além do amor, naturalmente, mas esse às vezes é um luxo, como a alegria, que poucos se permitem.

Seja como for, com alguma sorte e boa vontade a alma do outro pode também ser a doce fonte da vida.