sábado, 31 de outubro de 2020
a paciência de Jô
Jossylmara nasceu
detestando seu nome. Soletrou a vida toda, enfrentou bullying na lista de
chamada da escola e, por fim, dia após dia, chegou aos 23 anos sem conseguir
responder por qual ódio especial à vida seus pais tinham lhe dado aquele nome.
Assumiu-se Jô. Evitava a vogal aberta porque tinha ojeriza a uma vizinha que
adotara o Jó como apelido.
Jô tinha crescido
infeliz. Era uma insatisfação geral consigo e com o mundo. Tudo era desmedido
para ela; ou era pouco (pouca renda, pouca estatura) ou muito (muito trem e
ônibus, muita barriga). Seguiu a vida esperada e conseguiu concluir o Ensino
Médio. Jô ouvira do pastor que precisava ter a paciência que seu nome indicava
na Bíblia. Ela duvidou que houvesse alguma profetisa com o nome que a
incomodava. “Deus dá e Deus tira, bendito seja o nome do Senhor”, citou o líder
religioso. Amarga, Jô voltava para casa retrucando: “De mim, só tirou”.
A corte celeste está
reunida. Satanás chegou sem convite diante do Todo Poderoso. Vangloriou-se dos
seus muitos seguidores pelo mundo e anunciou novos planos de expansão de
mercado. Deus mostrou-lhe um poço no qual se via Jô voltando para casa e
reclamando. “Você consegue derrubar o mais elevado sonho e desgastar a fé mais
robusta. Já imaginou tentar fazer feliz essa mulher?”. O demônio gostava de
desafios. Tinha ouvido no RH do Inferno que precisava sair “da caixinha”, que
estava muito acomodado nos últimos 40 mil anos no mesmo lugar. Por tédio ou
para irritar o Arcanjo Miguel que se postava ao lado do Pai, aceitou. Jô seria
uma mulher feliz.
Resmungando como de
hábito, Jô desceu do ônibus e, sem perceber, uma mão diabólica a empurrou na
frente de um carro de luxo. Calma, queridas leitoras e estimados leitores. O
diabo escreve errado por linhas retas. O carro bateu de leve na infeliz e ela
caiu. O motorista era um jovem afortunado e, algo raro, recolheu a jovem e a
levou ao hospital particular mais próximo. O pai do rapaz era candidato a
prefeito e achou que o caso poderia ser um obstáculo à pretensão política.
Quando Jô despertou no leito de um quarto privado, viu-se cercada de flores e
afetos. Dr. Diogo, o zeloso candidato, tinha pedido que aproveitassem a
inconsciência da jovem para restaurar os dentes que ele supunha quebrados no
acidente. Na verdade, eram ruins antes, mas Jô foi aceitando sem questionar. A
comida do hospital era balanceada e a paciente perdeu bastante peso com
fisioterapia. Tinha saído do hospital com uma boca nova e com corpo muito
melhor do que entrara. A família do político ofereceu uma pensão e uma viagem
para ela descansar do incidente. Supunham que ela processaria a todos. Jô ia
aceitando tudo, dizendo obrigados, sem saber que a mão do demônio estava ali,
arranjando aquela ventura.
A viagem de Jô foi um
impacto. Pela primeira vez ela pegou um avião e viu o mundo. A rotina da
pobreza era um torpor, e ela tinha despertado. Descobriu-se ávida de saber.
Tinha sido aluna indolente. Era, agora, um prodígio de leitura. O peso perdido
no hospital virou uma meta de vida. Treinava diariamente correndo. Os museus
foram visitados com sofreguidão. Os cremes do hotel tinham revelado uma pele
excelente que apenas se ressentia de um histórico de ausência de cuidados.
Voltou ao Brasil dois meses depois. Era uma nova mulher. Como a situação política
do segundo turno ainda não tinha se definido, a família do candidato ofereceu a
ela um flat nos jardins e uma renda. Tudo era para calar a nova e radiosa boca
da vítima. Para selar a felicidade de sua nova protégée, o Diabo inspirou aos
advogados do candidato que a situação era delicada e a oferta deveria ser
maior.
Meses após o empurrão
diante do carro de luxo, ela era outra pessoa. Quem a visse selecionando um
vinho nunca imaginaria, magra e sorridente, a moça infeliz de há pouco. O seu
mentor infernal não cansava de contar vantagem nas reuniões da firma celeste.
Na convenção do fim do ano, o Demônio apresentou o case de Jô com um power
point maravilhoso. Foi aplaudido de pé até por Santo Antônio. Deus, CEO de
tudo, sorria com certa ironia quase cansada.
A jovem explodia de
felicidade. Desejava mais viagens. O corpo estava ótimo, porém poderia
melhorar. Tinha conseguido um emprego ótimo. Já nem precisaria da mesada do
candidato. Ao deitar a cabeça na fronha de mil fios, Jô começara a imaginar a
vida passada. Insinuou-se uma dor: “E se eu voltar a ser pobre e feia de novo?”.
Afastou a ideia e tentou conciliar o sono... que não veio. Sabia o horror de
ganhar o suficiente para chegar ao fim do mês. Trabalhar sem parar e obter o
mínimo. Olhou no espelho do banheiro e viu seu novo rosto com dentes perfeitos
e se lembrou de tudo. Aquilo era uma máscara. Seu rosto antigo continuava lá
sob todos os disfarces. Foi a primeira vez que ela notou que a felicidade tinha
sido rápida demais e que o risco de tudo retroceder era real. Chorou muito,
como nunca tinha chorado. Era infeliz antes do acidente, porém, sem muita
consciência. Agora, era desesperadamente infeliz. Tinha experimentado tudo o
que desejava e o medo explodira com a nova fase. Entrou em crise. Desenvolveu síndrome
de pânico. Não conseguia mais sair à rua com medo de perder o que tinha
conseguido. Temia a velha aparência que dormia sob a capa dourada da nova.
Jossylmara renasceu deprimida. Olhando, invisível, Satanás também estava intrigado. Ele ajudara em tudo. Sondava os anseios dela e atendia. Era bom nisso. Estava tão absorto na análise da depressão de Jô que não percebeu que Deus tinha vindo ao quarto. “Eles aceitam tudo, meu caro, menos a felicidade. Venho tentando desde o Éden...”. O Diabo concordou. Voltou a fazer o mal que era algo mais natural e bem aceito. Possuiu mais pessoas, afastou casais e levou muita gente ao vício. Era temido, e todos achavam aquilo natural. Os irmãos de Jô a retiraram do quarto do flat em crítico estado depressivo. Ao retornar ao casebre, ela sorriu pela primeira vez em semanas. “Deus dá e Deus tira, bendito seja o nome do Senhor”, sussurrou. É preciso ter a paciência e a esperança do Jó bíblico para as agruras deste mundo...
“Não gosto da vida em banho-maria,
gosto de fogo, pimenta, alho, ervas, por um triz não sou uma bruxa.”
#Halloween
#dia nacional da poesia
A data, que passou a ser conhecida
como Dia D – Dia Drummond –, criado pelo Instituto Moreira Salles em
2011, é comemorada no Brasil e em Portugal. Além de homenagear o grande
escritor, o marco tem por objetivo estimular escolas, centros culturais,
bibliotecas e livrarias a organizar eventos inspirados na obra de um dos
maiores nomes da literatura brasileira.
quinta-feira, 29 de outubro de 2020
sublinhados
A ideia é que a gente
sinta alegria, mesmo que experimente também tristeza por todo o sofrimento que
existe nesse mundo. Que os melhores sorrisos aconteçam com dadivosa frequência.
Que a convivência com nós mesmos seja prazerosa. Que a gente não demore muito a
descobrir o quanto é valioso servir.
A ideia é que a gente
descubra que a cura também acontece quando de diferentes maneiras nós ajudamos
a curar. Que a gente descubra jeitos mais leves de existir. Que ouvir o próprio
coração se torne um alimento. Que a gente descubra as próprias razões para
estar aqui agora. Que viver seja, principalmente, uma experiência amorosa.
A ideia é que tenha luz,
um bocado de alma e significado.
quarta-feira, 28 de outubro de 2020
terça-feira, 27 de outubro de 2020
Eu queria fazer um texto
sobre autoestima. Sempre me julguei apta a incentivar mulheres a se amarem
mais, afinal, sempre me amei bastante.
Será? Quando resolvi que
ia postar a foto acima, resolvi quase inconscientemente também tentar dar uma
disfarçada na minha barriga nela.
E o fiz. Para quem não
tem nenhuma experiência com esses aplicativos, acho que o resultado até foi
satisfatório.
No entanto, como postar
um texto sobre autoestima com uma foto modificada? Como eu poderia dizer para
vocês aceitarem suas belezas (e suas carecas, se esse for o caso) se eu mesma
não podia aceitar uma barriga.
Sim, eu tinha 26 anos
nessa foto, estava passando por tudo que a quimioterapia traz e mesmo assim,
era incapaz de me orgulhar do corpo que eu carregava.
Isso me mostra o quão
refém ainda sou dos padrões e o quanto ainda preciso trabalhar dentro de mim
mesma.
Pode parecer
incompreensível para algumas pessoas, mas para mim, naquele momento, era muito
mais fácil estar careca do que fora do peso.
E conversando com outras
mulheres que passaram por isso, vejo que não estava sozinha.
Já perdi alguns quilos
desde que o tratamento acabou, mas meu corpo está longe de voltar a ser o que
era. Talvez nunca volte e eu ainda não sei como aceitar isso.
Essa publicação vem no
intuito de incentivar uma reflexão. Quando estaremos genuinamente dispostas a
perdoar nossas “falhas” ou amar nossas “imperfeições”? Até quando precisaremos
da aprovação do outro? Até quando estaremos fazendo discursos de auto ajuda na
internet e precisando de ajuda por dentro?
A vida não é justa,
ninguém é feliz o tempo todo e nenhum corpo é perfeito.
O que significa ser uma
jovem adulta da Geração Pugliesi? O que esse padrão inatingível gera na maioria
das mulheres é sofrido demais.
Sei que existe um
movimento sobre “ame suas imperfeições” pelo qual eu tenho respeito e me
identifico.
Porém meu questionamento
aqui é exatamente o quanto ele é vivido e não apenas falado. Como assumir e
aceitar nossos defeitos, não só da boca pra fora mas do coração pra dentro. De
nada adianta sorrir no Instagram e chorar no banheiro.
Um exercício diário, vamos
juntas?
narrar-se
domingo, 25 de outubro de 2020
vida longa ao rei!
“Sempre achei que o
melhor professor de português do Brasil foi o Pelé. Quem o viu jogar ou hoje vê
os seus teipes sabe que o Pelé jamais fez uma jogada que não fosse parte de uma
progressão para o gol. O sentido de tudo que o Pelé escrevia com a bola no campo
era o gol. O drible espetacular era apenas circunstancialmente, com perdão do
longo advérbio, espetacular, porque ele existia em função do objetivo final.
A lição para escritores
é: defina o seu gol e tente chegar lá como o Pelé chegaria, com poucos, mas
definitivos toques, sem nunca deixar que os meios o desviem do fim. E se, no
caminho para o gol, você fizer alguma coisa espetacular, esforce-se para dar a
impressão de que foi apenas por obrigação.”
O rei do futebol, Pelé, foi o oitentão mais falado da semana.
indolores
Feliz de quem não sente
dor. Dor alguma. É o ponto de equilíbrio necessário para tudo o que fazemos na
vida, vantagem prioritária diante de qualquer situação que se apresente. Nada
se compara a este estado de plenitude, a esta sorte divina.
Caminhar sem sentir dor
nas panturrilhas. Correr sem sentir dor no joelho. Dormir uma noite inteira sem
ser despertado pelos incômodos da artrose. Percorrer sentada todo o trajeto do
ônibus sem sentir dor nas costas. Ou viajar em pé, sem dor no ciático. Nem
saber o que é ciático.
Comer algo bem gelado sem
sentir dor de dente. Não arrancar com os dentes a pele em volta da unha. Não
provocar feridas em si mesmo.
O ouvido não zunir. Não
sentir dor de estômago. Não ficar enjoado em passeios de barco. Alguém por aí
tem andado de barco? Nem sei se enjoo pode ser considerado dor. Dor é pedra no
rim. Cálculo renal, o horror.
Tonturas, contraturas,
queimaduras, fraturas: zero. Nem sinal. Há 300 dias sem quebrar um osso, sem
encostar a mão no forno, sem prender o dedo na porta, sem ficar com a coluna
torta.
Trabalhar sem sentir dor
de cabeça. Assistir aos telejornais sem sentir dor de cabeça. Transar sem
sentir dor de cabeça. Dor de cabeça nenhuma, nem como metáfora, nem como
desculpa, nem de fato.
E tampouco sentir
saudade, que machuca bastante também. Vontade de voltar para a rua é normal,
mas a saudade de quem nunca voltará para nós é infernal (se não tiver grandes
urgências lá fora, fique em casa só mais um pouquinho).
Não ser atacada por maus
pensamentos. Não enxergar apenas o lado escuro da vida. Ter tido a bênção de
nascer com a alma leve e despreocupada, mesmo tendo contas atrasadas para pagar
e um futuro que amedronta. O destino é incerto, vá que no meio da estrada uma
surpresa boa erga o braço e te peça uma carona.
Não estar profundamente
triste. Nem desesperada.
Nenhum parente internado.
Nenhuma briga em família. Nem mesmo um cisco no olho, um ombro enferrujado, um
sonho perdido, uma angústia pelas manhãs, uns soluços à tardinha, nadinha, nadinha,
e ainda por cima a conexão está funcionando direitinho, não tem caído, uma
maravilha.
2020 se encaminha para o
fim, e quem sobreviveu às estatísticas fatais não escapou de ser atropelado
(ligeira ou drasticamente) pela excepcionalidade da situação. Alguém anotou a
placa? Que pessoa afortunada a que estiver atravessando ilesa essa pandemia,
sem sentir nenhuma espécie de dor, nenhum efeito psicossomático ou coisa que o
valha. Ou tem um anjo da guarda danado de bom, ou ainda não entendeu nada.
sábado, 24 de outubro de 2020
casamento
De vez em quando o diabo me aparece e temos
longas conversas.
Em nada se parece com o que dizem dele: rabo,
chifres, patas de bode e cheiro de enxofre. Cavalheiro de voz mansa e racional,
bem vestido, apreciador de desodorantes finos, me surpreende sempre pela lógica
dos seus argumentos. Nada de futilidades. Só fala sobre o essencial, estilo que
aprendeu com Deus, nos anos em que foi seu discípulo. Percebi que era ele
quando notei que trazia na sua mão direita o martelo e, na esquerda, a bigorna.
Pois esta é a sua missão: martelar as certezas, ferro contra ferro, para ver se
sobrevivem ao teste.
Já se preparava para dar a primeira martelada
quando o interrompi:
– Que é isto que você vai bater? Acho que vai
se partir em mil pedaços…
A coisa que estava sobre a bigorna me parecia
feita de louça, um bibelô delicado e frágil, e lamentei que o diabo fosse
esmigalhá-la.
– Não tenho outra alternativa – ele me
respondeu. – É parte de uma aposta que fiz com Deus. Este bibelô delicado é o
casamento. E você pode estar certo: não resistirá ao ferro do meu martelo!
Fiquei indignado que ele estivesse maquinando
coisa tão perversa e passei ao ataque.
– Não é à toa que os religiosos dizem que você
é o anti-Deus. Deus junta. Você separa! A sua bigorna já destruiu muitos lares!
Ele não tinha pressa. Descansou o seu martelo
e me falou com voz imperturbada:
– Já estou acostumado às calúnias. Mas não
existe coisa alguma mais distante da verdade. Se há uma coisa que eu desejo é
um casamento duradouro, até que a morte os separe. Se ponho o casamento na
bigorna é justamente para provar que a receita do Criador não funciona. A minha
é muito mais eficaz.
Como o meu silêncio indicasse minha disposição
em ouvi-lo, ele continuou a falar:
– Todo mundo sabe que, no início, eu era a mão
direita de Deus. Estávamos de acordo em tudo. Ele mandava, eu fazia. Foi por
causa do casamento que nos separamos. Até então trabalhávamos juntos. Quando
Deus disse que não era bom que o homem estivesse só, e melhor seria que ele
tivesse uma mulher, eu concordei. Quando Deus disse que esta união teria de ser
sem fim, até a morte, eu aplaudi. Mas aí apareceu o pomo da discórdia. Para
colar o homem na mulher, Deus foi buscar uma bisnaguinha de amor. Protestei.
Argumentei:
– Senhor! Amor é coisa muito fraca, de duração
efêmera! Quem é colado com o amor logo se separa!
Citei o poeta: “Que não seja imortal, posto
que é chama, mas que seja infinito enquanto dure!” Amor é chama tênue, fogo de
palha. Não pode ser imortal. No começo, aquele entusiasmo. Mas logo se apaga.
Chama de vela, fraquinha, que se vai com qualquer ventinho… Amor é bibelô de louça.
Todos os amantes sabem disso, mesmo os mais apaixonados. E não é por isso que
sentem ciúmes? Ciúme é a consciência dolorosa de que o objeto amado não é
posse: ele pode voar a qualquer momento. Por isto o amor é doloroso, está cheio
de incertezas. Discreto tocar de dedos, suave encontro de olhares: coisa
deliciosa, sem dúvida. E é por isso mesmo, por ser tão discreto, por ser tão
suave, que o amor se recusa a segurar. Amar é ter um pássaro pousado no dedo.
Quem tem um pássaro pousado no dedo sabe que, a qualquer momento, ele pode
voar. Como construir uma relação duradoura com cola tão fraquinha? Por isto os
casais se separam, por causa do amor, pela ilusão de um outro amor. Qualquer
tolo sabe que o pássaro só fica se estiver na gaiola. O amor é cola fraca para
produzir um casamento duradouro porque no amor vive o maior inimigo da
estabilidade: a liberdade. É preciso que o pássaro aprenda que é inútil bater
asas. Um casamento duradouro é aquele em que o homem e a mulher perderam as
ilusões do amor.
– Foi aí que nos separamos – ele continuou.
– Não porque discordássemos que casamento
deveria ser eterno. É isto que eu quero. Nos separamos porque não estávamos de
acordo sobre o que é que junta um homem e uma mulher, eternamente. Deus é um
romântico. Eu sou um realista.
– Qual foi então a sua proposta? Que cola
deveria ser usada?- perguntei, perplexo.
– O ódio. – respondeu ele. – Enganam-se
aqueles que dizem que o ódio separa. A verdade é que o ódio junta as pessoas.
Como disse um jagunço do Guimarães Rosa, quem odeia o outro, leva o outro para
a cama. Diferente do fogo da vela, o fogo do ódio é como um vulcão. Não se
apaga nunca. Por fora pode parecer adormecido. No fundo, as chamas crepitam. A
diferença entre os dois? O amor, por causa da liberdade, abre a mão e deixa o
outro ir. No amor existe a permanente possibilidade de separação. Mas o ódio
segura. Não tenha dúvidas. Os casamentos mais sólidos são baseados no ódio. E
sabe por que o ódio não deixa ir? Porque ele não suporta a fantasia do outro,
voando livre, feliz. O ódio constrói gaiolas, e ali dentro ficam os dois,
moendo-se mutuamente numa máquina de moer carne que gira sem parar, cada um se
nutrindo da infelicidade que pode causar no outro. As pessoas ficam juntas para
se torturarem. Não menospreze o poder do sadismo. Ah! A suprema felicidade de
fazer o outro infeliz!
Com estas palavras ele tomou do seu martelo e
voltou ao seu trabalho:
– Tenho de provar que eu, e não Deus, sou quem
sabe a receita do casamento que só a morte pode separar.
Eu me persignei três vezes e compreendi que o
inferno está mais perto do que eu pensava.
quinta-feira, 22 de outubro de 2020
A beleza da vida se esconde por ali, e por mais uma infinidade de lugares, basta saber, e principalmente, basta querer enxergar...”
falta
quarta-feira, 21 de outubro de 2020
Minha lembrança me permite agradecer quem gosta de mim como sou.
Não sou grande coisa,
porque não sou coisa.
Sou gente que sente!
as mulheres vão embora
“Toda mulher tem um homem que se foi.” Assim começa um poema que escrevi cerca de 20 anos atrás, reforçando a ideia de que eles saem para comprar cigarro e esquecem de voltar. A sociedade sempre aceitou como natural a figura do homem que um dia se enrabicha por outra e abandona a família, ou, dizendo de forma menos cafajeste, a do homem que deixa de amar a esposa e reconstrói sua vida. Pertencia só a eles a liberdade de ir e vir. Tinham dinheiro no bolso e eram donos de seus narizes: às mulheres restavam as lágrimas e uma pensão para os filhos, tivessem um bom advogado.
Hoje, as mulheres também vão
embora. Não precisam alegar que irão comprar cigarro na esquina, a sinceridade
é mais saudável: elas se vão porque a relação se desgastou, se vão para escapar
de um parceiro agressivo, se vão porque se apaixonaram por outro, se vão porque
evoluíram profissionalmente e novas oportunidades surgiram. Se vão porque assim
decidiram.
Diante da secular
hegemonia masculina, nossa independência ainda é uma novidade, nem todos se
acostumaram. Mas homens esclarecidos e sagazes nos respeitam. Sofrem, como nós
sofremos com a partida deles. Choram. A dor da perda é a mesma. Vez que outra,
os mais inconsoláveis rogam praga: “você vai ficar sozinha para o resto da
vida!”. Cuidado. Em vez de inibi-la, a ameaça pode entusiasmá-la: o que não
falta é mulher sonhando em sair de uma relação para viver só para seus livros,
filmes e amigos, livre como o vento soprando nas montanhas.
Pena que não há poesia na
ignorância. Uma mulher que se vai, para muitos, é uma afronta. Homens mal
preparados para a igualdade não sabem lidar com a rejeição. Em vez de buscarem
uma terapia para ajudar, eles buscam a arma que escondem em cima do armário,
buscam uma faca na gaveta da cozinha e aumentam os índices de feminicídio. É só
ler os jornais, acompanhar as estatísticas. É sempre a mesma razão banal: matou
porque ela teve a audácia de largá-lo.
Extra, extra! As mulheres
vão embora. Ganham o próprio salário e vão embora. Leem, se informam, se unem,
se reconhecem em outras mulheres e, se for necessário, vão embora. São mães e
vão embora sem fugir de suas responsabilidades: estão protegendo os filhos de
um ambiente hostil. Amaram seus homens, foram felizes com eles e, quando
deixaram de ser, foram embora. Nada de novo, é o que os homens sempre fizeram.
Novidade seria se eles fossem assassinados por causa disso.
Eduquemos bem nossos
meninos de oito, de 10, de 15 anos: mulheres não são propriedade alheia, elas
vão embora. Cientes dessa realidade, quando adultos eles se tornarão os
melhores companheiros, os mais inteligentes, os mais amorosos, aqueles que
darão a suas parceiras todos os motivos para ficar.