De vez em quando o diabo me aparece e temos
longas conversas.
Em nada se parece com o que dizem dele: rabo,
chifres, patas de bode e cheiro de enxofre. Cavalheiro de voz mansa e racional,
bem vestido, apreciador de desodorantes finos, me surpreende sempre pela lógica
dos seus argumentos. Nada de futilidades. Só fala sobre o essencial, estilo que
aprendeu com Deus, nos anos em que foi seu discípulo. Percebi que era ele
quando notei que trazia na sua mão direita o martelo e, na esquerda, a bigorna.
Pois esta é a sua missão: martelar as certezas, ferro contra ferro, para ver se
sobrevivem ao teste.
Já se preparava para dar a primeira martelada
quando o interrompi:
– Que é isto que você vai bater? Acho que vai
se partir em mil pedaços…
A coisa que estava sobre a bigorna me parecia
feita de louça, um bibelô delicado e frágil, e lamentei que o diabo fosse
esmigalhá-la.
– Não tenho outra alternativa – ele me
respondeu. – É parte de uma aposta que fiz com Deus. Este bibelô delicado é o
casamento. E você pode estar certo: não resistirá ao ferro do meu martelo!
Fiquei indignado que ele estivesse maquinando
coisa tão perversa e passei ao ataque.
– Não é à toa que os religiosos dizem que você
é o anti-Deus. Deus junta. Você separa! A sua bigorna já destruiu muitos lares!
Ele não tinha pressa. Descansou o seu martelo
e me falou com voz imperturbada:
– Já estou acostumado às calúnias. Mas não
existe coisa alguma mais distante da verdade. Se há uma coisa que eu desejo é
um casamento duradouro, até que a morte os separe. Se ponho o casamento na
bigorna é justamente para provar que a receita do Criador não funciona. A minha
é muito mais eficaz.
Como o meu silêncio indicasse minha disposição
em ouvi-lo, ele continuou a falar:
– Todo mundo sabe que, no início, eu era a mão
direita de Deus. Estávamos de acordo em tudo. Ele mandava, eu fazia. Foi por
causa do casamento que nos separamos. Até então trabalhávamos juntos. Quando
Deus disse que não era bom que o homem estivesse só, e melhor seria que ele
tivesse uma mulher, eu concordei. Quando Deus disse que esta união teria de ser
sem fim, até a morte, eu aplaudi. Mas aí apareceu o pomo da discórdia. Para
colar o homem na mulher, Deus foi buscar uma bisnaguinha de amor. Protestei.
Argumentei:
– Senhor! Amor é coisa muito fraca, de duração
efêmera! Quem é colado com o amor logo se separa!
Citei o poeta: “Que não seja imortal, posto
que é chama, mas que seja infinito enquanto dure!” Amor é chama tênue, fogo de
palha. Não pode ser imortal. No começo, aquele entusiasmo. Mas logo se apaga.
Chama de vela, fraquinha, que se vai com qualquer ventinho… Amor é bibelô de louça.
Todos os amantes sabem disso, mesmo os mais apaixonados. E não é por isso que
sentem ciúmes? Ciúme é a consciência dolorosa de que o objeto amado não é
posse: ele pode voar a qualquer momento. Por isto o amor é doloroso, está cheio
de incertezas. Discreto tocar de dedos, suave encontro de olhares: coisa
deliciosa, sem dúvida. E é por isso mesmo, por ser tão discreto, por ser tão
suave, que o amor se recusa a segurar. Amar é ter um pássaro pousado no dedo.
Quem tem um pássaro pousado no dedo sabe que, a qualquer momento, ele pode
voar. Como construir uma relação duradoura com cola tão fraquinha? Por isto os
casais se separam, por causa do amor, pela ilusão de um outro amor. Qualquer
tolo sabe que o pássaro só fica se estiver na gaiola. O amor é cola fraca para
produzir um casamento duradouro porque no amor vive o maior inimigo da
estabilidade: a liberdade. É preciso que o pássaro aprenda que é inútil bater
asas. Um casamento duradouro é aquele em que o homem e a mulher perderam as
ilusões do amor.
– Foi aí que nos separamos – ele continuou.
– Não porque discordássemos que casamento
deveria ser eterno. É isto que eu quero. Nos separamos porque não estávamos de
acordo sobre o que é que junta um homem e uma mulher, eternamente. Deus é um
romântico. Eu sou um realista.
– Qual foi então a sua proposta? Que cola
deveria ser usada?- perguntei, perplexo.
– O ódio. – respondeu ele. – Enganam-se
aqueles que dizem que o ódio separa. A verdade é que o ódio junta as pessoas.
Como disse um jagunço do Guimarães Rosa, quem odeia o outro, leva o outro para
a cama. Diferente do fogo da vela, o fogo do ódio é como um vulcão. Não se
apaga nunca. Por fora pode parecer adormecido. No fundo, as chamas crepitam. A
diferença entre os dois? O amor, por causa da liberdade, abre a mão e deixa o
outro ir. No amor existe a permanente possibilidade de separação. Mas o ódio
segura. Não tenha dúvidas. Os casamentos mais sólidos são baseados no ódio. E
sabe por que o ódio não deixa ir? Porque ele não suporta a fantasia do outro,
voando livre, feliz. O ódio constrói gaiolas, e ali dentro ficam os dois,
moendo-se mutuamente numa máquina de moer carne que gira sem parar, cada um se
nutrindo da infelicidade que pode causar no outro. As pessoas ficam juntas para
se torturarem. Não menospreze o poder do sadismo. Ah! A suprema felicidade de
fazer o outro infeliz!
Com estas palavras ele tomou do seu martelo e
voltou ao seu trabalho:
– Tenho de provar que eu, e não Deus, sou quem
sabe a receita do casamento que só a morte pode separar.
Eu me persignei três vezes e compreendi que o
inferno está mais perto do que eu pensava.