O céu ostenta uma nuvem
de fogo. Uma gorda e fofa brasa disfarçando o sol sobre um azul opaco de fim de
tarde. Volto para casa depois de mais uma viagem. Desta vez, deixei alguma
coisa por lá. Talvez a esperança de uma ilusão que se dissolveu pelo caminho.
Preciso chorar por isso
tudo. Tenho chorado a prestação, em pequenos momentos de delicadeza que me
remetem ao que sonhei para nós. A música do comercial das bolas, que girava em
looping no seu notebook durante aquela noite em que nos encantamos um com o outro.
Junto com uma sensação de fracasso, ficaram muitas interrogações, a maioria
delas vindas de perguntas que você mesmo nunca quis se fazer. Devolvo aqui cada
uma delas.
Lembro de um encontro
simples e natural entre duas pessoas dispostas a seguir juntas, não importava o
que acontecesse. Lembro de noites em claro em que muitos segredos foram
revelados, confissões feitas e acolhidas por corações abertos e limpos. Lembro
de medos postos na mesa, planos traçados e uma família sendo delicadamente
construída com tudo o que tínhamos recolhido – de bom e de ruim – pelo caminho.
Lembro dos seus olhos verdes me olhando vivos como sempre, ávidos por tudo o
que eu tinha para lhe dar. Lembro de noites maldormidas em uma cama não tão
grande, como se adormecer fosse a ameaça de perder de vista a descoberta
preciosa que havíamos feito. Nós tínhamos nos encontrado. E o trato de seguir
de mãos dadas foi espontâneo, esperado, comemorado, comovente. Lembro de uma
sensação de proteção com a qual há muito tempo eu não sonhava.
Não tive dúvidas: era com
você que eu queria ir. Eu sabia que não seria fácil nem simples. Mas cada vez
que você tomava a minha mão eu sentia que valia a pena ir naquela direção. Fui
inteira, de mala, cuia e filho, sem me importar em deixar reservas para uma
possível mudança de planos. Você não precisou ir. Apenas ficou. Você, que se
planeja. Reserva para o futuro. Você, que poupa dinheiro, palavras, fúria,
noites de sono. Poupa a si mesmo para o que pode faltar mais adiante.
Você prefere viver na
companhia do medo – é a ele que você verdadeiramente se entrega. Eu, não. Eu
não guardo nada. Nem dinheiro, nem raiva, nem palavras, nem segredos. Como
escrevo essa carta para não deixar nem mesmo palavras não ditas.
Gosto da sensação de ter
sido lapidada pelas pessoas. Com um ex-namorado aprendi a dirigir mais suave,
com uma amiga aprendi o prazer de um café, com meu pai aprendi o humor, com
minha mãe a alegria. Você me ensinou muitas coisas e eu estive disposta a
aprender. Você não via em mim nada para somar. Eu sou muito brava, perco a
paciência fácil, digo o que penso sem calcular. E a intensidade dessa fúria é a
mesma que alimenta um amor que luta muito e não desiste fácil. Sou furiosa para
confessar o que me incomoda, tanto quanto para lutar pelo amor em que acredito.
Você se preserva, não sei exatamente por quê, mas o fato é que se guarda muito,
se guarda inteiro. Para não lhe faltar.
E por muitas vezes você
não disse o que sentia, o que pensava, preferiu se controlar para não machucar.
Com algum fato ou alguém você aprendeu que é feio se mostrar, sentir raiva,
levantar a voz, ser humano e falível, como se evitar desrespeitar o outro
justificasse desrespeitar-se a si mesmo. Já eu aprendi que respeito anda lado a
lado com a palavra mútuo, e peitei as leis da polidez. Aprendi que deixar
escapar minha fúria pode ser um grande sinal de amor. Despir-se diante do outro
é entrega. Aprendi que aceitar os meus defeitos é antes de tudo não
escondê-los. Nem de mim, nem de ninguém. Sou falível, sim. Sou bicho, às vezes.
E é isso que me deixa ser gente, e não robô. Não sorrio o tempo todo, não falo
baixo e comedida por mais tempo do que aguento.
E é esse ser falível e
factível que amou você. Amou muito. E me mostrei. E pedi que você não
desistisse de mim. E quis ajudar você a sair da sua casca, a se conhecer
melhor, a entender o que realmente deseja e a lutar por isso. Você desistiu
muito rápido, muito cedo, muitas vezes. Diante de qualquer dificuldade, você
preferia desistir. Desistir de mim ou de si mesmo? E, como quem acaba o jantar
e pede a conta, logo estava na hora de ir embora. Eu não era como você
imaginava. Talvez tenha lhe faltado a lição de que ninguém que ainda não
conhecemos é como imaginamos, ninguém mesmo, pois a imaginação é muito sem
imaginação – a realidade é bem mais criativa.
O amor tira cada um dos
parceiros do seu lugar para que cresçam e se tornem melhores. Então chegamos a
um ponto: sua vaidade. Essa, que vem te matando aos poucos. E vaidade não é o
mesmo que autoestima, muito pelo contrário. Vaidade é o que as pessoas colocam
no lugar vago da autoestima. Você não está disposto a mudar nada – mudar é
muito arriscado, não é mesmo? Você não sabe amar. Diz “eu te amo” sem ter a
menor ideia do que isso significa. Sua calma nada mais é que a falta de alma.
Algo ou alguém ou episódios do passado fizeram de você uma ilha. Uma ilha
deserta, não habitável, sem verde nem água nem vida. Sim, você me deu muito.
Mas se esqueceu de me dar o mais precioso: o coração. Talvez tenha até tentado,
mas não se pode dar o que não se tem.
Amar é bom, aquece o
corpo, me faz sentir viva, me altera, me tira do lugar, me muda para melhor.
Mas você não se acredita, não se enxerga, não se sente, não se mistura, não
vive. Seus abraços são poucos e parcos. Seus passos são apenas em sua própria
direção. Que pena que alguém lhe tirou a alma tão cedo e te fez esse fantasma
vagando sem rumo e sem amor. Você se ocupa das telas da TV e do videogame para
não pensar no vazio que lhe invade dia e noite.
Amo alguém que não
existe, que talvez nunca tenha existido, e preciso me despedir. Não quero outra
solidão para acompanhar a minha. Deixe-me só com ela, que tem muito a me
nutrir.