"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



quinta-feira, 16 de maio de 2019

perder a vida



Estava dentro do carro, presa num engarrafamento, escutando música. Enquanto esperava o trânsito fluir, fiquei observando o céu azul e algumas árvores. O dia estava lindo e Domingos Oliveira* estava morto. Um homem essencialmente emocional, que tinha um olhar encantado pra vida, que dirigiu filmes, escreveu peças e deixou registrado em livros sua convicção de que nada é mais importante que os encontros e desencontros, os desejos e as dilacerações que caracterizam a nossa humanidade. Eu o admirava tanto, e quando ele se foi, não pensei “que perda”. Pensei apenas que ele mereceu morrer em casa ao lado das pessoas que mais amava, e que tudo havia sido um ganho, então, sem drama: só restava dizer “obrigada, Domingos, obrigada, obrigada, obrigada”.

Isso me fez lembrar o enterro do pai de uma grande amiga, falecido aos 80 e poucos anos. Enquanto baixavam o caixão, o silêncio era absoluto. Foi então que escutamos a voz grave e comovida de um garoto de 21 anos: “Obrigado, vô”. Nossa. Aquele “obrigado” continha todos os sorvetes que haviam tomado juntos, todas as brincadeiras, todos os abraços, todas as discussões, todas as idas ao estádio, todos os conselhos, toda a possante presença de um na trajetória do outro.

Serve para a morte de um parente, de um amigo, e também de uma pessoa pública que fez a parte dela para tornar o mundo mais suportável. Se ao cair do pano, ninguém tiver nada a nos agradecer, de pouco serviu ter vivido.

É só abrir o jornal, espiar as redes: esta é uma época estranha, apressada, egocêntrica. Há muita gente do bem, mas várias não se importam com a dor dos outros, elogiam pouco, não escutam nada, não colaboram para a evolução da sociedade, são implacáveis com os outsiders e nunca se perguntam: quando eu me for, deixarei uma impressão positiva sobre minhas atitudes e pensamentos?

Até um crápula pode deixar saudades numa namorada ou irmão, mas falo de algo maior. Quando você morrer, deixará ao menos uma ou duas pessoas transformadas por sua existência? Você terá feito diferença na vida delas?

Nem o dinheiro que acumulou, nem a big casa que construiu, nem seus títulos e prêmios, nem seu sobrenome, nem suas postagens, nem sua pele sem rugas, nem as festas, nem a fama, nem seu passaporte megacarimbado, nada, nada, nada disso vai sobreviver. Nossa vida pode ter sido preenchida por muitos convites e conquistas, pode ter sido rica em experiências curriculares e sensoriais, mas só o que dá real sentido a ela é a nossa ampla e franca generosidade, é a visão amorosa e humanista sobre tudo o que nos cerca, é o esforço em deixar o mundo um pouco melhor do que quando aqui chegamos. 

Se não merecermos um “obrigado” verdadeiro no final, aí sim pode-se dizer: que perda. Nossa vida terá sido em vão.

* Domingos Oliveira, cineasta, diretor de teatro, 
roteirista, dramaturgo e ator, 
faleceu, aos 82 anos, no dia 23/03/2019