Feliz de quem não sente
dor. Dor alguma. É o ponto de equilíbrio necessário para tudo o que fazemos na
vida, vantagem prioritária diante de qualquer situação que se apresente. Nada
se compara a este estado de plenitude, a esta sorte divina.
Caminhar sem sentir dor
nas panturrilhas. Correr sem sentir dor no joelho. Dormir uma noite inteira sem
ser despertado pelos incômodos da artrose. Percorrer sentada todo o trajeto do
ônibus sem sentir dor nas costas. Ou viajar em pé, sem dor no ciático. Nem
saber o que é ciático.
Comer algo bem gelado sem
sentir dor de dente. Não arrancar com os dentes a pele em volta da unha. Não
provocar feridas em si mesmo.
O ouvido não zunir. Não
sentir dor de estômago. Não ficar enjoado em passeios de barco. Alguém por aí
tem andado de barco? Nem sei se enjoo pode ser considerado dor. Dor é pedra no
rim. Cálculo renal, o horror.
Tonturas, contraturas,
queimaduras, fraturas: zero. Nem sinal. Há 300 dias sem quebrar um osso, sem
encostar a mão no forno, sem prender o dedo na porta, sem ficar com a coluna
torta.
Trabalhar sem sentir dor
de cabeça. Assistir aos telejornais sem sentir dor de cabeça. Transar sem
sentir dor de cabeça. Dor de cabeça nenhuma, nem como metáfora, nem como
desculpa, nem de fato.
E tampouco sentir
saudade, que machuca bastante também. Vontade de voltar para a rua é normal,
mas a saudade de quem nunca voltará para nós é infernal (se não tiver grandes
urgências lá fora, fique em casa só mais um pouquinho).
Não ser atacada por maus
pensamentos. Não enxergar apenas o lado escuro da vida. Ter tido a bênção de
nascer com a alma leve e despreocupada, mesmo tendo contas atrasadas para pagar
e um futuro que amedronta. O destino é incerto, vá que no meio da estrada uma
surpresa boa erga o braço e te peça uma carona.
Não estar profundamente
triste. Nem desesperada.
Nenhum parente internado.
Nenhuma briga em família. Nem mesmo um cisco no olho, um ombro enferrujado, um
sonho perdido, uma angústia pelas manhãs, uns soluços à tardinha, nadinha, nadinha,
e ainda por cima a conexão está funcionando direitinho, não tem caído, uma
maravilha.
2020 se encaminha para o
fim, e quem sobreviveu às estatísticas fatais não escapou de ser atropelado
(ligeira ou drasticamente) pela excepcionalidade da situação. Alguém anotou a
placa? Que pessoa afortunada a que estiver atravessando ilesa essa pandemia,
sem sentir nenhuma espécie de dor, nenhum efeito psicossomático ou coisa que o
valha. Ou tem um anjo da guarda danado de bom, ou ainda não entendeu nada.