“No relacionamento
amoroso, familiar ou amigo acredito que partilhar a vida com alguém que valha a
pena é enriquecê-la. Permanecer numa relação desgastada é suicídio emocional, é
desperdício de vida”
“A alma do outro é uma
floresta escura”, disse o poeta Rainer Maria Rilke, meu único autor de
cabeceira.
A vida vai nos ensinando
quanto isso é verdade. Pais e filhos, irmãos, amigos e amantes podem conviver
décadas a fio, podem ter uma relação intensa, podem se divertir juntos e sofrer
juntos, ter gostos parecidos ou complementares, ser interessantes uns para os
outros, superar grandes conflitos – mas persiste o lado avesso, o atrás da
máscara, que nunca se expõe nem se dissipa.
Nem todos os mal-entendidos,
mágoas e brigas se dão porque somos maus, mas por problemas de comunicação.
Porque até a morte nos conheceremos pouco, porque não sabemos como agir. Se nem
sei direito quem sou, como conhecer melhor o outro, meu pai, meu filho, meu
parceiro, meu amigo – e como agir direito?
(…)
Amor e amizade transitam
entre esses dois “eus” que se relacionam em harmonia e conflito: afeto,
generosidade, atenção, cuidados, desejo de partilhamento ou de vida em comum,
vontade de fazer e ser um bem, e de obter do outro o que para a gente é um bem,
o complicado respeito ao espaço do outro, formam um campo de batalha e uma
ponte. Pontes podem ser precárias, estradas têm buracos, caminhos escondem
armadilhas inconscientes que preparamos para nossos próprios passos em direção
do outro. O que está mergulhado no inconsciente é nosso maior tesouro e o mais
insidioso perigo.
Pensar sobre a
incomunicabilidade ou esse espaço dela em todos os relacionamentos significa
pensar no silêncio: a palavra que devia ter sido pronunciada, mas ficou fechada
na garganta e era hora de falar; o silêncio que não foi erguido no momento
exato – e era o momento de calar.
Mas, como escrevi várias
vezes, a gente não sabia. É a incomunicabilidade, não por maldade ou jogo de
poder, mas por alienação ou simples impossibilidade. Anos depois poderá vir a
cobrança: por que naquela hora você não disse isso? Ou: por que naquele momento
você disse aquilo?
Relacionar-se é uma
aventura, fonte de alegria e risco de desgosto. Na relação defrontam-se
personalidades, dialogam neuroses, esgrimem sonhos e reina o desejo de
manipular disfarçado de delicadeza, necessidade ou até carinho. Difícil?
Difícil sem dúvida, mas sem essa viagem emocional a existência é um deserto sem
miragens. No relacionamento amoroso, familiar ou amigo acredito que partilhar a
vida com alguém que valha a pena é enriquecê-la; permanecer numa relação
desgastada é suicídio emocional, é desperdício de vida. Entre fixar e romper, o
conflito e o medo do erro.
Somos todos pobres
humanos, somos todos frágeis e aflitos, todos precisamos amar e ser amados, mas
às vezes laços inconscientes enredam nossos passos e fecham nosso coração. A
balança tem de ser acionada: prevalecem conflitos ásperos e a hostilidade, ou a
ternura e aqueles conflitos que ajudam a crescer e amar melhor, a se conhecer
melhor e melhor enxergar o outro? O olhar precisa ser atento: mais coisas
negativas ou mais gestos positivos? Mais alegria ou mais sofrimento? Mais
esperança ou mais resignação?
Cabe a cada um de nós
decidir, e isso exige auto-exame, avaliação. Posso dizer que sempre vale a
pena, sobretudo vale a pena apostar quando ainda existe afeto e interesse,
quando o outro continua sendo um desafio em lugar de um tédio, e quando, entre
pais e filhos, irmãos, amigos ou amantes, continua a disposição de descobrir
mais e melhor quem é esse outro, o que deseja, de que precisa, o que pode – o
que lhe é possível fazer.
Em certas fases, é
preciso matar a cada dia um leão; em outras, estamos num oásis. Não há receitas
a não ser abertura, sinceridade, humildade que não é rebaixamento. Além do
amor, naturalmente, mas esse às vezes é um luxo, como a alegria, que poucos se
permitem.
Seja como for, com alguma
sorte e boa vontade a alma do outro pode também ser a doce fonte da vida.