Jossylmara nasceu
detestando seu nome. Soletrou a vida toda, enfrentou bullying na lista de
chamada da escola e, por fim, dia após dia, chegou aos 23 anos sem conseguir
responder por qual ódio especial à vida seus pais tinham lhe dado aquele nome.
Assumiu-se Jô. Evitava a vogal aberta porque tinha ojeriza a uma vizinha que
adotara o Jó como apelido.
Jô tinha crescido
infeliz. Era uma insatisfação geral consigo e com o mundo. Tudo era desmedido
para ela; ou era pouco (pouca renda, pouca estatura) ou muito (muito trem e
ônibus, muita barriga). Seguiu a vida esperada e conseguiu concluir o Ensino
Médio. Jô ouvira do pastor que precisava ter a paciência que seu nome indicava
na Bíblia. Ela duvidou que houvesse alguma profetisa com o nome que a
incomodava. “Deus dá e Deus tira, bendito seja o nome do Senhor”, citou o líder
religioso. Amarga, Jô voltava para casa retrucando: “De mim, só tirou”.
A corte celeste está
reunida. Satanás chegou sem convite diante do Todo Poderoso. Vangloriou-se dos
seus muitos seguidores pelo mundo e anunciou novos planos de expansão de
mercado. Deus mostrou-lhe um poço no qual se via Jô voltando para casa e
reclamando. “Você consegue derrubar o mais elevado sonho e desgastar a fé mais
robusta. Já imaginou tentar fazer feliz essa mulher?”. O demônio gostava de
desafios. Tinha ouvido no RH do Inferno que precisava sair “da caixinha”, que
estava muito acomodado nos últimos 40 mil anos no mesmo lugar. Por tédio ou
para irritar o Arcanjo Miguel que se postava ao lado do Pai, aceitou. Jô seria
uma mulher feliz.
Resmungando como de
hábito, Jô desceu do ônibus e, sem perceber, uma mão diabólica a empurrou na
frente de um carro de luxo. Calma, queridas leitoras e estimados leitores. O
diabo escreve errado por linhas retas. O carro bateu de leve na infeliz e ela
caiu. O motorista era um jovem afortunado e, algo raro, recolheu a jovem e a
levou ao hospital particular mais próximo. O pai do rapaz era candidato a
prefeito e achou que o caso poderia ser um obstáculo à pretensão política.
Quando Jô despertou no leito de um quarto privado, viu-se cercada de flores e
afetos. Dr. Diogo, o zeloso candidato, tinha pedido que aproveitassem a
inconsciência da jovem para restaurar os dentes que ele supunha quebrados no
acidente. Na verdade, eram ruins antes, mas Jô foi aceitando sem questionar. A
comida do hospital era balanceada e a paciente perdeu bastante peso com
fisioterapia. Tinha saído do hospital com uma boca nova e com corpo muito
melhor do que entrara. A família do político ofereceu uma pensão e uma viagem
para ela descansar do incidente. Supunham que ela processaria a todos. Jô ia
aceitando tudo, dizendo obrigados, sem saber que a mão do demônio estava ali,
arranjando aquela ventura.
A viagem de Jô foi um
impacto. Pela primeira vez ela pegou um avião e viu o mundo. A rotina da
pobreza era um torpor, e ela tinha despertado. Descobriu-se ávida de saber.
Tinha sido aluna indolente. Era, agora, um prodígio de leitura. O peso perdido
no hospital virou uma meta de vida. Treinava diariamente correndo. Os museus
foram visitados com sofreguidão. Os cremes do hotel tinham revelado uma pele
excelente que apenas se ressentia de um histórico de ausência de cuidados.
Voltou ao Brasil dois meses depois. Era uma nova mulher. Como a situação política
do segundo turno ainda não tinha se definido, a família do candidato ofereceu a
ela um flat nos jardins e uma renda. Tudo era para calar a nova e radiosa boca
da vítima. Para selar a felicidade de sua nova protégée, o Diabo inspirou aos
advogados do candidato que a situação era delicada e a oferta deveria ser
maior.
Meses após o empurrão
diante do carro de luxo, ela era outra pessoa. Quem a visse selecionando um
vinho nunca imaginaria, magra e sorridente, a moça infeliz de há pouco. O seu
mentor infernal não cansava de contar vantagem nas reuniões da firma celeste.
Na convenção do fim do ano, o Demônio apresentou o case de Jô com um power
point maravilhoso. Foi aplaudido de pé até por Santo Antônio. Deus, CEO de
tudo, sorria com certa ironia quase cansada.
A jovem explodia de
felicidade. Desejava mais viagens. O corpo estava ótimo, porém poderia
melhorar. Tinha conseguido um emprego ótimo. Já nem precisaria da mesada do
candidato. Ao deitar a cabeça na fronha de mil fios, Jô começara a imaginar a
vida passada. Insinuou-se uma dor: “E se eu voltar a ser pobre e feia de novo?”.
Afastou a ideia e tentou conciliar o sono... que não veio. Sabia o horror de
ganhar o suficiente para chegar ao fim do mês. Trabalhar sem parar e obter o
mínimo. Olhou no espelho do banheiro e viu seu novo rosto com dentes perfeitos
e se lembrou de tudo. Aquilo era uma máscara. Seu rosto antigo continuava lá
sob todos os disfarces. Foi a primeira vez que ela notou que a felicidade tinha
sido rápida demais e que o risco de tudo retroceder era real. Chorou muito,
como nunca tinha chorado. Era infeliz antes do acidente, porém, sem muita
consciência. Agora, era desesperadamente infeliz. Tinha experimentado tudo o
que desejava e o medo explodira com a nova fase. Entrou em crise. Desenvolveu síndrome
de pânico. Não conseguia mais sair à rua com medo de perder o que tinha
conseguido. Temia a velha aparência que dormia sob a capa dourada da nova.
Jossylmara renasceu deprimida. Olhando, invisível, Satanás também estava intrigado. Ele ajudara em tudo. Sondava os anseios dela e atendia. Era bom nisso. Estava tão absorto na análise da depressão de Jô que não percebeu que Deus tinha vindo ao quarto. “Eles aceitam tudo, meu caro, menos a felicidade. Venho tentando desde o Éden...”. O Diabo concordou. Voltou a fazer o mal que era algo mais natural e bem aceito. Possuiu mais pessoas, afastou casais e levou muita gente ao vício. Era temido, e todos achavam aquilo natural. Os irmãos de Jô a retiraram do quarto do flat em crítico estado depressivo. Ao retornar ao casebre, ela sorriu pela primeira vez em semanas. “Deus dá e Deus tira, bendito seja o nome do Senhor”, sussurrou. É preciso ter a paciência e a esperança do Jó bíblico para as agruras deste mundo...