"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



sábado, 25 de abril de 2020

o luto morreu



No espaço de um mês, perdi uma tia e um primo. Em função disso, eu, que quase não vejo meus parentes, tive a oportunidade de estar com eles uma vez a cada semana, em dois velórios e em duas missas de sétimo dia, onde trocamos longas conversas e até algumas risadas que escaparam durante a tristeza. Não foram momentos alegres, mas foram momentos bonitos de encontro e confirmação da potência afetiva da nossa família.

Morte não é um assunto que evito, mas, nos últimos dias, pelas circunstâncias, pensei nela mais do que o normal - nela e em sua consequência imediata: o luto. Pra quem acaba de chegar ao planeta Terra, explico: luto era um período de resguardo, com duração variável, em que a gente processava a nossa dor. Não dava vontade de trabalhar, namorar, participar de confraternizações – o silêncio se fazia necessário para que a gente pudesse se despedir de uma presença transformada subitamente em ausência. O sofrimento não era camuflado: fazia parte da cura. Só então, aos poucos, a gente se reintegrava à sociedade, retomando nossos afazeres diários.

O luto vinha após qualquer morte. Não apenas depois da morte de alguém: valia também para o fim de um amor, a demolição de uma casa, a partida de um filho. Além de prestar uma homenagem ao passado, o luto servia para reorganizar nossos sentimentos e pensamentos. Isso existiu.
Mas, como você deve ter reparado, o luto morreu. Não existe mais. No lugar do luto, veio o dia seguinte com compromissos intransferíveis, mensagens de whatsapp que exigem resposta imediata, passagens aéreas que melhor não cancelar para não pagar multa, clientes que podem se irritar se a reunião for desmarcada, o horário no médico que foi uma dificuldade pra agendar, sem falar na manhã ensolarada exigindo uma selfie. Dar espaço pra dor se tornou improdutivo. Vamos em frente, time is money, o morto vai entender.

O morto é um querido: não quer incomodar, empatar sua vida. Ele já foi como você, teve agenda, obrigações, planos. Não foi sua culpa ter morrido numa terça-feira: se pudesse escolher, ele teria morrido numa sexta à tardinha (mesmo melando o happy hour) para que você pudesse aproveitar o sábado e o domingo para acostumar sua alma com a nova situação, mas foi morrer em dia útil, imagina se exigirá atenção plena. O morto libera o pessoal do luto e não puxa os pés de ninguém. Todo defunto é boa gente.

Só me pergunto se a dor não fica sublimada, se ela não explodirá mais adiante em um momento indevido, se é possível mesmo colocar vida e morte sentadas na mesma sala, com a mesma música alta. Ok, eu sei, a modernidade não tolera sentimentalismos. Resta isso, então, uma crônica saudando os velhos tempos, o que também não deixa de ser um dever cumprido no prazo, o jornal não pode esperar.

#RIP tia Iracy
família da minha mãe se esvaindo...