O calendário não pegou no
Rio. O ano efetivo carioca tem a duração de nove meses. É o máximo de
tempo-responsável que a nossa tribo suporta. Depois de nove meses de gestação,
as cucas de nossos tamoios perdem a consistência, sofrem contrações e dão à luz
uma cuíca, ninguém segura a barriga do Rio quando acaba novembro.
Trata-se duma
hiperinflação de gratuidades.
Dezembro é fogo e é nesse
fogo que os guanabarinos esquecem a produtividade, o compromisso, a carestia,
dando férias geral à alma acorrentada. É no fogo de dezembro que o nosso clã
desamarra o burro aristotélico e vai brincar nas pastagens da fantasia. O carioca
só é de fato carioca durante três meses; no resto do ano é um cidadão mais ou
menos cônscio dos seus deveres, quase um paulista.
Dezembro é o mais
adolescente dos meses: sem juízo, turbulento, transpirando pansexualismo.
Gasta-se em dezembro o dinheiro que não se tem e a saúde que se economizou.
Assim sendo, quando janeiro já está engrenado, corre um desejo forte de se
descansar das farras de fim de ano, uma necessidade de não se fazer nada.
Sejamos sutis: em dezembro a alma carioca entra em férias, mas férias ativas,
agitadas, divertidas; janeiro é o descanso do descanso. Nada acontece então na
paisagem espiritual do carioca, nenhum desejo, nenhuma inclinação para o bem ou
para o mal, a sensação biológica de que a vida flui e faz um calor danado.
Quando janeiro já vai
estrebuchando, o carioca leva um susto. O mesmo susto que me esfriava todo,
quando mamãe, de repente, como se me detestasse, começava a falar que já estava
em tempo de providenciar uniformes novos para o colégio. Quando vejo um jovem reclamar
contra os aborrecimentos da vida de estudante, costumo dizer-lhe que há uma
única vantagem em envelhecer: não ir ao colégio, não se ter de fazer e decorar
verbos irregulares.
O carioca no finzinho de
janeiro sente exatamente que as férias vão terminar, é preciso arrumar uniforme
novo, enfrentar os professores e os horários ditatoriais. Aí, dá uma louca no
Rio.
Fevereiro é um mês torto
e adoidado. Não se encaixa no compasso anual. É a ovelha furta-cor do zodíaco.
Fevereiro é o sumo do
Rio. O carioca funciona os nove meses efetivos: joga tudo pro alto em dezembro;
põe-se em sossego em janeiro, para reflorir e dar de si em fevereiro. É como se
a população tirasse a roupa e ficasse nua. O que também acontece – mas estou me
referindo às roupagens convencionais que nos escondem e falsificam.
Quem mora no Rio, por
ciência ou por instinto, sabe que no mês de fevereiro pode acontecer tudo: o
calor de estrumbicar passarinho e o aguaceiro desatado; as calmarias de um amor
divino e os emboléus de um amor infernal; quem pretende matar o trabalho e ir
comer ostras na Barra da Tijuca costuma acabar comendo ostras na Pedra de
Guaratiba – pois em fevereiro as disposições honestas são sempre contrariadas e
as disposições vadias são sempre cumpridas.
Quem mora no Rio deve
aprender o seguinte: o Rio é medularmente o mês de fevereiro. Quem vive aqui os
dias abrasivos de fevereiro viveu tudo (ou quase tudo) da graça e da fantasia
carioca. É meter a calça curta e sair por aí: tudo acontece. E embeber-se de
fevereiro, pois o mês vai terminar de repente com um baque, como o chão que
falta, e é preciso viver intensamente quando nos sentimos emaranhados na
armadilha do efêmero.
Fevereiro é um resumo da
existência carioca: curto, sacudido, sensual, encalorado, colorido, dourado,
irreal. Fevereiro encerra todos os adjetivos do realismo fantástico. Machado de
Assis estranhava que, por obediência à tradição, o carnaval vigorasse no verão
causticamente, ora, o nosso carnaval está certo, tendo se modelado pelas
condições de fevereiro, tornando-se a simbolização em carne viva duma cidade
que se despede das férias. Tudo é carnaval em fevereiro. Quando o carnaval cai
em março, o carioca perde muito do rebolado: é como festejar o aniversário duma
criança dois dias depois, só por ser mais conveniente. Março, não; em março
todo mundo sabe que a vida civil e chata começou. Março é o fim.
Paulo Mendes Campos