Vivemos sob o império do “ter de”. Portanto, vivemos num
mundo de bastante mentira. Democracia? Meia mentira. Pois a desigualdade é
enorme, não temos os mesmos direitos, temos quase uma ditadura da ilusão dos
que ainda acreditam. Liberdade de escolha profissional? Temos de ter um
trabalho bom, que dê prazer, que pague dignamente (a maioria quer salário de
chefe no primeiro dia), que permita grandes realizações e muitos sonhos
concretizados? “Teríamos”. No máximo, temos de conseguir algo decente, que nos
permita uma vida mais ou menos digna.
Temos de ter uma vida sexual de novela? Não temos nem
podemos. Primeiro, a maior parte é fantasia, pois a vida cotidiana requer, com
o tempo, muito mais carinho e cuidados do que paixão selvagem. Além disso,
somos uma geração altamente medicada, e atenção: muitos remédios botam a libido
de castigo.
Temos de ter diploma superior, depois mestrado, possivelmente
doutorado e no Exterior? Não temos de... Pois muitas vezes um bom técnico ganha
mais, e trabalha com mais gosto, do que um doutor com méritos e louvações.
Temos de nos casar? Nem sempre: parece que o casamento à moda antiga, embora
digam que está retornando, cumpre seu papel uma vez, depois com bastante
facilidade vivemos juntos, às vezes até bem felizes, sem mais do que um
contrato de união estável se temos juízo. E a questão de gênero está muito mais
humanizada.
Temos de ter filho: por favor, só tenham filhos os que de
verdade querem filhos, crianças, adolescentes, jovens, adultos, e mesmo adultos
barbados, para amar, cuidar, estimular, prover e ajudar a crescer, e depois
deixar voar sem abandonar nem se lamentar. Mais mulheres começam a não querer
ter filho – e não devem.
Maternidade não pode mais ser obrigação do tempo em que, sem
pílula, as mulheres muitas vezes pariam a cada dois anos, regularmente, e aos
cinquenta, velhas e exaustas, tinham doze filhos. Bonito, sim. Sempre desejei
muitos irmãos e um bando de filhos (consegui ter três), mas ter um que seja
requer uma disposição emocional, afetiva, que não é sempre inata. Então,
protejam-se as mulheres e os filhos não nascidos de uma relação que poderia ser
mais complicada do que a maternidade já pode ser.
Temos de ser chiques, e, como sempre escrevo, estar em todas
as festas, restaurantes, resorts, teatros, exposições, conhecer os vinhos,
curtir a vida? Não temos, pois isso exige tempo, dinheiro, gosto e disposição.
Teríamos de ler bons livros, sim, observar o mundo, aprender com ele, ser boa
gente também.
Temos, sobretudo, de ser deixados em paz. Temos de ser
amorosos, leais no amor e na amizade, honrados na vida e no trabalho, e, por
mais simples que ele seja, sentir orgulho dele. Basta imaginar o que seriam a
rua, a cidade, o mundo, sem garis, por exemplo. Sem técnicos em eletricidade,
sem encanadores (também os chamam bombeiros), sem os próprios bombeiros,
policiais, agricultores, motoristas, caminhoneiros, domésticas, enfermeiras e o
resto. Empresários incluídos, pois, sem eles, cadê trabalho?
Então, quem sabe a gente se protege um pouco dessa pressão do
“temos de” e procura fazer da melhor forma possível o que é possível. Antes de
tudo, um lembrete: cada um do seu jeito, neste mundo complicado e vida-dura,
temos de tentar ser felizes. Isso não é inato: se tenta, se conquista, quando
dá. Boa sorte!