Imagine duas pombas dialogando na Praça dos Três Poderes.
– Viu só? Agora inventaram um Código de Ética.
– Triste país em que a ética precisa de um código para ser
entendida.
– A culpa é de Brasília, que está distante de tudo. Aqui,
tudo precisa ser reinventado, até a ética. Aqui, o poder é apenas uma forma
hierarquizada de solidão. Em Brasília, nenhuma multidão é uma multidão, são
vários solitários juntos.
– Literatura. A culpa é de Brasília porque foi aqui que
começou o Brasil moderno, ou o Brasil refém das empreiteiras. Juscelino
inaugurou o regime sob o qual vivemos e do qual tudo o mais é decorrência: a
ilicitocracia. O governo por licitação suspeita, o lobby como programa, o
“quanto eu levo nisso” como lema e a propina como sistema. Ao mesmo tempo em
que desbravávamos o nosso oeste político, rompíamos a barreira moral que nos
mantinha agropastoris e atrasados e nos privava da mola universal do progresso,
que é o superfaturamento. E tudo continua igual. Só inovamos o processo: aqui,
o refém é sempre o mesmo e mudam os bandidos.
– Não, não, é algo no ar. Algo na luz, algo no chão. A
construção de Brasília mexeu com o que não era para ser mexido, despertou um
monstro enterrado, furou um veio maligno. Isso que anda por aí não é mau
caráter, é escapamento. Collor respirou essas emanações na adolescência. Era um
filho da profanação. Aquilo não era falta de escrúpulos, era intoxicação.
– Mas o Temer, por exemplo, não é daqui.
– Mas foi aceito como um filho. Só a um filho se permitiria
chegar tão longe, sabendo-se o que se sabia dele. Só uma mãe adotiva seria tão
compreensiva.
– A culpa não é do chão, é da obra. Nenhum país se torna uma
cleptocracia moderna e fica inocente ao mesmo tempo. Esse canteiro de
transformações, em qualquer outro lugar, teria dado a mesma coisa. Todo mundo
sabe o que há num canteiro de obras: métodos pesados e muita lama. Não é um
lugar para almas leves. É um lugar para tratores e padilhas.
– A culpa é da luz! Razão teve o Jânio, que deu no pé. Não
foi golpe mal dado nem ressaca, foi lucidez. Jânio encarou a luz de Brasília e
decidiu que ela, sim, o enlouqueceria. Era ela ou ele. Fugiu.
– Jango chegou a Brasília com a pior ilusão que um presidente
pode ter: a de que preside. Não soube administrar nem a sua solidão. Foi
expulso.
– Os presidentes militares sobreviveram à luz, ao ar e ao
sortilégio de Brasília porque souberam usar a principal virtude militar, que é
a falta de imaginação. A solidão não os afetou porque mesmo o general mais
sozinho tem a companhia das suas divisas e pelo menos uma presunção de tropa.
– Brasília não se contentou em repudiar Tancredo. Matou-o.
– A danação poupou Sarney.
– Tudo poupou Sarney. A vida, a história, a crítica
literária, os eleitores... Sarney descobriu a camuflagem perfeita para passar
por Brasília incólume. Se disfarçou de José Sarney.
– E Itamar?
– Itamar escapou porque, onde quer que ele estivesse, estava
sempre em Juiz de Fora. É um caso raro em que a geografia acompanhou o homem.
– E chegamos a Fernando Henrique.
– O Surpreendido. Este descobriu um meio de conviver com
Brasília e com o Brasil no qual nenhum presidente desde Juscelino pensara.
– Qual?
– Não se envolver e fingir que nada era com ele.
– E, nós, o que fazemos aqui?
– Somos parte da paisagem.
– Outra maneira de não se envolver.
– Isso.