Acordar. Respirar.
Pensar. Existir. Não há um verbo que não doa durante o luto. Talvez dormir
alivie, que é quando a dor adormece. Momento em que o medo desperta: será
preciso enfrentar o dia seguinte.
Perder quem amamos é
morrer um pouco, mesmo que o coração insista em bater. O luto nos torna um
lugar ruim. Queremos fugir de nós mesmos, emprestar outra vida, perder a
memória, trocar de papel. Qualquer coisa que nos tire a dor com a mão, que nos
salve do horror de sentir que alguém foi amputado de nós. Não há alívio
imediato.
A morte é uma verdade
disfarçada de absurdo. Não se arrepende, não volta atrás, é desfecho. O
verdadeiro “para sempre”. É telefone que não toca, silêncio que ensurdece,
pesadelo que não acaba, falta que jamais deixará de ser.
Enlutar-se é se mudar
para uma espécie de cela blindada, da qual saímos somente para intermináveis e
dolorosos banhos de sol. Uma solitária para a qual queremos voltar logo –
embora triste e sombria, ela ainda é o lugar onde nos sentimos menos
desconfortáveis.
Eu me lembro de vagar
pela cidade como numa cena sem áudio. Olhava ao redor e me perguntava com que
direito as pessoas sorriam, se dentro de mim as luzes estavam apagadas. É assim
até que a gente se acostume. A morte se repete muitas vezes. Ao acordar, está
lá a morte de novo. A cada lembrança, outra morte. Até que em nós ela morra de
fato — e isso demora.
O que mais doía no luto
era não conseguir que as pessoas sentissem a minha dor. Falei compulsivamente.
Escrevi de forma obsessiva. Até que as pessoas também chorassem. E elas
choraram – mais as suas dores que as minhas, é verdade, mas isso também é
empatia. E quando cada momento latente de falta se transformava em um texto
delicado, quando as palavras conseguiam fazer o outro vestir a minha dor, a
tristeza virava alegria: que alívio me sentir compreendida. Numa espécie de
alquimia incidental, transmutei dor em sorriso.
Veja você como a vida é
chegada numa ironia: o luto é praticamente um parto. É preciso reaprender a
viver sem a pessoa que se foi, como quem nasce de novo – e quem permanecerá o
mesmo? Viver o luto é renascer – e nascer é exercício solitário. É preciso
olhar o mundo novamente e re-conhecer-se diante dele.
Mas, como criança que
cresce, o luto demanda tempo. Enquanto isso, não sai por aí despertando
sorrisos. Num mundo programado para a felicidade, o luto constrange. Abre um
hiato de mal estar. A morte é certeza demasiado espinhosa para que se toque
nela com naturalidade.
O momento menos solitário
talvez seja a primeira semana, o primeiro mês, enquanto duram os rituais de
despedida. Passam-se alguns dias e todos retomam suas vidas. Ninguém mais quer
falar sobre isso. A não ser o próprio enlutado, que não quer falar de outra
coisa. Agora é que a dor vai começar. E parece que não vai parar nunca. Talvez
fique para sempre mesmo: a perda vai se alojando no corpo, como uma bala
encapsulada, até não incomodar mais. Com paciência, o tempo muda os afetos de
lugar. Passa a morar em mim quem se foi.
E então a dor me leva a
outros lugares. Abre meus olhos, me ensina a mudar de assunto. E assim,
distraidamente, vai me mostrando a vida de novo – agora outra, porque sempre é
tempo para mudar.
A perda pede recolhimento
como um pós-operatório, ou reincide. A ferida se abre de novo. É preciso
respeitar o luto (e entregar-se a ele, sem medo) até que chegue sua hora de ir
embora. Cada um descobre sua forma de colocar a dor para trabalhar em outra
direção. A falta pode ser, então, bastante reveladora.
Quando pequenos,
aprendemos com os livros infantis. Depois de adultos, as pessoas que se vão
passam a nos fazer pensar sobre nossas vidas. Lembram-nos a urgência de amar
quem está vivo e perto. E ensinam que fazer escolhas não precisa ser tão
sofrido, nem carece do peso da certeza de ser para sempre. Nenhum de nós é para
sempre.