"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



sábado, 27 de março de 2021

saudade do arrepio

 


O sofrimento vem sendo tão constante, o pânico tão rotineiro, que não temos mais sentido o arrepio. E não me refiro ao calafrio da doença, da febre, da COVID, mas ao calafrio da saúde e da leveza, da surpresa e do arrebatamento.

 

Neste um ano de pandemia, ficamos no nosso modo de sobrevivência, orbitando entre os extremos da emoção. A alegria, quando surge, se resume a descarga e alívio; a tristeza, quando aparece, resulta concentrada e inconsolável.

 

Se o luto não é nosso, é próximo. Se não é de um parente, é de um amigo, de um colega, de um vizinho do prédio.

 

Vestimos uma couraça de proteção, de embotamento, destinados a nos isolar e a nos resguardar do convívio.

 

Estamos transformados em répteis, revestidos das escamas do medo, para aguentar a sucessão de más notícias.

 

Não houve mais condições para se arrepiar. Não houve mais normalidade para se arrepiar. O arrepio da beleza. O arrepio da paixão. O arrepio das palavras encantadoras. O arrepio das juras de amor. O arrepio da brisa marinha. O arrepio da delicadeza. O arrepio da sensualidade. O arrepio de se ver seguro e confiante para se entregar de verdade.

 

O arrepio depende de nossa disponibilidade para ouvir e se mostrar presente, requer uma completa vulnerabilidade.

 

Como o tempo parou, como o cotidiano cessou, como experimentamos uma espera angustiante de uma salvação para poder sair novamente das cavernas, não existe mais esse estremecimento contente, essa ondulação vibratória de carinho.

 

O arrepio só acontece na felicidade. Os poros vulcânicos se dilatam numa erupção da nossa sensibilidade. Ninguém pode mentir que não se encontra arrepiado. É uma comoção visível aos olhos, que se espalha pela pele, que corre por todo o corpo, pela bicicleta do sangue.

 

De tanto morrer nos últimos doze meses, esquecemos de nos arrepiar. Até entendo a sua ausência, a nossa saudade desse frágil e inefável bem-estar: o arrepio é a nossa excitação pela vida.