"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



terça-feira, 27 de abril de 2021

eu te permito

 



Eu te permito não gostares do mesmo que eu gosto.

Permito que não tenhas os mesmos temperos em teu almoço, que não leias os mesmo livros que eu leio ou te banhes nos mesmos mares de conhecimento nos quais mergulho. És livre para que deixes tocar nos teus ouvidos a música que não me toca.

Teu prazer é teu e não deves condicionar quem és pelos meus gostos.

Não há maior desrespeito que tiranizar o prazer ou o desprazer da sensibilidade alheia. Entretanto posso falar-te dos meus gostos e ajudar-te a me compreender com meus prazeres, tão legítimos quanto os teus.

 

Eu te permito ter os amigos que tens, mesmo que eles me causem aversão ou espanto. Nossos corações se alimentam da comunicação e da energia que brotam de outras vidas, mas não precisam ser das mesmas vidas. Meu alimento relacional pode ser diferente do teu.

Querer afastar-te dos teus queridos, seria arrancar-te a liberdade de teres os exatos amores que te abastecem. Estaria te condenando a certa inanição e me condenando a suprir-te de uma nutrição afetiva que nunca terei como ofertar. Mas posso dizer, com respeito, o que penso sobre os que te acompanham, emprestando-te meus sentidos, e deixando que a decisão sobre quem come pão contigo seja tua.

 

Eu te permito creres no que quiseres e não creres naquilo que é sagrado para mim.

Teus rituais são teus e teus são os anjos, e mesmo os demônios, que escolhestes para abençoar ou assombrar tua vida. Também é teu o teu ceticismo. Se tens amuletos estranhos no corpo, ideias bizarras na mente e conceitos rígidos no coração, que nunca saiam de minha boca adjetivos que os diminuam. Afinal, a estranheza e o juízo de bizarro e de rígido são a demonstração da estreiteza da minha percepção, que encolhe tua complexidade para alcançar-te com minha diminuta capacidade de compreensão. Mas posso apresentar-te, com carinho, as minhas convicções, possibilitando novas cores em tuas paisagens mentais.

 

Eu te amo e te respeito, mesmo que estejas distante em pensamento, ideias, crenças, gostos, amizades e quereres. Talvez eu te ame justamente pelo fato de seres tão dessemelhante de mim.

Não preciso tornar-me quem és e nem transformar-te naquilo que sou para que nosso amor aconteça. É bom olhar-te como um não-espelho, é bom ser sensível aos nossos múltiplos paradoxos. E é bom que saibas que para que sejas quem és, de fato, nunca precisastes da minha permissão.

A afeição mais autêntica não ocorre na fusão, e sim quando os dois diferentes se unem para ser exatamente isso: um e outro.

 

Kau Mascarenhas