Há dois Natais em cada um
de nós: o que sonha e o que sofre, o que concilia e o que corrói, o que se
aflige e o que celebra, o que descrê e o que espera, o que cobre a cabeça para
não ver e o que fala alto, claro e com fervor. Por acaso – eu, que pouco
acredito em acasos – esta coluna vai sair na véspera da véspera de Natal: tema
espinhoso, pois há os que cultuam, os que detestam, os que ignoram, os que
ficam melancólicos, e todos precisam ser respeitados, todos no mesmo barco da
alegria ou do susto, e da geral perplexidade sobre o que fazer, como fazer, quando
começar a fazer. Fazer o quê? Refletir, mudar, gritar, amar, comprar ou vender,
esperar, talvez morrer. Escrever, no meu caso. Sobre mim, sobre o mundo, sobre
este estranho país de contrastes, de desencontros e desencantos, de rala e rara
esperança.
Não aprecio a torre de
marfim da estética e da emoção, em que se pretende que a realidade não nos diga
respeito: diz respeito, sim, pois acredito que cada cidadão é senhor, é mestre
em assuntos de seu país. Tem o doutorado da dura experiência, das contas a pagar,
do emprego a conseguir, dos líderes cínicos e decepcionantes, dos filhos a
criar, da saúde a desejar, da esperança a manter, apesar de tudo. No território
da realidade concreta, aparentemente nossa resignação precisa começar a criar
seus limites: bom presente de Natal para cada pessoa que pensa. Bradar em vez
de sussurrar; olhar de frente em lugar de se esconder.
Andamos demais
acomodados, todo mundo reclamando em voz baixa como se fosse errado
indignar-se. Sem ufanismo, que dele estou cansada, sem dizer que este é um país
rico, de gente boa e cordata, com natureza (a que sobrou) belíssima e generosa
– sem fantasiar nem botar óculos cor-de-rosa que o momento não permite, eu me
pergunto o que anda acontecendo com a gente. Tenho medo disso que nos tornamos
ou em que estamos nos transformando, achando bonita a ignorância eloquente,
engraçado o cinismo bem-vestido, interessante o banditismo arrojado, normal o
abismo em cuja beira nos equilibramos – não malabaristas, mas palhaços.
Saúde, educação, cultura,
estradas, ferrovias, aviação estão numa decadência nunca vista, sem falar na
honradez de nossos homens públicos. Líderes mentem e se desmentem,
acobertam-se, insultam-se, à vista de todos se comprometem com a corrupção e os
mais variados escândalos! Tudo normal, como o império macabro da violência que
nos faz correr nas ruas feito ratos amedrontados, fechados em casa à noite
devido à guerra civil, felizes se nenhuma das pessoas que amamos foi assaltada
e morta naquele dia.
Dormimos no chão dos
aeroportos, contentes quando nosso avião afinal chega salvo ao seu destino,
enquanto se fazem mais cortes nesse setor e em muitos outros, para poder pagar
o fantástico salário de deputados e senadores: as coisas por aqui são assim
mesmo, por que se incomodar?
Tudo isso, e muito mais,
acontecer com tamanha naturalidade é péssimo sinal. Mas como nem tudo são
horrores, também existem os amigos que não nos decepcionam, os amores que nos
fundamentam, os batalhadores e os idealistas, os conciliadores que nos fazem
acreditar em harmonia mais do que em desagregação e rancor, no futuro mais do
que no duvidoso presente. Houve no público e no pessoal realizações e até
decência, e é bom lembrar disso para que a gente recupere a vergonha, abra
braços mais generosos, endireite a espinha da dignidade e adoce a voz de todos
os amores.
Para os que acreditam e
os que apenas gostariam de acreditar em alguma religião, em algumas pessoas, em
alguma nobreza, em alguma esperança, em si mesmos ou em sua família, este é um
momento de parar, pensar, escutar e enxergar dentro e além dos limites pessoais
e dos fatos com os quais corremos o perigo de nos resignar. No reduto de nossa
casa, dos abraços sinceros, das memórias comovidas, dos bons projetos e do
derradeiro otimismo, este é um Natal para repensar muita coisa, e prestar mais
atenção no que está havendo dentro e fora de nós: indagando, de verdade, em que
pessoas estamos nos tornando, que futuro estamos preparando, que país, que
ordem, que progresso, que bem-estar, que segurança, que esperanças criamos
neste quase fim de 2006.