"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



quinta-feira, 30 de julho de 2020

respeite a solidão do miojo



Minha mulher gosta de miojo. Ela compra pacotes escondidos de mim e armazena longe da despensa para não localizar. Descobri o seu esconderijo esses dias, está no armário da louça para as visitas.

Eu odeio aquela massa pronta, blocada, unidos venceremos, que desce no prato toda grudada, e com aquele sachê de tempero que é como mastigar a seco um tablete de caldo de carne. Não poderia ser mais artificial.

Mas sei que o miojo para a minha mulher é mais do que um prato, é a lembrança de sua infância, é um símbolo do parto de sua independência, quando preparava a sua comida pela primeira vez sem se preocupar com ninguém.

Miojo é solidão. É recuperar um tempo ido, um tempo de prazer secreto e acolhimento. Por isso é uma refeição egoísta, para uma porção apenas. É o equivalente a partilhar uma coxinha ou oferecer um pão de queijo a uma dentada.

Há alguns momentos em que a Beatriz será solteira dentro de nosso amor. E não é que me ame menos ou que deixou de estar casada, é que naquela sagrada horinha está se amando mais do que me amando.

Não devo nunca sentir ciúme do seu amor-próprio.

Não tenho o direito, diante de uma evocação sincera, de estragar o feitiço de sua hipnose, esconjurá-la dizendo que não conta como janta, agredir a nebulização borbulhante da panela, amaldiçoar a sua alegria antiga.

É necessário dar espaço dentro da relação para as manias infantis de cada um. São passatempos importantes, apegos intuitivos, para a saúde mental.

Para o bem da convivência, faça vista grossa diante dos chicletes ou jujubas ou salgadinhos ou pastilhas de chocolate ou bombons colocados no fundo do carrinho de supermercado.

Não mate a criança dentro do adulto.

Eu mesmo quando preciso me religar à alegria de viver devoro aquelas batatas chips em lata. E fico imensamente chateado ao dividi-las. Prefiro que seja absolutamente solitário, na frente da televisão, com a realeza crocante do surto, e com o luxo de entornar os farelos ao final.