Sonhei com uma mulher
dizendo que eu estava com câncer. Sou super-racional, acredito na ciência, na
lógica. Mas foi um sonho tão claro que fiquei encasquetado.
Fui aos médicos, fiz
colonoscopia, endoscopia, ultrassonografia, não achavam nada, mas eu continuava
impressionado. Um gastroenterologista pediu uma tomografia, “só para tirar a
dúvida”.
Fui às 22h, o resultado
começou a demorar. Veio um enfermeiro e perguntou se não sentia muita dor,
porque tinha pancreatite, mas eu não sentia nada. Não sentia nada. Procurei na
internet: pancreatite dá em quem bebe —sou abstêmio há seis anos— e em quem tem
vesícula — que eu já tinha tirado. Era câncer.
No dia seguinte, já
estava no hospital. Tirei o tumor bem no comecinho, o que aparentemente era boa
notícia.
Mas, passadas três
semanas, ele estava no fígado. Fizemos quimioterapia para operar, mas, em vez
de parar, o tumor cresceu. Passei quatro meses de tantas más notícias... muita
febre todo dia, comecei a já me preparar para a despedida. Foi o meu período
pessimista.
Hoje —é até difícil falar
isso— estou vivendo o momento mais feliz da minha vida. Aquele Gilberto
Dimenstein antes do câncer morreu. Nasceu outro.
Câncer é algo que não
desejo para ninguém, mas desejo para todos a profundidade que você ganha ao se
deparar com o limite da vida. Não queria ter ido embora sem essa experiência.
Grande parte da minha
vida foi marcada pelo culto a bobagens: ganhar prêmio, assinar matéria na capa,
o tempo todo pensando no próximo furo. É como se estivesse passando por um
lugar lindo num trem em alta velocidade, vendo tudo borrado.
Quando você tem um câncer
(ainda mais como o meu, de metástase e de pâncreas, um tipo muito agressivo),
não há alternativa. Ou vive o presente ou sua vida vira um inferno.
E aí começam a aparecer
coisas incríveis. Gosto de andar de bicicleta, e comecei a sentir o vento no
rosto, como se estivesse sendo beijado. Você vê seu neto deitado com você.
Acorda com os bem-te-vis e escuta os bem-te-vis.
Falar em sentidos é
importante, porque meu tratamento tira o gosto, até a água fica ruim. Com o
tratamento, também acaba a vida sexual; você fica impotente.
É uma fase de muitos
pesadelos, que melhoram com o canabidiol.
Tudo isso poderia fazer
um cara superinfeliz. Mas as relações emocionais se sofisticam. Descobri só
agora a profundidade da relação homem-mulher. Você está com enjoos, dores não
apenas físicas, e a pessoa do seu lado o tempo todo. Não conhecia essa
cumplicidade nesse nível.
Nós vivemos nos meios
digitais a era da indelicadeza, 500 mil pessoas criticando. Eu acabei entrando
no mundo das gentilezas. Cada pessoa tem uma palavra, um chá, uma dica de
oração, um olhar gentil. O outro mundo vai ficando ridículo.
Com ou sem câncer vamos
todos morrer, e se pudermos antecipar essa sensação, vamos evitar várias
bobagens. A clareza maior da morte é uma dádiva. Não é o fim, mas um começo.
Pode ser o começo de um
belo fim de vida, viver esses momentos com a família, ou um pit stop para voltar
melhor. O cara tem que ser muito, muito, muito idiota para não voltar melhor.
Não é que eu ache que
morrer é bom, mas você começa a questionar por que existe, e a conclusão é que,
se não podemos escolher como entramos na vida, podemos decidir como sair dela.
Quando o médico me disse
que eu estava com câncer, passou um dia, dois, três, e não tive medo. Só temia
o impacto da minha morte nos outros. Não me senti desesperado. Nada, nada,
nada. Até me espantei comigo mesmo.
Em inglês se chama “surrender”.
Você não está mais no comando, e isso é motivo de alívio. De felicidade, até.
Descobri que meu pavor
era passar a vida sem propósito. Olhei para trás, e, apesar de todas as minhas
delinquências —que não foram poucas—, acho que fiz mais bem que mal. Mudei
minha carreira para fazer um jornalismo que não é de filantropia nem altruísmo,
mas de empoderamento, de usar a comunicação para promover causas.
Não inventei nada, o
comunicador não faz o vinho. Mas tira a rolha.
Acabei sendo obrigado a
deixar de ser aquele jornalista racional, imparcial. Deixei de ser um
espectador e passei a ser torcedor. Você vira um eunuco como jornalista, porque
passa a querer dar só boa notícia.
Já antes do câncer tinha
começado minha “quimioterapia social”, na Orquestra Sinfônica de Heliópolis,
que esteve perto de fechar. Em nenhum momento neste ano parei de trabalhar,
arrecadar fundos, promover esse e outros projetos que acompanho. Não é bondade,
é conexão com a vida.
O evangelho segundo são
João diz “No princípio era o verbo”. É a palavra que gera o poder, e nós,
comunicadores, trabalhamos com isso, podemos fazer as pessoas poderosas
trabalharem juntas.
Hoje há um enorme
desperdício. Há um ditado árabe maravilhoso, “gavião não voa em bando”, ainda
mais perfeito em inglês, “eagles don't fly together” —eagles tem o mesmo som de
egos—. Cada um quer ter seu legado, sua placa, seu projeto. Um secretário não
trabalha com outro, a prefeitura não trabalha com o estado, um dinheiro enorme
sai pelo ralo, sem meta, sem avaliação, sem trabalho articulado, uma
catástrofe.
O mundo é como um corpo
humano. Há pessoas que espalham infecções, se xingam, se odeiam. Trump e Bolsonaro
não criaram isso, mas sintetizam essa cultura da infecção, do ódio, do
confronto. E há os glóbulos brancos, as pessoas que não deixam o mundo acabar,
que inventaram a anestesia, o antibiótico, descobriram a hélice dupla do DNA.
Meu tumor passou por
análise genética — recebi o resultado, e sou um caso de 1% cuja mutação talvez
tenha um tratamento promissor. Em ratos, eliminaram o câncer de pâncreas, e
estão começando a testar em humanos, procurando a dose certa. Já me dispus a
fazer parte dos testes no Brasil.
É até meio canalha, mas
penso “será que eu vou ajudar a encontrar a cura?”. Para um
jornalista que gosta de furos, você se transformar num furo de si mesmo é
incrível, né? Mas para ajudar os outros.
Voltei a ficar otimista.
Ganhei da minha mulher dois ingressos para ver o músico Bobby McFerrin, nos
EUA, em maio. Já estou com planos para o ano que vem. Você volta a ter
projetos, é a vida voltando a circular. Eu acho que tenho muita chance, muita
chance.
Vida após a morte? Se for
igual a esta, prefiro que não exista. Se eu acordasse e estivessem lá Trump,
Bolsonaro, Viktor Orbán, não sei se queria, não.
Gilberto Dimenstein –
jornalista e escritor
#escola da vida