Aos que detestam datas
marcadas, porque as consideram exploração comercial, digo que concordo em
parte: explora-se a nossa burrice existencial básica, que se submete aos
modismos, às propagandas, ao consumismo desvairado. Pais se endividam para
comprar brinquedos e objetos caros e supérfluos para crianças que poderiam
fazer coisa bem mais interessante, como jogar bola, pular corda, ler um livro,
armar um quebra-cabeça, praticar esporte. Isso acontece na Páscoa, no Dia das
Crianças, no Natal, em cada aniversário. Nesse aspecto, acho que os dias
marcados para celebrar coisas positivas se tornam – para os tolos e frívolos,
os desavisados – coisa negativa, fonte de tormento e preocupação.
Mas, visto sob outro prisma, não acho ruim
existirem datas em que a gente é levada a lembrar, a demonstrar o afeto que se
dilui no cotidiano, a fazer algum gesto carinhoso a mais. A prestar uma
homenagem: refiro-me agora à data vizinha do Dia das Crianças, o Dia do
Professor, celebrado na semana passada. Ofício tão desprestigiado, por mal
pago, pouco respeitado e mal amado, que milhares e milhares de jovens escolhem
outra carreira. E não me falem em sacerdócio: o professor, ou a professora,
precisa comer e dar de comer, morar e pagar moradia, transportar-se e pagar
transporte, comprar remédio, respirar, viver. Além disso, deveria poder
estudar, ler, comprar livros, aperfeiçoar-se e descansar para enfrentar o
dia-a-dia de uma profissão muito desgastante.
Então, reunindo a ideia das duas datas,
crianças e mestres, reflito um pouco sobre o que me sugeriu dias atrás um
amigo:
– Escreva sobre que mundo estamos deixando
para nossas crianças, pois vai nascer minha primeira neta, e essa questão se
tornou premente em minha vida.
Pois
é. Criança tem entre muitos outros esse dom de nos dar um belo susto
existencial: abala as estruturas da nossa conformidade, nos torna alertas, nos
deixa ansiosos. O que estou fazendo por ela, o que posso fazer por ela, quem
devo ser ou me tornar para representar um bem para esse neto ou neta, filho ou
filha, aluno ou aluna?
Se forem as crianças de minha casa, a
questão se torna crucial, e o amor é a dádiva primeira. E aí entram também os
casais, tema por vezes espinhoso. Temos em casa um clima fundamentalmente bom e
harmonioso, apesar das naturais diferenças e dificuldades? Por baixo do
cotidiano de aparente rotina corre um rio de afeto ou grassam discórdia e
rancores? Como apresentamos ao imaginário infantil a figura do nosso parceiro
ou parceira? Lembro aqui a atitude infeliz de tantas mulheres: desabafar diante
dos filhos, pequenos ou adultos, sua raiva e insatisfação. Pior: usar os filhos
para manipular emocionalmente o parceiro, usando-os para promover a própria
vitimização e tornar quase um monstro o pai deles.
Vão mais uma vez dizer que privilegio os
homens, mas essa postura, vingativa, cruel e mesquinha, é muito mais freqüente
nas mulheres, sobretudo nas separadas. Não somos todas umas santas, não somos
boazinhas. A mãe-vítima e a santa esposa me assustam: hão de cobrar, com altos
juros, todo esse sacrifício.
Enfim: que legado deixamos para as
crianças? Primeiro, vem o legado pessoal: quem somos, quem podemos ser, quem
poderíamos nos tornar, para que elas tenham um mínimo de confiança, um mínimo
de amor por si próprias, um mínimo de otimismo para poder enfrentar a dura
vida.
Depois, podemos olhar para fora e imaginar
um mundo, pelo menos um país, onde elas não tenham de presenciar espetáculos
degradantes de corrupção, melancólicos jogos de interesse ou de poder. Onde os
líderes sejam honrados, onde seus pais não se desesperem nem descreiam de tudo.
Onde todos tenham escolas sólidas com professores bem pagos e bem preparados.
Onde, em precisando, elas disponham de hospitais excelentes e médicos em
abundância, de higiene em sua casa, comida em sua mesa, horizonte em sua vida.
E que as crianças possam ter a seu lado,
mais que um anjo da guarda, a Senhora Esperança: ela será a melhor companheira
e o mais precioso legado.