Que personagem adotar
para que a sociedade preste atenção em nós? Nascemos carentes: precisamos de
quem nos alimente e nos proteja, e dá-lhe biquinho, choro, mamãe eu quero. Com
sorte, receberemos amor e comida em troca, e aí será a hora de entrar para a
escola: como ser benquisto em território desconhecido? Nossa adequação ajudará
a fazer amigos, nossas estranhezas resultarão em bullying. Figurino, maquiagem
e texto poderão facilitar nossa entrada na vida que sonhamos ter. “Seja você
mesmo” é um conselho que só serve para aqueles que já sabem quem são, mas até
aqui, estamos falando de quem ainda está tentando descobrir quem é – e como se
fazer notar.
Arthur Fleck já está bem
grandinho e ainda não sabe qual é a sua turma. Tenta fazer seu trabalho
direito, mas é desprezado e humilhado. Os distúrbios mentais que traz da
infância não ajudam nada. É um desajustado e tudo indica que continuará
fantasiando que é popular e atraente, enquanto só apanha da vida. Até que entra
em colapso: descobre que foi enganado pela única pessoa que o amava. Fim de
linha. Só lhe resta virar o jogo da forma mais trágica que há. Estou falando
dele, o Coringa que está em cartaz comovendo multidões.
Um bandido comovente?
Muito prazer. Mais um ser humano que precisa de amor e atenção, como todos.
Quem não tem uma coisa nem outra, busca alternativas patéticas e até mesmo
radicais para consegui-las (inevitável pensar nas redes sociais, onde cada um
pode abrir sua janelinha e dizer: “olha eu aqui!” A internet é o picadeiro de
todos nós, inclusive de malucos ávidos por se transformarem em super-heróis,
mesmo que às avessas).
Coringa é um arrebatador
filme de ficção sobre um personagem que todos conhecem, o arqui-inimigo do
Batman. Só que o maniqueísmo recorrente dos quadrinhos deu lugar a uma
inquietante indagação: de que lado, afinal, eu estou? Inevitável torcer por
Arthur Fleck (interpretado pelo magistral Joaquin Phoenix), um pobre diabo que
alguém muito “bonzinho” resolveu presentear com uma arma, a fim de que ele
pudesse se proteger por conta própria, e o resto da história não é difícil de
imaginar, Gotham City é aqui.
O mundo não é dividido
entre bons x maus, e sim entre visíveis x invisíveis, acolhidos x desacolhidos,
escutados x ignorados. “Seja você mesmo” é uma falácia para muitos, pois
dificilmente saberemos quem somos se não tivermos uma certidão de nascimento e
o registro de um afeto e de um cuidado verdadeiro nos primeiros anos de vida.
Sem isso, caímos no mundo com uma bola vermelha no nariz, sendo ridículos para
que nos percebam, até que a nossa dor atinja em cheio o coração alheio:
comova-se ou morra.
Não é um conto de fadas,
mas o filme, de forma meio cínica, termina com o romântico lettering The End em
letras cursivas– como se a busca pela nossa identidade terminasse um dia.