Fui vários meninos. Sou
adulto porque brinquei tudo o que podia na infância. Gastei a infância. Usei a
infância. Encardi a infância. Envelheci a infância.
Fui o menino das bolinhas
de gude. Meu dedão é um gatilho de bolitas.
Fui o menino do futebol
de botão. Chamava o meu time de Resto do Mundo e sempre acabava como o
vice-campeão do bairro - jamais ganhei do Rodrigo, meu irmão mais velho.
Fui o menino do Banco
Imobiliário, Detetive, War, Pula-Pirata, Playmobil, Pinogol, Aquaplay e Atari.
Fui o menino do Forte
Apache, com índios montando ataque à cavalaria, escondidos nas samambaias da
varanda.
Fui o menino que não
comprava cachorro, adotava vira-lata manco e perdido nas redondezas (antes da
carrocinha achá-los).
Fui o menino do carrinho
de rolimã. Ia para escola seguindo o rastro das rodas nas lajes.
Fui o menino que tirava a
fofolete da caixinha de fósforo das colegas para colocar uma barata no lugar.
Fui o menino do ioiô,
havia campeonato na escola para demonstrar manobras como estrela, pêndulo de
relógio e cachorro passeando.
Fui o menino das pipas.
Os fios elétricos colecionavam as minhas invenções coloridas.
Fui o menino de jogar
pedras no rio. Criava círculos perfeitos em lançamentos rasantes. O rio nunca
afundou em meus olhos.
Fui o menino de jogar
bola de garagem a garagem. A turma parava a partida quando passava um carro.
Fui o menino do pião,
minha bailarina, meu ciclone de estimação, rezando por mais uma pirueta, e que
um novo giro levasse as tristezas embora.
Fui o menino do caçador,
do esconde-esconde, do polícia-ladrão, de encontrar vãos e subir nos telhados.
Fui o menino de roubar
frutas da casa dos outros. Um dia devolvo.
Fui o menino de jogar
bexiguinha do alto dos prédios nas pessoas. Fazia o cálculo mental, atirava sem
olhar, me escondia e esperava o grito de quem passava pela minha rua.
Fui o menino de só voltar
para a residência quando já era noite, quando o sol também cansava, quando a
lua não tinha mais força para disputar corrida, quando o jantar estava na mesa
e eu ainda precisava tomar banho.
Hoje crianças já são
adolescentes ao nascer e crescem sem ter infância.