Todos temos dentro de nós temas que retornam, ressurgem,
transfigurados, com diversas máscaras e roupagens, e insistem em aparecer: são
os fantasmas de cada um. Em geral, manifestam-se na forma de sonhos,
inexplicados medos, breves euforias. O assunto que hoje retomo é a doença de
Alzheimer, abordado frequentemente em reportagens, artigos médicos, palestras
de psiquiatras, e experiências dramáticas da vida real. Terrível doença que
acompanhei intimamente por mais de uma década, quando foi ocupando, em minha
velha mãe, tudo aquilo que antes tinha sido ela – que passou a não ser ninguém,
ou a ser um enigma.
Aos poucos, de filha, fui
me tornando a cuidadora, a visita e, por fim, a estranha. Seu universo fora
reduzido ao próprio mundo interior: ali comemorava 15 anos, ali era noiva ou tinha
um bebê, ali me tratava de “senhora”, ou me entregava algum pequeno objeto
invisível que para ela devia ser muito precioso. “Cuidado!”, me recomendava, “cuidado
com isso!”, e eu o recebia com as duas mãos em concha, para que ela não se
afligisse. Foi ficando mais bem-humorada na alienação do que nos últimos anos
de lucidez ameaçada, nos quais eventualmente perguntava: “Será que estou
ficando louca?”. E a gente respondia, tentando parecer natural: “Que bobagem,
eu estou muito mais esquecida do que você!”.
Um dos dramas de quem
convive com isso é aprender a entrar nesse mundo, e não tentar algemar a pessoa
doente ao que para nós é a “realidade”, pois isso provoca angústia inútil. De
alguma forma, aprendemos a acompanhar a pessoa amada para dentro dos limites de
seu novo registro, procurando amenizar, não atormentar mais, até que isso se
torna impossível. Quem amamos não sabe mais de nós. É dramático assistir ao
abandono dos bons modos, ao isolamento social, ao desconhecimento dos
familiares e amigos e, por fim, à reclusão total num aparente nada.
Eventualmente minha mãe
parecia a mulher elegante de outros tempos: “Você quer uma bebida?”, perguntava
dez vezes, porque ao indagar já o tinha esquecido, naquele território onde eu
não era ninguém. O que se passaria naquela paisagem para mim vazia? Certamente
havia consciência: pois minha mãe falava, ria, cantava baixinho para alguém que
ninguém mais via, cada vez mais fechada ao meu desejo de algum contato. De
mulher grande e saudável passou a uma velhinha minúscula, mas resistia à morte:
essa tem lá a sua medida de tempo, que nunca entendemos. Quando é a sua hora,
chega como uma faminta ave de rapina, ou aguarda como um lento animal que
hiberna. Chega muito cedo, ou espera demais, às vezes.
Aconchegada na sua
cápsula de fantasias, da última vez que vi minha mãe doente, ela, que havia
muito não falava, entreabriu os olhos e disse nitidamente para si mesma, para
alguém – para ninguém: “Que bom estar assim, tão leve e tão jovem”. Nem mais
uma palavra, nem um brilho de reconhecimento no olhar quando me inclinei para
ela. Logo se enrolou de novo nos lençóis e na ausência.
Poucos dias depois, simplesmente não acordou mais. Fechava-se a última porta desse tão longo corredor pelo qual minha mãe tinha se perdido. A Senhora Morte chegou, com grande atraso, e num gesto casual recolheu a lamparina em que já não havia luz. Levou consigo a velha dama que na verdade fazia muitos anos deixara o palco da sua vida, cortinas ainda abertas e, nos bastidores, algumas vezes, o que parecia ser a sua voz, seu passo enérgico, e seu riso alegre – tudo que mais recordo dela agora.
Poucos dias depois, simplesmente não acordou mais. Fechava-se a última porta desse tão longo corredor pelo qual minha mãe tinha se perdido. A Senhora Morte chegou, com grande atraso, e num gesto casual recolheu a lamparina em que já não havia luz. Levou consigo a velha dama que na verdade fazia muitos anos deixara o palco da sua vida, cortinas ainda abertas e, nos bastidores, algumas vezes, o que parecia ser a sua voz, seu passo enérgico, e seu riso alegre – tudo que mais recordo dela agora.
Por que de repente
resolvi voltar ao triste assunto? Talvez porque essa grande peste do século,
sobre a qual pouco se sabe, seja um tão duro aprendizado para quem observa do
lado de cá desse mistério. Não é preciso, aliás, haver motivo para uma crônica,
pois muitas vezes elas se manifestam sozinhas: querem ser escritas, e eu
assisto enquanto, neste computador, elas mesmas se escrevem.