Virar mãe de nossas mães
talvez seja uma das experiências mais dolorosas da vida. Nada, mas nada mesmo,
nos prepara pra isso. Passar a ser a protetora de quem nos protegia, assumir a
tutela de quem nos amparava: é todo um script que tem de ser refeito, todo um
roteiro a ser recriado.
Eu acompanhei a perda
gradual de lucidez da minha mãe.
E quantas mulheres passam
por essa orfandade precoce, esse ensaio da perda, ou essa morte antes da morte,
quando tudo em nós diz que ainda somos filhas.
Nunca vou me esquecer de
uma tarde em que eu estava lendo no quarto da minha mãe e ela pediu que buscasse
um café na cozinha. Quando voltei com a xícara de café, ela estava chorando,
aquele choro que faz sacudir o corpo todo, e começou a me perguntar
repetidamente onde é que a gente estava, que lugar era aquele que ela não
conhecia, e me pedia, com uma tristeza tão profunda que parecia uma dor física:
“Me leva para a minha casa, minha filha… Me tira daqui…”. Eu explicava que ali
era a casa dela, mas não adiantava.
Aí, tentei dizer que mais
tarde eu levaria, mas, com a tristeza cortante na voz, ela voltava a pedir: “Me
leva agora… Eu não aguento mais ficar aqui”.
Ela queria uma casa que
já não existia. Eu queria a mãe que já não havia. E ficamos ali chorando, as
duas, desconsertadas e impotentes diante do que não fazia sentido, ensaiando
palavras que não diziam nada e depois nos encontrando no silêncio.
Se for descrever nosso
cotidiano: pentear seus cabelos, convencê-la a trocar o vestido com manchas de
café, lembrar a hora de tomar o remédio, lembrá-la de sentir sede, lembrar o
aniversário dos filhos e o próprio aniversário, lembrar, lembrar… E eu me
obrigava a esquecer que ainda precisava tanto dela, que suas palavras, sempre
precisas e justas, tinham deixado de pontuar minha vida e que sem elas eu me
via sem mapa e sem rumo.
Ah, que falta ela já me
fazia então e que falta que ela me faz hoje…
Não consegui desaprender
o papel de filha a tempo e hoje tenho saudades de ser, a um só tempo, sua filha
e sua mãe. Já peguei o telefone tantas vezes para falar com ela depois que ela
se foi. Já entrei numa loja de aeroporto para comprar um presente para ela e
saí atordoada quando me lembrei que já não haveria presentes. Penso em contar
tantas coisas para ela. Seria tão bom estarmos juntas…
Ah, as perdas nos deixam
sem ar, sem ter onde pisar – e dói o mesmo tanto perder o que tivemos e o que
nunca chegamos a ter. Uma perda nos arranca o passado. A outra nos rouba o que
viria. Resta o presente, claro, e é nele que temos que viver.
Aproveitar o momento,
como a Erma Bombeck* aconselhava. Raspar o prato da sobremesa no jantar do
Titanic.
Minha mãe está me
olhando, de onde estiver. Voltou a ser mãe, tenho certeza, e vai me ajudar a
encontrar o caminho.
[ Crônica de uma filha que
perdeu a mãe para o Alzheimer
Trecho do livro “Que
ninguém nos ouça”, de Leila Ferreira e Chris Guerra ]
* Erma foi uma escritora
americana (1927-1996)