“Pais bonzinhos são tão
danosos quanto pais indiferentes: o amor não se compra com presentes, nem fingindo não saber,
desviando o olhar quando ele devia estar vigilante”
Se as relações familiares
não fossem intrinsecamente complicadas, não existiria o mandamento “Honrarás
pai e mãe”. Comentário de grande sabedoria. Assunto inesgotável. Como educar,
como cuidar neste mundo maravilhoso e tresloucado, com tanta sedução e tanta
informação – um mundo no qual, sobretudo na juventude, nem sempre há o necessário
discernimento para escolher bem?
Saber distinguir o melhor
do pior, ser capaz de observar e argumentar, são o melhor legado que família e
escola podem dar. Na família, fica abaixo só do afeto e da segurança emocional.
Na escola, importa mais do que o acúmulo de informações e o espaço das
brincadeiras, num sistema que aprendeu erroneamente que se deve ensinar como se
o aluno não tivesse de aprender. Fora disso, meus caros, não há salvação. Isso
e professores supervalorizados e bem pagos, escola para todos – não mais
milhões de crianças e jovens em casas cujo pátio é barro misturado a esgoto, ou
na rua, com o crack e a prostituição. Um ensino que dê muito e exija bastante:
ou caímos na farra e no despreparo para a vida, que inclui graves decisões
pessoais e um mercado de trabalho cruel.
Bem antes da escola vem o
fundamental, o ambiente em casa, que marca o indivíduo pelo resto de sua
jornada. Se esse ambiente for positivo, amoroso, a criança acreditará que amor
e harmonia são possíveis, que ela pode ter e construir isso, e fará nesse
sentido suas futuras escolhas pessoais. Se o clima for de ressentimento,
frieza, mágoas ocultas e desejos negativos, o chão por onde o indivíduo vai
caminhar será esburacado. Mais irá tropeçar, mais irá quebrar a cara e escolher
para si mesmo o pior.
Dificuldades familiares
não têm a ver só com o natural conflito de gerações, mas também com a atitude
geral dos pais. Eles têm entre si uma relação de lealdade, carinho, alegria?
São realmente interessados, tentam assumir suas responsabilidades grandes e
difíceis? Foi-se o patriarcado, em que havia regras rígidas. Eu não quereria
estar na pele dos infratores de então, os filhos que ousavam discordar. Em
lugar da anterior rigidez e distância, estabeleceu-se a alegre bagunça, com
mais demonstrações de afeto, mais liberdade, mais respeito pelas
individualidades – muitas vezes com resultados dramáticos. Lembro a frase que
já escrevi nesta coluna, do psicólogo que me revelou: “A maior parte dos jovens
perturbados que atendo não tem em casa pai e mãe, tem um gatão e uma gatinha”.
Talvez tenham uma mãe que não troca cabeleireiro e academia por horas de afeto
com os filhos, ou um pai que corre atrás do dinheiro necessário para manter a
família acima de suas possibilidades, por ilusão sua ou desejo de status de uma
mulher frívola.
Crianças de 11 anos frequentam
festinhas em que rola o inenarrável: onde estão pai e mãe? Adolescentezinhos
rodam de madrugada pelas ruas, dirigindo bêbados ou drogados: onde estão pai e
mãe? Quase crianças passam fins de semana em casas de serra e praia reais ou
fictícios, com adultos irresponsáveis ou só entre outras crianças, transando
precocemente, drogando-se, engravidando, semeando infelicidade, culpa,
desorientação pela vida afora. Onde estão os pais?
Ter filho é talvez a
maior fonte de alegria, mas também é ser responsável, ah sim! Nisso sou
rigorosa e pouco simpática, eu sei. Esse é o dilema fundamental numa sociedade
que prega a liberalidade, o “divirta-se”, o “cada um na sua”, como num
pré-apocalipse. Mais grave ainda num momento em que a honradez de figuras
públicas (que deveriam ser nossos guias e modelos) é quase uma extravagância.
Pais bonzinhos são tão danosos quanto pais indiferentes: o amor não se compra
com presentes, nem permitindo tudo, nem fingindo não saber ou não querendo
saber, muito menos desviando o olhar quando ele devia estar vigilante. Quem ama
cuida: velho princípio inegável, incontornável e imortal, tantas vezes violado.