Acabei de ler Milagre nos
Andes, o relato impressionante de Nando Parrado, um dos sobreviventes daquele
célebre acidente aéreo que aconteceu trinta anos atrás e que deixou vários
jovens uruguaios perdidos no meio da cordilheira, sem comida, sem comunicação,
sob temperaturas gélidas e tendo que se alimentar da carne dos colegas mortos.
Agora um deles conta em detalhes como foram aqueles 72 dias de luta pela vida,
num livro que se lê fácil como se fosse uma reportagem e que faz a gente se
perguntar: do que, afinal, tanto reclamamos, se temos água, pão, cobertor e
afeto?
Afeto, na verdade, é uma
palavra soft, amor é mais contundente. Nando Parrado se propôs a mostrar que,
se a morte tem um oponente, não é a vida, é o amor. É a única coisa que pode
fazer alguma diferença diante da magnitude da morte, da onipresença da morte, da
longevidade da morte: sim, porque a morte, a partir do momento que ocorre,
passa a ter um período de duração infinito, e antes de virmos ao mundo ela
também já existia nessa mesma infinitude de trás pra frente. Onde estávamos
antes de nascer? De certa forma, mortos também. Nossa vida é apenas uma pequena
brecha de tempo entre duas ausências acachapantes. E para justificar esse breve
intervalo de vida e enfrentar a soberania da morte, só mesmo amando.
Tem se falado pouco de
amor, virou uma coisa meio piegas, antiga. Hoje cultua-se muito mais a paixão e
demais sentimentos vulcânicos, aqueles que fazem barulho, que inspiram
loucuras, que causam polêmicas, que atormentam, que dilaceram, que fazem as
pessoas se sentirem, ora, vivas. O filósofo romeno Cioran disse que é melhor
viver em frenesi do que na neutralidade, e tem razão, vigor é algo de que não
podemos abrir mão.
A questão é que nada é
mais vigoroso que o amor, esse sentimento que erroneamente relacionamos com
comodidade e mornidão, tudo porque associamos amor ao casamento: esse sim pode
vir a se tornar algo acomodado e morno. O amor pega essa carona injustamente.
Amor não é apenas o que
aproxima um homem e uma mulher (ou dois homens ou duas mulheres). Amor envolve
pais e filhos, envolve amigos, envolve uma predisposição emocional para o
trabalho, para o esporte, para a gastronomia, para a arte, para a religião,
para a natureza, para o autoconhecimento. Amor é um estado de espírito que nos
move constantemente, é uma energia que não se esgota, é a única coisa que faz a
gente levantar de manhã todos os dias sem entregar-se para o automatismo, é o
que dá algum sentido para este hiato entre duas mortes. Isto não é vulcânico?
Ô. Parece sermão de padre, parece texto de romancezinho barato, parece muito
piegas, sim, mas e daí? Nando Parrado só conseguiu sair do meio da neve e do
nada porque pensava dia e noite na dor que seu pai estaria sentindo. Outros
sobreviventes só conseguiram suportar o frio, a fome e o desespero porque
tinham quem esperasse por eles do outro lado da cordilheira. Tiveram sorte,
coragem e inteligência para transpor os obstáculos, e venceram, mas o próprio
Nando admite: não houvesse um sentimento, pouco adiantaria.
Nós, com nossos
obstáculos infinitamente mais transponíveis do que a cordilheira, deveríamos
experimentar mais deste viagra motivacional chamado amor. E azar se parecermos
cafonas.