Ela tinha o rosto coberto
por sardas, especialmente no nariz e nas bochechas. Contou que, quando era
criança, a garotada do colégio pegava muito no pé dela — naquela época, ainda
não se falava em bullying. Cresceu odiando ser chamada de sardenta. Eu disse a
ela para não se estressar, as sardas davam a ela um ar juvenil, e quer saber? “Eu
nem tinha reparado que você tinha sardas antes de você comentar”. Ela começou a
rir. “Claro que você não reparou, por que acha que uso o cabelo verde?”.
O cabelo dela era mais
verde que um gramado de estádio de futebol em jogo de estreia da Copa, não
havia quem não notasse.
Desde então, quando vejo
uma mulher com o cabelo muito colorido, penso: como ela é incrível, quanta
personalidade — e então fico buscando as sardas ou seja o que for que ela
esteja tentando esconder.
Não estrague a
brincadeira. Óbvio que muita gente pinta um arco-íris no cabelo porque gosta,
apenas porque gosta, sem que seja um subterfúgio. Mas com subterfúgio tem mais
graça e inventamos um assunto.
Outro dia vi uma garota
toda tatuada — muito, muito. Os dois braços inteiros, as duas pernas tomadas,
as costas sem espaço para nem mais um desenho. Se alguém não soubesse o nome
dela, como a identificaria? “Aquela menina tatuada”. Ninguém diria “aquela menina
gorda” — não só porque seria grosseiro, mas porque o fato de ela pesar quase
100 quilos havia se tornado secundário diante da pele hipergrafitada.
Será que também
privilegiamos algo na nossa aparência a fim de camuflar aquilo que não queremos
que ganhe destaque? Tive uma colega da faculdade que costumava frequentar as
aulas com camisas e vestidos superdecotados. Ela tinha seios lindos, poderosos.
Pois agora estou lembrando que ela tinha também um nariz de respeito. Considero
os narigudos e narigudas o suprassumo do charme, mas é provável que ela
discordasse do meu senso estético — na época, encontrou um jeito de desviar a
atenção para o seu colo e funcionou.
Tem gente que consegue
esse câmbio de foco sem envolver o visual. Escreve livros a fim de disfarçar a
timidez, é exibicionista para que não reparem sua insegurança, está sempre
correndo de um lado para o outro para que ninguém perceba que não tem nada pra
fazer. É a velha história: enquanto um lado fica iluminado, o outro permanece
convenientemente na sombra.
Mas voltando ao cabelo:
pintar, tosar, descolorir é bem mais fácil do que fazer um tratamento de pele,
emagrecer 20 quilos, colocar silicone, operar o nariz. Fica autêntico,
divertido e ainda distrai daquilo que consideramos uma imperfeição — mesmo
correndo o risco de estarmos mascarando o que há de mais bonito em nós.