"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



sexta-feira, 29 de março de 2019



Apenas três coisas irritam minha filha pequena: comer, dormir e tomar banho. Ironicamente, tudo o que eu mais gosto de fazer, depois de velho. Ela não: basta falar uma destas três palavras para que se jogue no chão ou comece a miar. Parece um gato, falando fino. Nunca está com fome (é claro, com minha esposa permitindo iogurte antes do almoço fica difícil!), nunca está cansada e nunca quer entrar debaixo do chuveiro. Obviamente, há desentendimento. Eu e ela discutimos. Esses dias ela ficou tão aborrecida que me entregou um bilhete: “PAI QUERO QUE VOCE NAO FALE MAIS COMIGU HOGE”.

Perguntou-me, na hora de dormir, porque ela não podia mandar nos outros. “Seria assim: tudo o que eu mandasse as pessoas fariam. Eu mandaria todo mundo brincar comigo, correr e me dar brinquedos”, ela disse. Queria um mundo em que todos a obedecessem. Um mundo em que todos pudessem comer iogurte antes do almoço, dormir de madrugada e ter a sola do pé preta. Talvez fosse um mundo mais divertido, e me pergunto em que momento virei minha mãe e passei a considerar banho, sono e comida algo tão indispensável. Porém, um mundo em que podemos controlar tudo é também um mundo chatíssimo.

Imagine um mundo em que você é uma criança e pudesse controlar todas as pessoas. Em um primeiro momento você faria apenas o que deseja, brincaria, comeria doces, dormiria tarde. Ordenaria que todos brincassem daquilo que você quer. No segundo dia, a mesma coisa. E assim por diante, até que depois de alguns dias você perceberia que todos fazem as suas vontades apenas por que você os controla. Você sentiria uma solidão. Ninguém estaria com você porque quer, mas por que é obrigado. Controlar tudo ao seu redor seria profundamente solitário.

Somos levados sempre a sonhar com um mundo controlável. Tudo acontece como planejado, meus clientes dizem sempre sim, os semáforos estão sempre verdes. Teríamos o trabalho dos sonhos, namoraríamos quem quiséssemos. A pessoa que você ama estaria agora ao seu lado, pois você a controla. Por mais divertido que fosse nos primeiros meses, cansaria. Uma vida perfeita é plástica, falsa, solitária. A surpresa que nos emociona. A imprevisibilidade que nos faz sentir vivos. Serendipidade.

Às vezes, as surpresas trazem uma dor. Um divórcio. Uma demissão. Às vezes, um sofrimento que parece que não vai acabar. Mas uma vida incontrolável é a única que nos surpreende com um amigo novo, que nos aponta uma nova carreira, que nos apresenta um novo amor. Uma vida incontrolável nos surpreende na esquina. Uma vida incontrolável é a única que vale a pena. Mesmo que, em algum momento da vida, você tenha seis anos de idade e seja obrigada a comer, tomar banho e dormir cedo.