Quando menina, nunca
olhava embaixo da cama a fim de conferir se havia algum monstro aguardando que
eu apagasse a luz para só então me atacar. Bicho-papão era coisa que não me
apavorava, mas eu tinha um medo absurdo de areia movediça, como se isso fosse um
perigo menos fantasioso do que monstros embaixo da cama. Ficava em pânico
quando via cenas de filmes em que alguém caía numa poça melequenta e, sem
conseguir nadar, ia sendo tragado aos poucos para o fundo. Help, um
salva-vidas! Não havia. Até que, subitamente, alguém surgia com uma corda e
resgatava a vítima que, a essa altura, estava apenas com as duas mãos para o
lado de fora.
Aí eu cresci. E admito,
encabulada, mesmo grandinha ainda passei boa parte da vida me perguntando: quem
é que vai aparecer com a corda?
Porque tem hora que você
se sente bem assim: num lodo, enterrada até a cintura, sem ninguém por perto
para puxar você pelo braço, para te alcançar uma boia, para jogar um cipó. Como
é que você foi parar nesse lamaçal? Ah, pois é.
Sabe como é que foi, seu
moço, eu conto: vinha correndo naquela direção, no meio da mata fechada,
assustada por achar que estava sendo perseguida por algum animal selvagem, e
então corri, corri tanto que quando vi, tchibum, caí nesse areal movediço
desgraçado, e a margem, que seria facilmente alcançável com duas braçadas,
ficou longe demais das minhas possibilidades. Estou imobilizada pela força
sugadora desse buraco maligno.
Quantas vezes isso já nos
aconteceu? Metaforicamente, é claro. Sabe como é que foi, seu moço, eu conto:
vinha fugindo da minha verdadeira identidade, sem coragem para ser uma pessoa
mais original e livre, assustada por achar que não daria conta de viver fora
dos padrões, e então corri, corri tanto que, quando vi, tchibum, caí nessa
rotina movediça desgraçada, e o meu sonho de ser eu mesma, que seria facilmente
alcançável com duas braçadas, ficou longe demais da minha realização. Estou
imobilizada pela força sugadora das minhas escolhas covardes.
Ou. Sabe como é que foi,
seu moço, eu conto: vinha correndo na direção oposta a um amor que me exigiria
muita dedicação e entrega, corri evitando todos os desejos que tentavam tomar
posse do meu corpo, assustada por achar que não daria conta de tanta
intensidade, de tanto sentimento, e então corri, corri tanto que, quando vi,
tchibum, caí nessa mesmice movediça desgraçada, e a minha grande paixão, que
seria facilmente alcançável com duas braçadas, ficou longe demais da minha
realidade. Estou imobilizada pela força sugadora dos convencionalismos.
Tudo o que a gente quer é
agarrar em alguma coisa para sair de uma vida atolada. Um novo amor. Um novo
projeto. Uma viagem. Religião. Astrologia. Terapia. Curso tântrico. Uma corda.
Qualquer corda.