Passamos sempre uma
versão mais tranquilizadora a nosso respeito. Um filme editado, de acordo com
as nossas intenções. O rolo bruto fica guardado na câmera para nunca ser
mostrado.
Temos medo de não sermos
aceitos, e vamos refinando a versão, adaptando, colocando e tirando informações
e lembranças. Não que a verdade tenha mudado, dificilmente muda de um
relacionamento anterior para o atual, pois a verdade requer tempo, análise e enfrentamento.
Justificamos o nosso
nervosismo com uma origem bastarda: ou pela sobrecarga de trabalho ou pela
falta de dinheiro ou porque cavamos um descuido da companhia e exploramos o
conflito do ciúme e da deslealdade.
Mas a cólera é sinal de
alguma falsificação. Perder o equilíbrio é aviso de impostura. Ali está
demonstrando que vem mentindo.
Coitada de nossa
interlocução que acabará não compreendendo como banalidades geram tamanha
raiva, e não geram mesmo – é mera transferência de foco.
Quando alguém chega perto
da ferida, rechaçamos para longe. Fomos treinados a não confessar as nossas
fraquezas. Como a vulnerabilidade é usada nos momentos errados das brigas,
evitamos perder a vantagem.
Arrumamos intenções para
esconder as vontades, inventamos argumentos a cada discussão para despistar o
que incomoda. Não expomos a raiz do problema, balançamos as folhagens com força
para distrairmos a atenção.
Criamos uma ilusão de que
o nosso par corresponderá as nossas expectativas. Porém, não percebemos o
quanto elas são irreais, montadas, forjadas para confortar e não indicar o que
realmente queremos.
Forçamos o outro a ser o
que mentimos que somos. Assim não exigimos que o outro seja igual ao que somos,
exigimos que seja o que não conseguimos ser – eis a trapaça.
O fracasso é previsível
no espelho do impossível. E não tem como dar certo o que não é real: estaremos
brigando pelos reflexos de nossas ações e jamais por aquilo que merece e
importa. Gritaremos em defesa de projeções, jamais pela natureza autêntica das
angústias.
O que devemos falar e não
falamos? Não sei. Pode ser uma desavença com os pais ou uma disputa com irmãos
ou um bullying na adolescência ou romances equivocados. Algo antigo que não foi
cuidado, um quarto trancado vendido com a casa. E tampouco temos a obrigação de
saber. A questão é que, em vez de colocar a culpa e a motivação em quem nos
acompanha, cabe pedir simplesmente ajuda. Pedir ajuda é começar a entender.
Toda honestidade é pobre,
não tem efeitos especiais, não desfruta de excesso de palavras, não soa bonito,
não é Shakespeare, não produz encantamento. É ser direto com aquilo que nos
provoca receio. Azar do medo, sorte do amor.