"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



sábado, 24 de fevereiro de 2018

o sotaque das Mineiras



O sotaque das mineiras deveria ser ilegal, imoral ou engordar.
Porque, se tudo que é bom tem um desses horríveis efeitos colaterais, como é que o falar lindo (das mineiras) ficou de fora?

Mineira deveria nascer com tarja preta avisando: ouvi-la faz mal à saúde.

Se uma mineira, falando mansinho, me pedir para assinar um contrato doando tudo que tenho, sou capaz de perguntar: só isso?
Assino achando que ela me faz um favor.
Eu sou suspeitíssimo.
Confesso: esse sotaque me desarma.

Os mineiros têm um ódio mortal das palavras completas.
Preferem abandoná-las no meio do caminho.
Não dizem: pode parar. Dizem: ‘pó parar’.
Não dizem: onde eu estou? Dizem: ‘ôncôtô’.

Os não-mineiros, ignorantes nas coisas de Minas, supõem, precipitada e levianamente, que os mineiros vivem lingüisticamente falando, apenas de uais, trens e sôs.
Digo-lhes que não.

Mineiras não usam o famosíssimo ‘tudo bem’.
Sempre que duas mineiras se encontram, uma delas há de perguntar pra outra:
– ‘Cê tá boa?’

Para mim, isso é pleonasmo!
Perguntar para uma mineira se ela tá boa é desnecessário.

Há outras.
– ‘Aqui’, não vou dar conta de chegar na hora, não.
Esse ‘aqui’ é outro que só tem aqui.
Que os mineiros não acabam as palavras, todo mundo sabe.
É um tal de ‘bonitim’, ‘fechadim’, e por aí vai.

Já me acostumei a ouvir:
– E aí, ‘vão?’.
Traduzo:
– E aí, vamos?
Não caia na besteira de esperar um ‘vamos’ completo de uma mineira.
Não ouvirá nunca.

Eu preciso avisar à língua portuguesa que gosto muito dela, mas prefiro, com todo respeito, a mineira.
Nada pessoal.
Aqui certas regras não entram.
São barradas pelas montanhas.
Por exemplo, em Minas, se você quiser falar que precisa ir a um lugar, vai dizer:
– Eu preciso ‘de’ ir.
Onde os mineiros arrumaram esse ‘de’, aí no meio, é uma boa pergunta.
Só não me perguntem. Mas que ele existe, existe.
Aqui em Minas ninguém precisa ir a lugar nenhum.

Entendam:
Você não precisa ir, você precisa ‘de’ ir.
Você não precisa viajar, você precisa ‘de’ viajar.
Se você chamar sua filha para acompanhá-la ao supermercado, ela reclamará:
– Ah, mãe, eu preciso ‘de’ ir?

No supermercado, o mineiro não faz muitas compras, ele compra um ‘tanto de coisa’.
O supermercado não estará lotado, ele terá um ‘tanto de gente'.
Entendeu?
Se, saindo do supermercado, a mineirinha vir um mendigo e ficar com pena, suspirará:
– ‘Ai, gente, que dó’!

É provável que a essa altura o leitor já esteja apaixonado pelas mineiras.

Para uma mineira falar que algo é muitíssimo bom, vai dizer:
– ‘Ô, é sem noção’!
Entendeu?
É ‘sem noção!
‘Só não esqueça, por favor, o ‘Ô’ no começo, porque sem ele não dá para dar noção do tanto que algo é sem noção, entendeu?

Capaz…
Se você propõe algo ela diz:
– ‘Capaz’!!!
Vocês já ouviram esse ‘capaz’?
É lindo!

Já ouviu o ‘nem’
Completo ele fica:
– Ah, ‘nem’!

A propósito, um mineiro não pergunta:
– Você não vai?
A pergunta, mineiramente falando, seria:
– ‘Cê’ não anima ‘de’ ir?
Tão simples.

O resto do Brasil complica tudo.
É, ué, cês dão umas volta pra falar os trem.
O plural, então, é um problema.
Um lindo problema, mas um problema.
Sou, não nego, suspeito.
Minha inclinação é para perdoar, com louvor, os deslizes vocabulares das mineiras.
Aliás, deslizes nada.
Só porque aqui a língua é outra, não quer dizer que a oficial esteja com a razão.

Se você, em conversa, falar:
– Ah, fui lá comprar umas coisas…
– ‘Que’ s coisa?’ – ela retrucará.

O plural dá um pulo.

E se você acusar injustamente uma mineira, ela, chorosa, confidenciará:
– Ele pôs a culpa ‘ni mim’.

A conjugação dos verbos tem lá seus mistérios, em Minas.
Ontem, uma senhora docemente me consolou: ‘preocupa não, bobo!’.
E meus ouvidos, já acostumados às ingênuas conjugações mineiras, nem se espantam.
Talvez se espantassem se ouvissem um: ‘não se preocupe’, ou algo assim.

A fórmula mineira é sintética.
E diz tudo.

Até o tchau, em Minas, é personalizado.
Ninguém diz tchau pura e simplesmente.
Aqui se diz: ‘tchau pro cê’, ‘tchau pro cês’.
É útil deixar claro o destinatário do tchau.

Então né, as mineiras são trem bão demais sô!