Era uma senhora casada. Uma senhora casada e muito sábia que
tinha uma filha de uns três anos. Pois essa mulher muito sábia não deixava a
filha brincar com terra, não deixava a filha entrar no mar, não deixava a filha
andar de pés descalços. A senhora era uma sumidade em seu ofício, respeitada
por toda a sociedade, então era possível que tivesse razão quando impunha esses
impedimentos dizendo que era para o bem da filhinha, para que a menina não
pegasse doença, não corresse riscos. Eu escutava essa história e pensava: ok, é
uma senhora sábia e a filha dela nunca vai ficar doente – mas eu não queria ser
se essa filha vetada pra vida.
Era, eu também, uma menina, portanto meu pensamento não vinha
acompanhado dessa eloquência toda, mas era assim que eu sentia. Sem pé na
terra, pé na grama, pé na areia, que infância era aquela, que graça haveria em
ser um bibelô cujo vestido jamais ficaria imundo, cuja trança jamais se
desmancharia? Acreditavam todos que a intenção da senhora era amorosa e
protetora (e era), mas eu achava que faltava mais um adjetivo, sem saber
direito qual – ainda não conhecia a palavra paranoica.
Não sei que consequências teve isso na vida das duas
protagonistas. Hoje aquela filhinha de três anos deve ter saudáveis 45, por aí,
e a senhora sábia deve ter mais de 70. Todos sobreviveram, inclusive essa
história que nunca me saiu da cabeça, e que de vez em quando retorna, como
agora.
Associei essa lembrança do passado a uma frase dita pelo
arquiteto e urbanista Jaime Lerner em entrevista recente. Disse ele: “Porto
Alegre fez o muro da Mauá tentando evitar a máxima tragédia, o dia em que
houvesse a maior enchente da história. Por causa desse muro, você não vê o
Guaíba. A gente não pode querer evitar a máxima tragédia. O mais importante é a
tragédia do dia a dia”.
Não brinque com terra, não brinque com fogo, não mergulhe,
não arrisque, não salte, não se apaixone. Evite as máximas tragédias, recomenda
o grilo falante acomodado em um dos nossos ombros, com cara de quem teve poucas
alegrias na vida. É um cauteloso profissional, daqueles que constroem muros
contra imprevistos que se prenunciam desestabilizadores. Mas temos dois ombros,
não apenas um. À medida que o tempo passa, tenho escutado mais o que o outro
grilo assopra no lado oposto do meu pescoço. É um danado, tem algumas
cicatrizes no rosto, mas vive sorrindo e o brilho do seu olho é uma provocação.
Diz ele: trágico, guria, trágico mesmo, é o medo.
A menina que fui já intuía que perigoso era ficar de sapatos
o tempo todo. É preciso correr o risco de umas perebas, de uns arranhões, de
algumas inflamações. A máxima tragédia pode vir nunca. Com as mínimas a gente
se vira.
programada