"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



segunda-feira, 18 de setembro de 2017

a volta do arado


Um filho pode ajudar a perpetuar o amor que sentimos e o cuidado que temos pelas pequenas e belas coisas da vida. E por essa continuidade de nós mesmos somos capazes até de nos fingir de loucos, como fez Ulisses, com seu arado.

Segundo os poemas sagrados que contam das nossas origens, eu fui feito de coisas bem deste mundo: a terra, a água, o vento. E acredito que sim, pois eu amo essas coisas. Amo a terra, amo o vento, amo a água, e me sinto feliz no meio delas, minhas irmãs, continuação do meu corpo. Não sinto nostalgia dos céus. Assustam-me as sobrehumanas companhias. Quero o barco, a gaivota, o mar, as árvores, o vazio onde navegam as nuvens, planam as aves, flutuam as pipas, e os seus cheiros, cores, barulhos, gostos, memórias…

Amo também as coisas urbanas. A praça com os namorados, velhinhos e crianças. O coreto vazio, cheio de saudades, onde se ouvia a banda tocar. A mesa do bar, sorvete e refresco, conversas sem fim, as falas de amor. O concerto, o teatro, o cemitério. Já notaram como os cemitérios são tranquilos? Os relógios param, respira-se um ar de muitos anos atrás. E as feiras e mercados, derramados de frutas e verduras – que continuam a ter as mesmas cores e cheiros, a despeito da inflação. Todas essas coisas moram dentro de mim. Acho, inclusive, que nós somos as coisas que moram dentro de nós. Por isso há pessoas que são bonitas. Não pela cara, mas pela exuberância do seu mundo interno. Há a estória da linda princezinha que foi enfeitiçada e, sempre que abria a boca, dela só saíam cobras, sapos e lagartos. Outras, quando falam, delas sai um arco-íris.

Fico triste pensando que, morrendo, não estarei mais aqui para cuidar dessas coisas e para dizer a elas que elas são belas. Gostaria que alguém houvesse que delas cuidasse. Dizem que isso é bobagem. Morreu, acabou. Mas, por enquanto estou vivo, e não posso deixar de pensar naqueles que tomarão o meu lugar. Desejo que as coisas que eu amo continuem a ser amadas e cuidadas, mesmo depois da minha partida. Sei que retomarei ao mundo vegetal-mineral de onde saí. Mas acontece que em mim vivem coisas que esse mundo mineral-vegetal não entende, pois ele mora no esquecimento. Estórias, poemas, canções, sonhos, rostos. Essas coisas são a alma do meu mundo e só sobreviverão se houver alguém que as ame como eu as amo. E é isso que as gerações mais velhas esperam dos jovens: uma cumplicidade nos objetos de amor. E é por isso que geramos filhos – não por acidente biológico –, mas porque em nós existe o desejo de alguém a quem possamos entregar o mundo que amamos, como herança.

Eles cuidarão dele depois da nossa partida. Mas parece que as coisas não acontecem assim. E se a psicanálise elegeu o mito de Édipo como protótipo das relações entre filhos e pais, foi porque ela descobriu ódio e inveja, vingança e morte a separar as gerações. E até as estórias infantis dizem a mesma coisa: a madrasta envia a Branca de Neve para a floresta para ser morta pelo caçador. E assim as gerações se sucedem, sob a maldição da inimizade. Mas há um outro mito. Quando a Grécia se preparava para a Guerra de Tróia, mandou convocar seus heróis para as batalhas. Agamenon, Palâmades e Menelau foram encarregados de trazer Ulisses. Mas ele havia se casado, fazia pouco, e se deleitava com o filhinho recém-nascido. Nada lhe parecia mais terrível que uma guerra que o separasse da esposa e do menino. Resolveu passar-se por louco. Pôs um chapéu cônico na cabeça, atrelou um boi e um burro a um arado e pôs-se a arar a areia, onde semeava sal.

Palâmades desconfiou. E tratou de desfazer o embuste. Agarrou a criancinha e a colocou na direção da lâmina do arado que se aproximava. Ulisses fez o arado desviar-se em semicírculo, em torno da criança. E com isso se revelou. Teve de ir para a guerra…

Estória de ternura: um pai se trai para salvar o filho.

Sempre que se anuncia a geração de uma criança, anuncia-se também a repetição dessa estória imemorial. Muitos arados serão desviados… E com isso se anuncia a coisa mais bela que pode existir: os laços de amor que ligam as gerações que vão passando. E ficamos sabendo que haverá alguém para cuidar das coisas belas que amamos…

É por isso que geramos filhos – não por acidente biológico –, mas porque em nós existe o desejo de alguém a quem possamos entregar o mundo que amamos, como herança.