Antes da era tecnológica, a gente via os amigos de vez em
quando, em encontros eventuais. Agora, eles estão na palma da mão. Sabemos tudo
o que eles pensam e o que fazem, as informações são atualizadas em minutos, e o
resultado disso? Fé na humanidade.
Se depender de você, de mim e de nossos 3.768 amigos, ou
7.543, ou 21.544 (quantos amigos você tem?), o mundo está salvo. Porque, veja
bem: somos todos bons. Somos todos justos. Somos todos inteligentes. Somos
todos amorosos. Somos todos honestos. Escândalos políticos não têm nada a ver
com a gente: somos todos críticos, atentos, lúcidos. E estamos todos
estupefatos, lógico. Acreditávamos que a sociedade era íntegra, já que somos
todos íntegros.
Todos nós amamos os animais, adotamos cachorros de rua, gatos
abandonados, porquinhos-da-índia. Cuidamos deles, nos importamos com eles,
temos por eles um amor que se equipara ao amor que sentimos por nossos filhos.
Ah, nossos filhos. Somos todos pais espetaculares de filhos que não se drogam,
não bebem, não são jovens indiferentes, não são preguiçosos, não são acomodados,
não estão perdidos, não são sedentários. Foram crianças excepcionais e não
poderia dar noutra coisa: hoje são adultos incríveis. É de família. Bênção do
DNA.
Somos todos ecologistas, amantes da natureza, adoradores de
crepúsculos, mares, florestas. Não pisamos na grama, não poluímos os rios, não
jogamos bituca de cigarro no chão, somos a favor da energia eólica e solar,
reverentes às flores, às montanhas, às cachoeiras, às árvores. Tudo documentado
em fotos, milhares delas.
Somos a favor dos refugiados, das empregadas domésticas, dos
gordos, dos gays, dos pobres, das mulheres, das crianças, dos negros, dos
chineses, dos sírios, dos mendigos, dos feios, dos albinos, dos haitianos, dos
anões, dos favelados, dos nudistas e demais minorias – minoria é gente à beça.
Somos todos conscientes e defendemos os direitos humanos.
Somos todos bem-amados, bem-humorados, temos bom gosto. Todos
nós respeitamos as regras de trânsito. E o nosso time só perdeu porque o juiz
roubou.
Não temos religião, mas somos espiritualizados. Não fazemos
parte de nenhuma ONG, mas vestimos a camiseta. Dirigimos carros, mas damos a
maior força para as ciclovias. Não somos vaidosos, apenas usamos nossa imagem a
fim de enaltecer boas ideias e intenções. Estamos a serviço de um mundo melhor.
Somos todos messias. Todos gurus.
E todos nós votamos corretamente nas últimas eleições.
O inferno são os outros. Jamais você, eu e nossos amigos. Os
3.768, os 7.543, os 21.544 que estão conectados, que vivem na bolha da
autorreverência e não possuem defeitos, a não ser este, que é meio suspeito: o
de não ter defeito algum.
A gente acredita que existe um senso comum regendo nossos
gostos e opiniões, porém somos sete bilhões pensando e vivendo de forma muito
distinta uns dos outros.