Teleguiada, a rainha não pensa. O sapiens que a concebeu e a
colocou onde está não foi sapiens o bastante. Tem poderes de rainha e age como
boba da corte. Por seu raciocínio notavelmente desarticulado, seus asseclas
deveriam orientá-la a calar-se, abdicar
ao trono ou acatar um tutor.
Alguns, mais próximos, até tentam sugerir-lhe uma postura,
ainda que falsa, de humildade. Mas a déspota ignora conselhos, recusa-se ao
diálogo, rebela-se, escuda-se em arrogância e movimenta-se doentiamente pelo
tabuleiro, em jogadas desconexas e proibidas pelas regras, legitimando-as à
custa de patacas distribuídas aos ocupantes das duas torres. A torre da direita
e a torre da esquerda. Assim a rainha empurra, com a recém-diminuta barriga, a
interdição que lhe caberia em qualquer reino do mundo, menos no teatro de
comédias onde a partida tem lugar.
Como em toda peleja oficial, nessa também há juízes. Alguns
incorruptos e outros de juízo comprado, nomeados pelo rei para livrá-lo do
mate. Em sua imparcialidade de fachada, fazem que não veem os cavalos andando
em círculos, os bispos sorrateiramente abduzidos do exército adversário, as
rasteiras que aleijam toda a trincheira de peões. Seguem aplacando sua
consciência intranquila e sua justiça injustificável alegando outras tantas e
presumíveis fraudes do antigo dono do tabuleiro. Saem batendo seus martelos
viciados no argumento de que, se nas partidas anteriores se roubava
impunemente, é justo que agora também se faça vista grossa. Questão de
equanimidade.
Tudo isso entre uma e outra colherada de caviar, superfaturado
como o rechaud em que é servido. O rei, momentaneamente acuado e clamando ajuda
de exércitos fronteiriços, promete lances triunfais e redentores, um revide
messiânico que trará aos desvalidos a terra prometida. Mas até os peões já
entenderam que o discurso é um emaranhado de tolices, potencializadas pelo
efeito da bebida. E o que o rei de araque, muito em breve, há de prender-se em
seu próprio jogo.
por Marcelo Souassábia