"Ando no rastro dos poetas, porém descalça... Quero sentir as sensações que eles deixam por ai"



quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Carta ao tempo


Dia desses encontrei no banco do metrô uma correspondência. Uma dessas cartas cujo destinatário não se consegue atingir, mas se deseja com muito afinco. Ela dizia mais ou menos o seguinte:

“Tempo,

Perdoe-me, pois fui um tanto cruel consigo. Na imersão das minhas leviandades, mal lhe dei a atenção devida e que falta grande é ignorar aqueles que zelam por nós. Quem nos cuida e nos nina, em tese, não merece nada além da nossa retribuição em abraços e afetos. Mas eu, Tempo, falhei e reúno agora toda a pouca humildade de que meu caráter me dotou para lhe pedir desculpas.

Se bem me permitir a justificativa, a vida passa tão apressada por nós e nós atrás dela com as narinas arreganhadas, que parece que você, é esse o tratamento adequado?, nem está lá. Parece que está na sala ao lado, na casa vizinha, na rua de baixo, em outra cidade… Tão longe… Então volto para casa e lá está você, a sentar-se em minha poltrona, calçando minhas pantufas e afagando meu cão!

Não que o esteja acusando da mesma omissão de que acabo de me desculpar há um parágrafo apenas, mas é que você bem que poderia dar as caras mais vezes, ou se fazer mais visível nas suas presenças. Já pensou em usar um crachá? Eu tive inúmeras dúvidas cujas respostas, disseram-me, só você possuía. Mas você nunca aparecia e quando se fazia presente, o susto era tamanho que me olvidava das questões todas e ficava a te encarar com as narinas a abrir e fechar e a lhe assistir acarinhando o cachorro.

Feitas essas considerações, que agora percebo um tanto descabidas mas não importa porque escrevo este bilhete direto à tinta, reitero minhas intenções iniciais e solicito a gentileza da sua redenção.

Aproveito para dizer agora que estamos mais íntimos e digo isso por acreditar que já me conheça o suficiente para invadir-me a casa, que sempre me habitou uma porção de medo seu. É um poder tamanho e tão irrevogável… quem não se melindraria? Temo que me puna por incauto que fui. Não o faça, por favor. Sou insolente e orgulhoso, mas não me julgo merecedor de castigo assim como não me acredito nem um pouco merecedor de prenda alguma.

Apiede-se de mim e seja justo para comigo e para com meus amigos. Use conosco a mesma régua, pois não haveria dor maior nesse mundo que correr apressado com os meus e caminhar em lento vagar comigo”.

Terminei de ler, registrei os escritos, dobrei o papel e desci na minha estação. O papel ficou lá, dobrado sobre o banco verde, entregue ao Tempo.